O acordo comercial entre a Vaticano S.A. e o estado chinês deixou o Capelão Magistral muito inquieto, a pensar que a multinacional romana ainda acaba como a EDP...
E qualquer pretexto é bom para recordar Christopher Hitchens: "The four most over-rated things in life are champagne, lobster, anal sex, and picnics”(ainda que só de acordo quanto aos picnics)
"If life brings you troubles, drink some Champagne, then your problems will just become bubbles"
... e, já agora, quando os representantes do p.o.v.o. forem investigar quem é esse tal de Apple Torpe, que alguém lhes chame a atenção para a muito maior poucavergonhice de que ninguém fala
... ainda a propósito das "salas reservadas": deve ser denunciado que, um pouco por todo o lado, impudicamente expostas ao olhar desprevenido de homens, senhoras e inocentíssimas crianças, existem imagens chocantes de homens nus em degradantes cenas BDSM!
Marc Ribot - "We Are Soldiers in the Army" (feat. Fay Victor)
Dias antes das eleições presidenciais francesas do ano passado nas quais Macron e Marine Le Pen se enfrentavam, Marc Ribot e “um grupo de músicos novaiorquinos preocupados” – Jack Dejohnette, Mary Halvorson, Roy Nathanson, Marco Cappelli, Ches Smith – publicavam no “Le Monde” uma carta dirigida “aos nossos amigos franceses que pensam abster-se no domingo”. E alertavam: “A eleição de Donald Trump foi, para nós, um pesadelo. Escrevemos-vos porque, vendo os números das sondagens de Le Pen e ouvindo os debates acerca da abstenção, vivemos um aterrador 'déjà vu'. Esperamos que possam beneficiar da nossa experiência. Como muitos de vós, muitos de nós opuseram-se ao neo-liberalismo de Hilary Clinton e, agora, ao de Macron. Mas a cura para a opressão neo-liberal – em França, Grã Bretanha, Hungria ou EUA – não é a eleição das respectivas Frentes Nacionais. Dizemos: NO PASSARÁN! E apelamos a todos que apoiem uma Frente Popular que as detenha. (...) Não à abstenção! Não a Le Pen!”
Por essa altura, já Ribot tinha dado início à gravação do álbum que, “cinco minutos após a eleição de Trump”, decidira ser inevitável: Songs Of Resistance 1942 – 2018. Inspirado por “Liberation Music Orchestra (1970), de Charlie Haden, Sounds of the Civil Rights Movement, da Smithsonian Folkways, e tudo o que os Last Poets publicaram”, o ubíquo guitarrista da vanguarda de Nova Iorque que Tom Waits, Elvis Costello e John Zorn não dispensam pesou prós e contras – “Há muitas contradições no acto de fazer música com objectivos políticos: como agir contra alguma coisa que detestamos sem nos tornarmos iguais a ela? Porventura, iremos cometer erros mas aprenderemos com eles” –, avançou e, belissimamente acompanhado, não cometeu um único erro. Entre clássicos do cancioneiro antifascista italiano como "Bella Ciao" (esventrada por Tom Waits) e "Fischia II Vento" (transfigurada pela voz de Meshell Ndegeocello em levitação), o desfile de imprecações reorientadas para Trump na canção popular mexicana "Rata de Dos Patas" (“Rata inmunda, animal rastrero, escoria de la vida, (...) espectro del infierno, maldita sabandija, cuánto daño me has hecho”), hinos reconfigurados dos Direitos Cívicos, ou as novíssimas e magníficamente iradas "Srinivas" (por Steve Earle e Ribot) e "The Big Fool" , se Songs of Resistance, cobrindo um reportório de quase 80 anos, parece ecoar Hegel – “aquilo que a História ensina é que nunca aprendemos nada com a História” –, na verdade, dos "partigiani" italianos aos combatentes de Charlottesville, obstina-se em nunca depor as armas.
Intrigante manobra de bastidores no pasquim direitolas online: o texto da Lenita Zhdanov que, na página de entrada (se ainda lá constar inalterado), é intitulado "Marx, Maçonaria e Marcelo", quando aberto, passa a chamar-se "Manual de sobrevivência para um país sob a política dos dois emes: Marx e Marcelo"... a loja da aventalagem local (com uma perícia de trolha informático) terá censurado a Lenita???...
"Poucos livros são tão importantes para os nossos dias do que o 1984, de George Orwell. (...) Orwell percebeu o caminho para o mundo actual de 'fake news', de relativização da verdade e dos factos, da 'verdade alternativa', do tribalismo, do combate ao saber a favor da ignorância atrevida das redes sociais, da crise das mediações a favor de uma valorização da pressa, do tempo instantâneo, do fim do tempo lento, do silêncio, e da pseudopresença num mundo de comunicações vazias, ideal para o controlo afectivo, social e político" (JPP)
STREET ART, GRAFFITI & ETC (CCXX)
Lisboa/Cascais, Portugal, 2018
"Why Is The Right So Scared
Of A Democratic Socialist?"
The Monochrome Set (doc. 2015)
22 September 2018
Marc Ribot - "The Militant Ecologist" (based on "Fischia II Vento", feat. Meshell Ndegeocello)
"Questionado sobre se espera que o primeiro-ministro lhe apresente na reunião desta sexta-feira o nome proposto para o cargo de procurador-geral da República, respondeu: 'Ah, isso eu não posso imaginar, pois se eu estive aqui fechado, como sabem, neste momento particularmente importante da minha vida. Portanto, não tenho a mínima ideia. Veremos" (O ex-"sit-down comedian", 20 de Setembro de 2018, às 19:36)
Foi já publicado há alguns meses mas, no caso, isso é absolutamente indiferente: qualquer disco dos Monochrome Set poderia ter sido gravado há 40 anos (quando Bid – "aka" Ganesh Seshadri – se reuniu com a primeira formação da banda de que, hoje, entre quase duas dezenas de baixas posteriores, é o único sobrevivente), anteontem ou algures no futuro. Complique-se um bocadinho: é tão legítimo vê-los na qualidade de herdeiros naturais dos Kinks como enquanto precursores dos Smiths, Blur, Pulp, Orange Juice ou Divine Comedy, estatuto que nenhum dos incluídos na lista repudia. Tão observadores implacáveis mas distanciados do “humano, demasiado humano”, quanto adeptos do ponto de vista de Marcel Duchamp que aconselhava a “nunca levar o mundo demasiado a sério sob pena de morrer de aborrecimento”, e exercendo a arte num inoxidável perímetro pop clássico, tiveram o seu instante de glória quando uma anónima votação "online" consagrou Strange Boutique (1980) como o 5 824º melhor álbum de sempre. Na última vez que tropecei neles – Platinum Coils (2012) –, Bid, num “musical sobre um internamento hospitalar”, divertia-se com a infinita comédia da mortalidade, a propósito da recente refrega com um aneurisma cerebral. Era também o momento em que, após 17 anos de hiato, a banda se reactivava e publicava um álbum não menos conceptual do que o actual Maisieworld.
São eles mesmos que, agora, me poupam algum trabalho de o apresentar: “Maisieworld é destilado a partir das flores pungentes da malícia artística e representa o apogeu da consumação sonora. Maisie, a vossa anfitriã, guiar-vos-á através de uma sucessão de canções que iluminam a natureza volátil, caprichosa e, essencialmente, instável dos Monochrome Set. Sereis cercados pelos ecos de uma era passada de perícia enquanto vos podereis recompor nestes esgotos sonoros onde as guitarras saltam como cimitarras ferrugentas (...). Vozes jocosas cantarão a vossa frágil natureza orgânica, os tristes sonhos e esperanças que alimentais (...). À saída de Maisieworld, sereis agradavelmente surpreendidos ao descobrir-vos repletos de pensamentos insólitos”. Acrescente-se que Maisie (na capa) é uma Barbie de bronze e o tema geral é algo como Dorian Gray num mundo de robôs, meio "vaudeville" vampiresco, meio "cyber-porn" de recorte espirituoso, excêntrico, absurdo e concebido por medida para um Gentlemen’s Club de frequentadores peculiares e adeptos de excitantes extravagâncias. Isto é, mais do que recomendável.
"Foi erigido entre 1563 e 1584, idealizado por Felipe II, rei de Espanha, de Portugal e dos Algarves, de Nápoles e da Sicília, da Inglaterra e Irlanda"
Num saudável espírito de cooperação ibérica, bem podia propor-se ao Estado espanhol que a carcaça do velho facho fosse acolhida em Santa Comba Dão onde repousaria ao lado do velhaco compincha luso; poderia tirar-se partido de algumas iniciativas já existentes e, reforçando-as, organizar-se, anualmente, um Grande Torneio de "Fachos de Morte" - como nas corridas de touros - entre fachalhada castelhana e fachalhada tuga, sob o alto patrocínio do santuário de Fátima (aquela cena das sinergias e coiso) e abençoado pelo espírito da velha bruxa - isto sim, seria pensar a sério o turismo e o desenvolvimento do interior!
... caso não tenham "percepcionado" bem, isto é apenas a velhíssima treta do eduquês (recauchutada em versão a armar ao pingarelho "científico") sobre o "aprender a aprender" e o "ensino centrado no aluno"
The Early Music Consort Of London/The Morley Consort (dir. David Munrow) - Two Renaissance Dance Bands
Tropeça-se num "continuamos a percepcionar uma lógica balcanizada" e, logo a seguir, noutro "deslocar a centralidade nos conteúdos para a centralidade no sujeito aprendente" e cessa, instantaneamente, a leitura
Há três anos, a propósito da publicação de Contrepoint, de Nicolas Godin (metade dos Air), no qual este se dedicava a fazer definhar a complexa geometria sonora de Bach vertida em suave musiquinha de elevador, pareceu-me justo evocar a extensa – mas não exaustiva – lista de vítimas implacavelmente espezinhadas pela pesada bota do chamado rock-sinfónico-progressivo. Recorde-se apenas que, perante os tribunais de uma Nuremberga musical, como principais réus, haveriam de comparecer, inevitavelmente (entre muitos outros), The Nice/Emerson, Lake & Palmer, responsáveis pelo martírio de Leonard Bernstein, Copland, Sibelius, Janáček, Ravel, Prokofiev, Bach, Tchaikovsky, Ginastera, Bartók e Mussorgsky. Nenhum desses supliciadores se furtará, entretanto, a ficar para a história senão na qualidade de membros de uma “agremiação de modestos calceteiros sonhando com a arquitectura de catedrais” (que, então, julguei oportuno criar).
Anna Meredith seguiu um percurso inverso: com "pedigree" académico da York University e do Royal College of Music, de Londres, foi compositora residente da BBC Scottish Symphony Orchestra e da Sinfonia Viva, de Derby. Mas não tardou que se atrevesse a compor concertos para "beatboxer" e orquestra ou inspirados no universo sonoro das Ressonâncias Magnéticas, para estações de serviço britânicas e jardins de Hong Kong, e, incorporando tudo isso e o apetite pela electrónica, a publicar Varmints (2016), exuberante fuga através de um labirinto de música de câmara, pop, techno e um pouco de tudo à volta. Não deveremos querer-lhe mal – muito pelo contrário – por, colocada perante a possibilidade de, com o Scottish Ensemble, recriar As Quatro Estações, de Vivaldi, ter reagido qual gato assanhado: “Senti-me como se me tivessem proposto que trabalhasse sobre o logotipo do McDonald's!... Não há peça musical mais conhecida do que essa. Respondi que não o faria, nem sequer lhe tocaria com a ponta dos dedos”. Persuasivamente, Jonathan Morton, do Ensemble, fá-la-ia mudar de ideias: o velho cavalo de batalha barroco seria convenientemente retalhado e reconstituído, as parcelas sobreviventes reconfiguradas e articuladas por novo tecido conjuntivo electro-acústico e, sem conflito histórico-estilístico demasiado escandaloso, ressuscitado para o século XXI – sob a designação de Anno – com o apoio (ao vivo) das imagens da irmã de Anna, Eleanor Meredith. Não era indispensável. Mas, a ter de ser, antes assim.
10 September 2018
The iconic urinal & work of art, “Fountain,” wasn’t created by Marcel Duchamp but by the pioneering Dada artist Elsa von Freytag-Loringhoven
"Tiny Anna Calvi stares upwards at an enormous, wall-sized artwork: two screen-printed photographs daubed in urine and coffee of a fully naked, mud-smeared woman deftly pulling a scroll of text out of her vagina. Naturally we're in London's Tate Modern, frowning through the exhibition Feminism and Media, an exploration of gender stereotypes throughout history. Interior Scroll, from performance artist Carolee Schneemann in 1975, aimed to 'present the female body not as an object of contemplation but as a source of creativity'. Calvi, at 16, was preparing for art school: could she have been this kind of artist? 'The 16-year old me definitely didn't have that in mind'. She applauds the motives here but vaginal display as feminist message could never be her style, loathing how 'female artists are always reduced to their body parts, the way men aren't'" ("Q", Outubro 2018)
"O futebol é das máfias nacionais, aquela que mais às claras actua (...). No futebol encontramos também a 'emoção' da comunidade dos adeptos, do 'Porto é uma nação', ou 'o Benfica é Portugal', e no Sporting também deve haver uma variante, etc. E, por detrás disto um grupo de gente amoral, oportunista, conhecedora de todos os esquemas, vive e enriquece por conta do clube, protegendo-se por uma omertà que só é violada quando há competição pelo bolo, dando em troca aos adeptos 'vitórias'”(JPP + reler aqui)
Em 1913, Luigi Russolo, no manifesto Futurista L'Arte dei Rumori, decretava: “Após terem sido conquistadas por olhos Futuristas, as nossas múltiplas sensibilidades ouvirão, enfim, com ouvidos Futuristas. Os motores e máquinas das nossas cidades industriais serão, um dia, conscientemente afinados de modo a que cada fábrica se transforme numa embriagante orquestra de ruídos”. Nas “liner notes” de Music For Airports (1978), Brian Eno anunciava os parâmetros por que a "ambient music" haveria de se reger: “Deverá ser capaz de acomodar diversos níveis de escuta sem privilegiar nenhum em particular. Será tão ignorável quanto interessante”. O número 2 do “Bikini Kill Zine” de 1991, publicava o Riot Grrrl Manifesto assinado por Kathleen Hanna”: “Acredito, com toda a força do meu coração, mente e corpo, que as raparigas constituem uma força revolucionária que pode transformar o mundo e que o transformará”. Em 2012, Nadezhda Tolokonnikova, perante um tribunal russo fantoche, expunha o programa das Pussy Riot: “Demos concertos nos túneis do metro, em cima de autocarros, no telhado de centros de detenção, em lojas de roupa e na Praça Vermelha. Acreditamos que a arte deverá ser para todos”. No Nu-Troglodyte Manifesto (2015), Jarvis Cocker proclamava: “Fujam do tagarelar constante, interminável e sem sentido que nos distrai de quem realmente somos e do que realmente queremos”.
Em Agosto de 2018, num texto em que apresenta o terceiro álbum, Hunter, Anna Calvi junta-se à ilustre lista de músicos produtores de manifestos e declara: “Pretendo ir além do género. Desejo não ter de escolher entre o masculino e o feminino em mim. (...) Ando à caça de alguma coisa – desejo experiências, desejo acção, desejo liberdade sexual, desejo intimidade. (...) Desejo repetir infinitamente as palavras ‘rapariga, rapaz, mulher, homem’ até lhes encontrar os limites, contra a vastidão da experiência humana. Envergo o meu corpo e a minha arte como uma armadura mas também sei que ser verdadeira para comigo é expor-me a ser ferida”. Abertamente “queer e feminista” – mas as anteriores "I’ll Be Your Man" ou "Suzanne And I" haviam já aberto as hostilidades das políticas de género –, troca algo da amplitude e elaboração cinemáticas de Anna Calvi (2011) e One Breath (2013) por uma urgência quase militante de guitarras incendiárias e palavras de ordem cifradas ("As a Man", "Don’t Beat The Girl Out Of My Boy", "Alpha", "Chain"), em belíssimo registo de libreto operático “com uma causa”.
"I've been a science educator all my adult life, and most of the essays collected here stem from the years when I was the inaugural Charles Simonyi Professor of the Public Understanding of Science. When promoting science, I've long been an advocate of what I call the Carl Sagan school of thought: the visionary, poetic side of science, science to stir the imagination as opposed to the 'non-stick frying pan' school of thought. By the latter I mean the tendency to justify the expense of, for example, space exploration by reference to spin-offs such as the non-stick frying pan - a tendency I have compared to an attempt to justify music as good exercise for the violinist's right arm" (Richard Dawkins - Science in the Soul)
Cinco anos depois de One Breath, Anna Calvi publica o terceiro álbum, Hunter. Um quase-manifesto“queer e feminista” acerca do qual afirmou tê-lo desejado “primitivo e belo, vulnerável e forte, o caçador e a presa”, uma arma “tranquilamente audaciosa e provocante” nas políticas de género. Com guitarras incendiárias e a participação de Adrian Utley (Portishead) e Martin P. Casey (Bad Seeds).
Dos seus dois primeiros álbuns para este Hunter, sinto que existem diferenças mas, por enquanto, não sou capaz de as identificar exactamente. Pode dar-me uma ajuda?
Pretendi criar algo que fosse mais visceral, animal e selvagem e menos cerebral, textos mais imediatos e muito concentrados na ideia de conduzir até ao extremo o contraste entre as sensações de força e poder e de vulnerabilidade e intimidade. Provavelmente, de uma forma bastante mais deliberada do que, até aqui, tinha feito.
Numa entrevista recente, declarou que o que buscava era “a simplicidade, algo que fosse tranquilamente audacioso e tranquilamente provocante”... é isso?
Sim, embora, por vezes, não seja assim tão tranquilo mas mais livre e extrovertido... No entanto, por exemplo, numa canção como "Hunter", essa ideia que referiu aplica-se perfeitamente. Tudo isto, na verdade, já acontecia nos dois álbuns anteriores. Simplesmente, agora, desejei que tudo isso surgisse com uma muito maior definição.
A sua ideia de encarar cada canção como um mini-filme manteve-se em Hunter ou abdicou dela a favor dessa ambição de tornar tudo mais directo e incisivo?
Não, não foi por aí, nada disso se alterou. Apenas desejei alcançar a máxima nitidez possível.
Descreve Hunter como “um álbum queer e feminista” que lhe permitiu “exprimir-se livremente e sem se preocupar com o modo como poderá ser julgada acerca do que deveria fazer com o seu corpo”. Pode dizer-se, então que, no centro deste disco, existe uma agenda de políticas de género?
Não se trata de impôr uma agenda mas de fazer passar a ideia de que não devemos sentir-nos obrigadas a assumir os estereótipos femininos mas sim explorarmos tudo aquilo que uma mulher pode realmente ser em vez daquilo que nos dizem que ela deverá ser. A personagem de "Hunter", por exemplo, procura o prazer sem qualquer espécie de vergonha. A nossa cultura está impregnada de fantasmas de mulheres enquanto objectos de caça dos homens. Quis inverter os papéis: a mulher como caçadora que se apodera da sua presa, masculina ou feminina. Basta de tolerância em relação aos limites que, supostamente, definiriam como uma mulher se deve comportar. Por que motivo haveria de aceitá-los apenas por causa da minha anatomia?...
Tal como a St. Vincent/Annie Clarke, a Shara Worden (de My Brightest Diamond), a Regina Spektor ou a Julia Holter, a Anna faz parte de um grupo de músicas e "songwriters" contemporâneas que tiveram uma formação musical clássica: estudou violino e guitarra na Universidade de Southampton. Isso teve alguma influência determinante na música que viria a compor e tocar mais tarde?
Aquilo que estudar violino me fez, essencialmente, compreender é que é uma aprendizagem tão tremendamente dura que é indispensável uma dedicação total para que o resultado valha verdadeiramente a pena.
Mas, para além disso, contribuiu, de alguma forma para lhe proporcionar algum tipo de modelos musicais?
Não. Quando escrevo canções, nunca o faço de um ponto de vista racional ou teórico. É um processo puramente emocional. E, muito particularmente neste álbum, quis afastar-me por completo de uma atitude demasiado pensada: é muito mais um disco do corpo do que da cabeça.
Pode dizer-se que se esforçou deliberadamente por esquecer o que aprendeu na universidade?
Não foi um esforço deliberado. Mas o mais importante que guardei da minha passagem pela escola de música foi apenas a possibilidade de escutar tanta música diferente e a que, de outra forma, se calhar nunca poderia ter tido acesso.
No início, antes do seu primeiro álbum (2011), apareceu mais ou menos incluída naquilo que ficou conhecido como a cena "nu-folk" londrina da altura. Gravou com Johnny Flynn e com os Mumford & Sons e teve uma banda, Cheap Hotel. Foram passos importantes?
Se quer que lhe diga, são coisas em que, agora, nunca penso. Na altura, claro que foram experiências importantes através das quais aprendi uma série de coisas. Mas, depois, segui em frente e, nesta altura, não são muito mais do que memórias vagas.
Há quatro anos, quando co-escreveu uma canção – "Falling Back" – com Marianne Faithful para o álbum dela Give My Love To London, confessou que, sendo o processo de composição para si, uma coisa tão íntima e privada, nunca supôs que, desse encontro com ela em Paris, pudesse surgir alguma coisa... mas, em 20 minutos tinham a canção concluída!
É verdade, procuro sempre o máximo de solidão e de privacidade quando componho. Por isso, fiquei absolutamente espantada com o à vontade que a Marianne demonstrou para escrever uma canção na companhia de uma pessoa que não conhecia de lado nenhum e ser capaz de confiar nela. É, na verdade, uma mulher incrível.
Nick Cave e Brian Eno cobriram-na de elogios quando publicou o primeiro álbum, tendo Eno afirmado que era o acontecimento musical mais importante desde o aparecimento de Patti Smith. Esse tipo de comparações é-lhe desconfortável?
Suponho que o Brian Eno estava apenas a exprimir a sua admiração pelo meu trabalho e estou-lhe grata por isso. Quando se compara um artista com outro, penso que isso, realmente, não é importante, não o afecta. Compreendo que, por vezes, é necessário utilizar palavras e associações de ideias como referências para descrever uma música a quem ainda não a escutou . Não me incomoda nada.
A participação de Adrian Utley (Portishead) e Martin P. Casey (Bad Seeds) neste álbum obedeceu a algum objectivo especial?
Foi uma resposta a necessidades específicas e a aspectos particulares que me interessavam. Por exemplo, não desejava que se escutassem demasiados instrumentos de cordas reais. Os sintetizadores sempre me soaram como instrumentos orquestrais e acho que o que o Adrian consegue realizar com eles é muito interessante e exactamente aquilo que fazia falta às músicas. Desta vez, também precisava de um baixista e foi o Nick Launay (o produtor) que sugeriu o Martin que é um músico extraordinário.
Enquanto guitarrista, quem foram os seus modelos?
Sempre tive a maior admiração por Jimi Hendrix desde que vi e ouvi os registos dele no festival de Woodstock. Foi uma inspiração e um modelo que nunca mais me saiu da cabeça e a que, de uma forma ou de outra, acabo sempre por regressar.
Trocou o violino pela guitarra e nunca mais voltou a pegar nele como instrumento solista...
Não, ainda o toquei em alguns arranjos do primeiro álbum mas, como solista, nunca mais lhe peguei. É preciso estudar e praticar sem interrupções e, uma vez que se pare, é muito difícil recuperar o que, entretanto, se perdeu.
Um dos meus grandes sonhos seria poder vê-la, em concerto e/ou em disco, juntamente com a St. Vincent, outra fabulosa guitarrista actual... Há alguma hipótese?...
(risos) Nunca se sabe... tudo pode acontecer, embora não haja planos, de momento. Conheço a Annie, é uma óptima pessoa e uma música excelente... logo se verá.