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22 January 2024

A TERCEIRA VIDA DO FADO 

No que às origens do fado diz respeito, não é demasiado arriscado dizer-se que "no princípio era o verbo": “O fado, nos seus primórdios, representou o último estádio do romanceiro tradicional (...) o qual ao longo dos séculos, foi perdendo o carácter épico inicial e foi-se progressivamente novelizando até versar quase exclusivamente assuntos de carácter amoroso ou trágico-sentimental. (...) Esse fado popular, esse fado das ruas, de faca e alguidar, dos ceguinhos, não é outro senão o substracto novelesco do romanceiro tradicional, e o subsequente manancial das canções narrativas, afinal, o primitivo, o primacial, o originário fado, a fonte, a génese, o tronco primevo do nosso fado”, defende José Alberto Sardinha em A Origem do Fado (2010). Mas - só para citar outro exemplo -, já na 7ª edição (1878) do Dicionário de Morais, se escrevia: "Fado, poema do vulgo, de caracter narrativo, em que se narra uma história real ou imaginária de desenlace triste, ou se descrevem os males, a vida de uma certa classe, como no 'fado do marujo', da 'freira', etc. Música popular, com um ritmo e movimento particular, que se toca ordinariamente na guitarra e que tem por letra os poemas chamados 'fados'". E, agora que - quatro anos depois de, em Lina_Raul Refree, ter praticamente desmaterializado o reportório clássico de Amália - abraça a lírica de Camões, Lina, interogando-nos, segue por caminho próximo: "Quando damos espaço às palavras, elas acabam por fazer mais sentido. Se cantarmos um fado a cappela, isso não é fado? O 'Povo que Lavas no Rio', cantado a cappela, sem instrumentos, alguem poderá dizer que não é fado? Só voz e palavra não é fado? O fado vive da palavra e para eu passar a mensagem que pretendo, preciso de entender essa palavra". (daqui; segue para aqui)

"Desamor"

27 August 2023

GRINALDA
 

As "broadside ballads", poemas narrativos com origem nos menestréis dos séculos XIV e XV (equivalente britânico do romanceiro tradicional do qual terá emergido o fado português primitivo), mais tarde impressas em papel e vendidas pelas ruas, feiras e mercados de Inglaterra, Irlanda e América do Norte, chegaram a ser produzidas em grande número - no final do século XVII vender-se-iam em Inglaterra cerca de 400 000 exemplares - e popularizar-se-iam coladas a melodias pré-existentes ou criadas de raiz para uma nova balada. Tanto se debruçavam sobre temas de caracter quase jornalístico - desastres, acontecimentos políticos e sinais inexplicados de prodígios, milagres e assombros - como assumiam o caracter utilitário de canções de copos, celebração do amor e carnalidades afins, com a suposta intenção de moralizar e divertir. Na maioria, de origem urbana, quando eram publicadas várias num mesmo "caderno", essas colecções eram designadas por "garlands" (grinaldas). (daqui; segue para aqui)

19 June 2018

O MOMENTO ANTES DE DISPARAR A SETA  (I)

À minha frente está o homem que, a meias com um pastor de cabras, alentejano e analfabeto, escreveu a mais extraordinária canção de sempre em língua portuguesa, "A Morte Nunca Existiu". Está registada num álbum de 1972, Margem de Certa Maneira, e, sobre uma melodia enganadoramente simples, contém tudo o que, desde o De Rerum Natura, de Lucrécio, até hoje, foi humanamente possível dizer acerca da vida e da morte: “Tudo o que for vivente tem uma queixa que o percorre e, quando um dia a vida morre, a morte morre também”. Ele, José Mário Branco, o autor da música, recorda António Joaquim Lança, o poeta-filósofo de Peroguarda, como um “velho, alto, esguio, sentado com o cajado, num calhau à beira da estrada, a dizer os poemas dele. De cor”. Mas recorda-se de muito mais do que isso: de quando, ainda adolescente, descobriu as músicas tradicionais do mundo e, no mesmo passo, as vanguardas do século XX; a importância de, algures aí pelo meio, nunca perder a noção de “um chão debaixo dos pés” sem, por isso, dever olhá-lo como propriedade exclusiva; os anos de intenso activismo político vistos pelo ângulo de quem tem a convicção de que “o artista não modifica a sociedade”; a certeza de que a História não chegou ao fim embora, por estes dias, enxergue “o futuro em ruínas”. É, sem dúvida, um bom momento para recordar, agora que, após a reedição, no final do ano passado, de Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades (1971), Margem de Certa Maneira (1972), A Mãe (1978), Ser Solidário (1982), A Noite (1985), Correspondências (1990), Ao Vivo em 1977 (gravado no CCB, Coliseu do Porto, Teatro da Trindade e Teatro Gil Vicente) e Resistir É Vencer (2004), publica Inéditos 1967-1999, colecção de 26 peças soltas – para o teatro, cinema, discos de homenagem, singles, EP – nunca antes digitalizadas e/ou sequer registadas em estúdio. 



    Confesso que não estava verdadeiramente à espera que, para todas estas reedições, fosses conceder entrevistas, uma vez que, nestes últimos, largos anos te entregaste deliberadamente a uma espécie de silêncio trapista... 

Pode ter havido um período assim... eu não sou nada social nesse aspecto, não vou aos sítios, não estou presente nos media. 

    Não serias nada social mas eras socialmente bastante interveniente... 

Sim, sim. O mundo está esquisito e observamo-lo, analisamo-lo... nós tivemos um percurso interessante, um percurso em que havia um projecto político. Eu sempre fui absolutamente incapaz de elaborar um projecto político, absolutamente incompetente em política estrita. Mas fui sempre reconhecendo-me em projectos existentes. Agora, como dizia o outro, o futuro está em ruinas. Percebo que o mundo está muito mal mas não compreendo bem a estrutura desse problema. Percebo vagamente coisas até mais culturais do que políticas, mais históricas do que políticas... 

    Mas, em todas as épocas, não existiu sempre alguém que dissesse que o futuro estava em ruínas? 

Possivelmente. Mas o que, para mim, é claro é que esta é uma fase em que se juntam muitos dados novos: a decadência do estado-nação, a globalização de tudo... e isto tem um grande, grande impacto em todas as questões culturais. Paralelamente, existe também a emergência dos nacionalismos... Mas só como sobressaltos de direita. Os nacionalismos actuais identifico-os muito com posições retrógradas de não aceitação do percurso da humanidade... o capitalismo está a conseguir fazer aquela coisa extraordinária com que o Marx sonhava no século XIX: a globalização da luta de classes. 

    Mas não se dá por ela... 

Não, mas a globalização do capitalismo possibilita – e até exige –, a prazo, a globalização da luta de classes. Por isso, não me reconheço nada nas lutas de carácter nacionalista. Politicamente falando. Culturalmente, já é diferente. Não me sinto nada interessado nem envolvido, por exemplo, no independentismo catalão. Não tenho nada a ver com uma coisa em que estão juntos os operários e os patrões catalães, não tenho nenhuma razão para defender aquilo. Isto, apesar de, para mim, a cultura catalã ser muito interessante e muito importante. 

    Agora que a Catalunha pretende separar-se, seria um óptimo momento para Portugal aderir à Federação Ibérica... 

O Oliveira Martins... o iberismo... Mas a federação já é mundial. Olhamos para a estrutura do independentismo catalão e a maior parte é direita requentada. E, depois, há uma esquerda que vai atrás dessas coisas devido ao lastro do passado. Noutra época, poderia fazer algum sentido mas, agora, não faz sentido nenhum. Para não falar de todos os outros movimentos nacionalistas de direita ou até de extrema-direita que há pela Europa fora. 

    É curioso pensar como muito daquilo em que estiveste envolvido no pré e pós-25 de Abril – e que já vinha de trás, dos Lopes-Graça e dos Béla Bartók – aquela ideia de redescobrir, desenterrar, invocar a alma do povo profundo, ir para o campo recolher a música tradicional que falava intensamente das matrizes culturais fundadoras, não seria perigosamente simétrico disto que tens estado a falar? 

Não, acho que era muito diferente. Essa relação com a raiz cultural, com as origens, é extremamente importante para sentir o chão debaixo dos pés. Para sentir uma pertença.  

    Mas, mesmo nessa altura, já era perfeitamente possível apercebermo-nos de quanto esse chão já só sobrevivia numa parte muito recuada da memória das pessoas mais idosas... 

E porquê?... Nós tivemos quase meio século de ditadura cujo trabalho cultural foi reduzir essa riqueza espantosa a meia dúzia de clichés. O que se dá depois de 74 – já, evidentemente, com muito trabalho anterior dos etnomusicólogos – é a exposição, o desenterrar de uma riqueza musical extraordinária que estava enterrada. Como os mamutes enterrados no gelo da Sibéria, descobrimos, de repente, que, num pequeno país, todo feito de micro-regiões, micro-climas, micro-culturas, há uma variedade e uma riqueza musical incrível. A riqueza poética já era mais uniformizada na tradição, esse tipo de poesia não evoluiu, estava muito relacionada com a vivência da religião, do trabalho, do amor, do namoro. Mas, musicalmente, quando eu tinha 16, 17 anos, foi muito importante a minha aprendizagem com o Luís Monteiro, na Escola Parnaso, do Porto. Enquanto etnomusicólogo, ele explicou-nos a relação da música popular tradicional com a vida. Tinha a melhor discoteca etnográfica da Península Ibérica, recebia tudo o que saía da Smithsonian, da Columbia... e tinha conhecimento do trabalho dos etnomusicólogos anteriores ao Giacometti e ao Graça. Um dia chegou à Parnaso e fez-nos ouvir – a mim, ao Jorge Constante Pereira, ao Ricardo Sousa Lima – um disco que todos imaginámos tratar-se de canto alentejano... o ponto, o alto, o coro a responder. Mas não percebíamos a letra. Claro que não podíamos perceber, era da Ucrânia! Era o celeiro da Rússia em vez de ser o celeiro de Portugal. As planícies, o trigo, as searas, o operariado agrícola, trabalhadores pagos à jorna... Ele tinha também um projecto que não sei se chegou a concretizar que era o estudo através da música das grandes migrações, a evolução das famílias linguísticas. Outra coisa importante para a nossa cultura euro-cêntrica, foi ele ter-nos ajudado a distinguir entre o folclore rural e a música erudita, não só na Europa mas no mundo inteiro. O que ele mais gostava eram os gamelãs da Indonésia. E explicava-nos que, tal como as ragas da Índia, era uma forma de música erudita. Mas, para voltarmos ao princípio: é uma riqueza que tem origem aqui mas pertence ao mundo inteiro. Não é propriedade de ninguém, é propriedade de todos! Não é aquela atitude, herdada ainda dos nacionalismos reaccionários do século XX, de “isto é nosso”. Nunca pensei assim, fui sempre muito comparativo, muito integrante em relação ao que havia pelo mundo fora. E é curioso que veio, depois, a inscrever-se aí o livro do José Alberto Sardinha sobre a origem do fado.
  
    Leste-o? 

Li. Provocou aquela bronca com o Rui Vieira Nery mas veio provar por A mais B que existe uma relação muito estreita entre géneros musicais. Não sei se há algum estudo deste tipo sobre o tango e a milonga, na Argentina. Mas têm, de certeza, alguma coisa a ver com o campo, ou melhor, com a migração do campo para a cidade.  

    No caso do fado, segundo a tese do José Sardinha, tendo como agentes disseminadores os músicos cegos mendicantes que circulavam de terra em terra, de feira em feira... 

Música de cordel... Agora, estou a acabar um trabalho de direcção musical com uma fadista e decidimos incluir no disco o fado Mouraria, um dos três fados intemporais que há e que já foi cantado e recantado, estilado por toda a gente. Ela procurou o seu estilo pessoal do Mouraria. E tem um viola com uma maneira de tocar incrível, com um balanço enorme, um lado mesmo tosco, soa a viola artesanal... e tu sabes que o resultado daquilo é uma chula? (risos) É incrível. Eu disse logo: esta faixa do disco vai ser uma demonstração da tese do José Sardinha! A viola é muito percutida e o estilo dela tem muito a ver com as chulas ao desafio do litoral e do Baixo Minho. 

    Vale a pena recordar que o Lopes-Graça detestava visceralmente o fado... 

Ele e eu! Nós fomos formados nessa ideia... 

    Que já vinha também, por exemplo, do Eça de Queiroz que considerava o fado uma coisa abjecta, rasca, do submundo... 

Música lumpen. De certa forma, foi. Mas não foi só isso. Tem a ver, essencialmente, com as migrações internas, com o crescimento das cidades à custa da mão de obra rural. (continua)

05 December 2013

DESALINHADOS, SIM



Enquanto a pátria ardia, violentamente dividida entre direita e esquerda, algures pela linha do Estoril, a Banda do Casaco, um colectivo de geometria desvairadamente variável e alimentado a música medieval, folk bretã, tradicional portuguesa, improvisação de raiz jazzística e outros experimentalismos (musicais e poéticos) mais além, iniciava um percurso absolutamente singular: politicamente agnósticos – logo, suspeitos – mas nem por isso menos ávidos de opinar (“aprendizes da política, só na tactica do ‘empocha’, vem a tempestade mítica e a cabeça dá na rocha, mal a gente vem ao mundo, logo a gente vai ao fundo”, em "Natação Obrigatória", tanto cronicava o final da década de 70 como profetizava o futuro) e musicalmente desalinhados da predominante “intervenção”, António Avelar de Pinho (ex-Filarmónica Fraude e autor dos textos) e Nuno Rodrigues (ex-Música Novarum, compositor de todas as músicas “excepto a primeira do primeiro álbum” e, posteriormente, editor e "publisher"), foram o núcleo agregador. Em torno deles, durante nove anos (de 1975 a 1984) e sete álbuns, gravitaram quase seis dezenas de músicos, de Carlos Zíngaro a Helena Afonso, Celso de Carvalho, José Eduardo, Jerry Marotta, António Emiliano ou Né Ladeiras. Agora que a discografia integral é reeditada em duas luxuosas caixas com todas as mordomias acessórias habituais (DVD, raridades, extensos livretes contextualizadores) é o momento ideal para dar a palavra a Nuno Rodrigues e deixá-lo narrar a história.

A Banda do Casaco não vivia, evidentemente, fechada numa bolha mas tinha uma quase alergia ao espírito da sua época – anos 70 pós-25 de Abril e primeira metade de 80 – em que, particularmente na música, era praticamente obrigatório “ser de esquerda” e estar “ao serviço do povo”. Nas entrevistas da altura que surgem no DVD essa hostilidade é evidente. Isso era mesmo uma marca identitária do grupo?
Eu não via aquelas imagens há anos e, quando fui ao arquivo da RTP, fiquei um bocado aflito ao ouvir-me dizer “Nós somos burgueses!” Na altura, nunca o tinha perguntado a ninguém e achei aquele plural um pouco abusivo. Mas havia, de facto, um desalinhamento muito grande. E, quarenta anos depois, eu continuo bastante desalinhado. Olho a democracia com bastante timidez. Não me quero definir como um não-democrata mas tenho grandes reticências. O que há é um “por cima” e um “por baixo”. Quem está em cima sabe que irá estar por baixo e quem está em baixo, sabe que passará a estar em cima. E, depois, há quem esteja nas laterais.
Mas a Banda do Casaco parecia fazer gala desse desalinhamento o que, à época, se tornava, instantaneamente, suspeito...
Parece-me que era verdadeiramente sincero, não foi procurado. O António era também um desalinhado (muitas vezes, até andávamos desalinhados um com o outro e isso foi-se sentindo à medida que os anos iam passando).
A vossa reputação era tão duvidosa que, durante um concerto na Aula Magna, em 1976, em que tocaram vocês, a Brigada Vítor Jara e os Trovante, chegou a circular o boato de que a Banda tinha acabado de chegar de Londres onde teria gravado o hino do MIRN [fugaz partido de extrema-direita fundado por Kaúlza de Arriaga]...
O MIRN era a coisa mais reaccionária que havia. Só soube disso através da Né Ladeiras. Nesse concerto da Aula Magna, ela ainda estava com a Brigada Vítor Jara. Só quando, mais tarde, se juntou a nós é que nos contou essa história. Claro que houve uma provocação da nossa parte: entrámos de casaca justamente para provocar. Só que não estávamos à espera que aquilo estivesse tão escaldante. Tivemos de dizer ao Carlos Barreto para entrar em palco e ir improvisando até ver em que paravam as modas. Começámos a imaginar que íamos ser comidos vivos! A verdade é que eu nunca me vi como um tipo de direita. Tínhamos uma enorme curiosidade por uma grande quantidade de coisas mas essa curiosidade não estava virada para a direita. Parece-me que a Banda, agora, é muito mais consensual do que era na altura.
O que é interessante é que, tanto nessa altura como, em certa medida, ainda agora, existia uma relação muito idêntica em gente de esquerda e de direita com a cultura tradicional: naquela defesa dos valores culturais nacionais, das marcas antigas e “autênticas” que-nos-definem-como-povo... e, apesar de a Banda do Casaco ser muito mais experimental e anarquista, esse apego à música tradicional e às recolhas era exactamente igual ao que fazia ferver o GAC (menos a agenda política e as palavras de ordem)...
Tens noção de que estás a falar do outro grupo contemporâneo mais importante, não tens? Claro que esses nacionalismos e separatismos, hoje, em plena globalização, já não fazem muito sentido. Mas que outras coisas poderíamos nós ouvir? Lembro-me, já noutra fase, do Megalopolis, do Herbert Pagani: “Citoyens, citoyennes!...” e, depois, a pasta dentífrica governamental e os spots publicitários... fiquei doido com aquilo. E não tinha uma grande preocupação de catalogar à esquerda ou à direita. Houve uma altura em que pensei que era anarquista ou que era bombista. Mas sem bomba porque também se a tivesse não sabia onde a ia pôr. O António Pinho, no manifesto, dizia que “gostamos de achar bem quando se trata de achar bem e gostamos de achar mal quando se trata de achar mal”.

 A própria ideia de ter um manifesto era coisa muito da época...
Só que era um manifesto que não nos colocava em lado nenhum! Aliás, também comecei pela parte da música medieval e gostava de coisas que tinha aprendido com o maestro Francisco d’Orey. Eu vivia com as janelas todas abertas lá para fora. Cheguei a ir com a Música Novarum a comícios na faculdade de Direito: aparecia com uma menina morena e outra loira a cantar aquelas coisas quando se estava em plena época da música de intervenção. Eu pensava “mas a noção do belo continua”. Depois, cada um terá a sua.
O salto dessa iniciação musical para o que veio a ser a Banda Do Casaco apenas ocorreu quando o António Pinho entrou na equação, não foi?
Sim. Mas é preciso entender o que era a Banda do Casaco. Começou por ser apenas um projecto e acabou por ser um conjunto de projectos. Se calhar, na verdade, nunca existiu um grupo. Eu e o António começávamos por escrever letras e músicas sem músicos. E, conforme as escrevíamos, assim os íamos buscar. Estive a contá-los: passaram por lá 56 músicos. Não era um grupo de estúdio e, muito menos, um grupo ao vivo. Não vou dizer que tenha sido uma escolha sábia mas conseguiu juntar-se um grupo de pessoas predispostas para o experimentalismo. Sempre tive uma certa pancada por experimentar sonoridades diferentes. Ia buscar instrumentos que não sabia tocar e tentava tocá-los: ponteira, bandoneon, ocarina, uma cromo-harp que comprei na Bretanha... Era, primeiro, um desafio para ver se conseguia aprender a tocá-los. Depois, era a questão do som: eu tocava com três cordas da guitarra afinadas em Ré. Mas, até dos tipos que tocavam comigo na banda, só o António Pinheiro da Silva me perguntou, uma vez, como é que eu tocava na guitarra porque ele não conseguia sacar a mesma sonoridade. Musicalmente, o que me interessava mais era aquilo que estava a acontecer na Bretanha, as Soeurs Goadec, Alan Stivell, não falando dos Malicorne. Tudo isso era, para mim, mais interessante do que, propriamente, o folk britânico se bem que também gostasse muito da Maddy Prior, da Sandy Denny, do Richard Thompson...


Sentes que a Banda era um grupo de tal modo singular que nunca poderia deixar descendência ou, apesar disso, consegues identificar alguma?
Não sei, suponho que alguma influência deveremos ter tido. Mas, se me perguntares por casos representativos, não me recordo de mais que um grupo chamado Pássaro que, há tempos, descobri na net a tocar o ‘Despique’, da Banda do Casaco. Houve aqueles grupos de que já falámos como o GAC e mesmo os Gaiteiros de Lisboa ou a Sétima Legião, embora, a Sétima, às vezes, me parecesse que tinha coisas demasiadamente "british". Mas, pelo lado do prazer da recolha também gostei imenso de ter produzido o álbum do Almanaque, do José Alberto Sardinha, que era a antítese do que nós fazíamos, era música tradicional em estado puro.

13 February 2012

PÔR A RENDER



Vários - Fado Património Imaterial da Humanidade (4 CD)

Não é absolutamente indispensável ser vidente para enxergar que, por muito que se exaltem as virtudes do pastel de nata como via redentora da economia lusa, nos próximos tempos, o que irá, inevitavelmente, ser posto a render será o fado. A canonização pela UNESCO não assinalará, sem dúvida, o princípio do fim da crise (ainda que, pelo soar das trombetas, em Novembro, quase parecesse que sim), mas, por ela devidamente estimulada, não haverá editora ou distribuidora grande, pequena ou média, que não trate de engendrar um qualquer esperançoso plano de publicações – com ou sem a aposição do selinho “Fado Património da Humanidade”, mas, de preferência, com -, fruto de escavações arqueológicas em catálogos próprios ou alheios, dedicado ao superior desígnio nacional que, sob o alto patrocínio de futebolistas e outros académicos, nos intima a “orgulhar-nos”. No estado actual das coisas, será um pouco como aquelas pessoas que gostam de repetir que “lá na terra, éramos oito irmãos, andávamos andrajosos e descalços e só havia uma sardinha para dividir por todos, mas... tenho muito orgulho na minha aldeia!”. Sendo assim, mais vale, então, orgulharmo-nos de uma edição como esta que – ao contrário da desastrosa anterior Fado Portugal/200 Anos de Fado – oferece um panorama compreensivo (e compreensível) do género: dois CD de clássicos (de Marceneiro e Amália a Carlos Ramos e Teresa de Noronha, com passagem por José Afonso), outro dedicado à guitarra portuguesa (de Armandinho a Paredes e Ricardo Rocha) e um último aos novos (Camané, Cristina Branco, Carminho, Ana Moura...). Não menos interessante é o texto de José Alberto Sardinha onde expõe a tese sobre as raízes do fado no romanceiro tradicional, desenvolvida no seu livro de 2010, A Origem do Fado.

07 February 2011

TOCAM CAMPAINHAS



Campanula Herminii - Cumeada




César Prata - Canções de Cordel

A tese de Brian Eno segundo a qual a arte seria uma máquina de simulação das infinitas possibilidades da vida real – das mais inócuas às radicalmente extremistas – mas resguardada da hipótese irremediável de tragédia, é sedutora porém, naturalmente, não esgota a matéria-prima especulável. Com epicentro na cidade da Guarda, considerem, então, a concepção de que a actividade artística constitui um aparelho de amplificação e ramificação da realidade. Duas palavras: “campanula herminii”. Primeira derivação: trata-se de uma espécie botânica endémica na Península Ibérica, entre a Sierra Nevada e a Serra da Estrela. Segunda derivação: arte de grandes segredos, o fabrico de campainhas de bronze na aldeia de Maçainhas, na Guarda, era praticado em fundições familiares, nas quais – para manter ocultos técnicas e procedimentos – apenas o professor e o padre da aldeia podiam entrar; hoje, apenas dois artesãos persistem em Maçainhas.


Campanula Herminii - "Ladeira Acima"

Terceira derivação: Campanula Herminii, aliás Marcos Cavaleiro, Miguel Cordeiro, Pedro Lucas e Mário Costa, grupo de percussões, electrónica e timbres associados (bandoneon, concertina, marimba, banjo, melódica, serrote e trompete) de convidados vários, cuja música – espécie de essência floral laboriosamente ultradiluída – parte do som das campainhas de bronze de Maçainhas, reimagina cenários serranos e rotas de transumância e enxerta-os em memórias imaginárias e espaços de atmosferas translúcidas que, facilmente, diríamos acolherem esboços de Steve Reich para uma Penguin Cafe Orchestra tão monasticamente austera quanto a ordem do convento do abade devasso, Brian Eno (ei-lo que reentra na conversa, o também perfumista de Neroli), o determinaria. O Teatro Municipal da Guarda co-produziu e publicou Cumeada e, com redobrado mérito, reincidiu em Canções De Cordel, de César Prata, ele dos mui excelentes Chuchurumel, do posterior Assobio e do anterior capítulo Canções Do Ceguinho (2003), primeiro tomo do projecto agora retomado.















Se, em A Origem Do Fado, José Alberto Sardinha defende que “Esse fado popular, esse fado das ruas, de faca e alguidar, dos ceguinhos, não é outro senão o substracto novelesco do romanceiro tradicional, e o subsequente manancial das canções narrativas, afinal, o primitivo, o primacial, o originário fado, a fonte, a génese, o tronco primevo do nosso fado”, César Prata, em trajectória paralela, emparelha onze tradicionais “de cordel” com um tema de Frederico de Brito (estojo para a magnífica voz de Vanda Rodrigues), ornamenta-os de cavaquinho, harmónica, kazoo, melódica, guitalele, acordeão, resonator guitar e (regresso ao ponto de partida) campainhas, desmaterializa-os via-laptop e cumplicidades de Kubik e B. Riddim, e, no mesmo fôlego, bifurca o tempo entre “murder ballads” proto-fadistas e assombrações digitais egitanienses.

(2011)

04 February 2011

MERGULHAR



Amália Rodrigues - Com Que Voz (duplo CD)

Em 1990, David Mourão-Ferreira terá chamado a Amália "um heterónimo de Portugal". Não é, seguramente, um disparate afirmá-lo (mais ainda se aceitarmos como boa a recente tese de José Alberto Sardinha, em A Origem do Fado, segundo a qual a raiz deste género musical não é exclusivamente lisboeta mas sim generalizadamente nacional), embora seja, talvez, um ponto de vista demasiado empobrecedor - por excesso de patriotismo, pecado comum e assaz simétrico da "fadista" autodepreciação lusa - do génio de Amália Rodrigues. Tal como ela própria confessava não sentir particular orgulho nem tristeza decorrentes da sua origem popular ("sou do povo por condição"), o facto de ter nascido em Portugal e de ter oferecido ao fado a projeção universal que se conhece não é questão muito diferente do que, falando de si, alguns anos depois, Sérgio Godinho deixaria luminosamente claro em económicas palavras: "Vim ao mundo, por acaso, em Portugal, não tenho pátria, sou sozinho e sou da cama dos meus pais".



Sim, Amália era portuguesa, sim, a música que ela assombrosamente cantava provinha de uma herança vetustamente local, mas o que a elevava acima de todos os outros era o seu infinito talento de intérprete e recriadora de algo que, até ao seu aparecimento, fora apenas uma manifestação (sub)cultural popular "típica" e, frequentemente, mal amada. E, convém não o esquecer, somente atingiu a maturidade plena e conquistou as "lettres de noblesse" definitivas através da contribuição preciosa do francês Alain Oulman e da sua persistência no enriquecimento e ampliação do vocabulário melódico e harmónico do fado, abraçado às palavras dos maiores poetas da língua portuguesa.



O mesmo Mourão-Ferreira o admitiu ("Deve-se a Alain Oulman a pioneira missão de estabelecer um determinante e fecundo enlace entre a poesia portuguesa de matriz 'culta' e essa específica forma da música popular - o fado") e Amália não o escondia ("O Alain foi o nascer de uma artista completamente diferente. A minha maneira de cantar estava à espera daquilo"). Foi, naturalmente, por isso que Com Que Voz (1970) - ponto culminante do percurso iniciado em Busto (1962) e momento em que um reportório integral de Oulman sobre textos de Camões, O'Neill, Mourão-Ferreira, Ary dos Santos, Homem de Mello, Cecília Meireles e Manuel Alegre foi entregue à voz em absoluto estado de graça de Amália - viria, muito justamente, a ser considerado "o álbum perfeito". Agora reeditado, com o bónus de um segundo CD de versões alternativas, temas "perdidos" e outras raridades que (juntamente com um booklet esclarecedor mas com uma organização de textos um tanto descosida) contextualizam e aprofundam a perspectiva para o entendimento da obra, seria indesculpável perder a oportunidade de mergulhar de novo neste canto em que, uma vez imersos, as coordenadas geográficas perdem (quase) todo o sentido.

(2011)

03 June 2010

VIDA E MORTE DA TRADIÇÃO
(recuperada em sequência daqui e daqui)



Tradições Musicais da Estremadura, do investigador José Alberto Sardinha, é uma daquelas obras monumentais de etnomusicologia de que seria bom existirem milhares de exemplares avidamente adquiridos por escolas, bibliotecas e museus. Num trabalho de recolha e gravação (musical, fotográfica, videográfica) realizado ao longo de mais de 20 anos por todo o espaço nacional e, agora, centrado sobre a região da Estremadura (incluindo três CD, um apêndice com transcrições e notas musicográficas, um romanceiro, um devocionário, um inquérito linguístico/glossário e um guia de audição dos discos, para além de contar, como prefácio, com o último texto redigido por Fernando Lopes-Graça antes da sua morte) reúne uma minuciosa documentação, estudo e análise da tradição popular e dos seus protagonistas ainda vivos ou já desaparecidos. O que interessa, porém, a Sardinha não é o conceito romântico da demanda da "alma perdida da Pátria", mas sim o entendimento fundamentado de como as tradições se preservam e evoluem.

Apesar de se debruçar sobre as tradições musicais da Estremadura, esta nem sequer é a região do país sobre a qual possui o arquivo mais extenso...
Tenho recolhas de todo o país, excepto a Madeira, organizadas por províncias, sendo que a província de que tenho mais material recolhido é Trás-os-Montes, a seguir a Beira Baixa, e a Estremadura só em terceiro lugar.

Isso poderá ter a ver com o facto de, inicialmente, ter a ideia de que se trataria de uma zona pouco rica do ponto de vista da música tradicional. A que se devia esse preconceito?
Principalmente pela ausência de notícias etnomusicais, que se devia à falta de investigação no terreno, uma vez que os estudiosos anteriores se haviam dedicado muito pouco à Estremadura. O Giacometti tinha poucas coisas editadas, o Armando Leça também, o Artur Santos e o Lopes-Graça não tinham nada, e o próprio Ernesto Veiga de Oliveira também não. Aquele aspecto de as pessoas gostarem muito do "instrumento arcaico" conduziu-os mais, por exemplo, para Trás-os-Montes, que é mais longínquo.


J. A. Sardinha

Esse preconceito não terá surgido por causa de uma certa concepção acerca da música tradicional, de que tanto mais "pura" e "autêntica" seria quanto tivesse persistido longe da "contaminação" urbana?
Claro que sim. E, contudo, foi aqui que encontrei alguns dos exemplares que se podem considerar mais arcaicos do ponto de vista etnomusical, recolhidos, por exemplo, a poucos quilómetros da Ericeira! Esses conceitos estavam errados, como estava também o conceito de música tradicional como algo de "puro" e "longínquo", perdido no tempo e no espaço.

Na introdução refere que "é fundamental avaliar quais as manifestações mais antigas (...) e distingui-las das mais recentes, que não foram ainda sujeitas à tradicionalização". Qual o critério para averiguar a "tradicionalização" duma determinada peça musical popular?
A tradicionalização resume-se nisto: há um criador individual que é conhecido na altura (a concepção romântica da criação colectiva está posta de parte), divulga as suas criações musicais e elas expandem-se. Elas são popularizadas no sentido em que se difundem entre o povo. Se morrerem na primeira geração, não se tradicionalizaram. Mas se forem mantidas através de gerações, vão-se transmitindo, tradicionalizando e caindo no anonimato. Essa é a música de tradição oral, não escrita, que não possui certidão de nascimento. Por acaso, esse primeiro capítulo do livro (que estava escrito há mais de dez anos, com conceitos completamente diferentes) foi reformulado recentemente. No início, fui-me limitando a gravar guiado por uma certa intuição do que então considerava "autêntico". A pouco e pouco, fui alargando esse critério. Acabei por chegar à conclusão de que não há "autêntico" nem "não autêntico", mas apenas a tradição, que é algo de muito mais lato.

A obrigatoriedade de anonimato do criador original não pode impedi-lo de registar espécimes inseridos na tradição, embora criados agora?
Gravo à mesma. Se esse facto for conhecido por mim, devo assinalá-lo. Há aqui uma canção de cegada que, de facto, é um fado, dos mais conhecidos até. Como é habitual, o povo adaptou uma letra a uma música que andava em circulação, eu gravei-a e assinalei-o. Há um fenómeno até que merecia um grande estudo que é o caso do Quim Barreiros: um cantor tradicional que herdou toda a tradição da música minhota e que cria de acordo com os parâmetros que lhe foram fornecidos pela tradição. Só que ainda ninguém reparou nisso. Os intelectuais acham aquilo uma "pimbalhada" (aliás, o divórcio entre os intelectuais e o povo permanece - se calhar, se vivessem há cem anos achariam a música popular da época "pimba", embora, agora, como é "antiga", já gostem...), mas ele tem criações onde, por exemplo, se identifica perfeitamente a estrutura musical do malhão do Norte que ele recriou. Com letras, em parte, fornecidas pela tradição. Aquela do "bacalhau", se se for ao Leite de Vasconcelos, está lá, é uma quadra popular do fim do século XIX! Era preciso estudar musicalmente tudo isso. Eu tenho discos do Quim Barreiros, comecei a coleccioná-los. E, um dia, se tiver tempo, hei-de escrever sobre isso.



Enquanto, habitualmente, se encara a recolha da tradição como um trabalho quase arqueológico sobre algo praticamente extinto, dever-se-ia ou não encarar a actual música comercial/pimba como a expressão da tradição popular contemporânea...
Que se irá ou não tradicionalizar...

E, já agora, no final do ano passado, o Museu de Artes e Tradições Populares de Estocolmo inaugurou duas exposições. Uma sobre a cultura, tradições e costumes dos lapões. E outra, ao lado, sobre ...os Abba. O que é que isto lhe sugere?
Desde o Renascimento, quando os intelectuais disseram "odi profanum vulgus" (odeio o vulgo profano), que era a máxima da época, tem havido um crescente divórcio entre os intelectuais e o povo. Na cultura medieval e trovadoresca isso não acontecia. E esse divórcio permanece hoje na apreciação que os intelectuais fazem da música «pimba». Sobre o fado, já tenho lido afirmações segundo as quais foi um fenómeno popular de que a nobreza se apropriou. A verdade é esta: graças a Deus que a nobreza gostou do fado e a burguesia, por imitação, o tomou em moda! Senão a burguesia, com o seu ódio ao povo e a tudo o que dele vem, tê-lo-ia aniquilado ou anulado historicamente, como sucedeu com muitas outras tradições populares. Isto é demonstrativo das oscilações do gosto da intelectualidade na apreciação de determinados fenómenos e de como, muitas vezes, só os entendem quando uma classe imitada os legitima. Eu não me dedico a ele, mas esse estudo da cultura popular contemporânea é inteiramente pertinente e necessário.



Por outro lado, existe a ideia de que enquanto na "velha" música tradicional se encontram espécimes musicalmente ricos, a cultura popular contemporânea é pobre, indigente...
Musicalmente falando, há coisa mais pobre do que o fado? E, no entanto, é o fenómeno musical português mais estudado e talvez o mais digno de ser estudado. Senão vejamos: na música tradicional, de onde vêm os exemplares musicalmente mais ricos? A tradição fê-los chegar até nós, mas são de origem eclesiástica, não popular, embora posteriormente popularizados e tradicionalizados.



Sente que se acentuou a tendência para a extinção da tradição por ser algo a que o povo não atribui importância e que só interessa a intelectuais urbanos em busca da alma perdida da Pátria?
Geralmente, o urbano vai em busca do antigo, do exótico. Desde a Renascença, ao mesmo tempo que os intelectuais começaram a odiar o vulgo, também começaram a mitificar o campo. O ideal da "aurea mediocritas" que o Sá de Miranda cantava, não é se não isso: um retiro bucólico entre os pastores simples e ingénuos, onde residiria a alma pura do homem. A apreciação que os urbanos fazem desta música responde sempre à busca dum tempo perdido. Entre o povo, algumas destas manifestações musicais estão completamente extintas, já só residem na memória de alguns informadores. Não há dúvida que, nos últimos dez anos, os trabalhos agrícolas sofreram uma profunda transformação. As tradições que ainda se conservam mais são as religiosas. Os gaiteiros que acompanham os círios ainda se mantêm em actividade. Na Estremadura cistagana, ali para Palmela, os próprios gaiteiros formaram grupos que fazem bailes a tocar música que ouvem na rádio. Tal como, aliás, em Trás-os-Montes há novas gerações de gaiteiros aos quais forneci gravações de repertório tradicional.

Existem características propriamente estremenhas na música tradicional da região?
As coisas que eu gravei podem-se considerar estremenhas, na medida em que o povo quis que elas permanecessem na sua tradição. Terá havido coisas que desapareceram noutras províncias e se mantiveram nesta. Não se deve perguntar porque é que isto nasceu aqui e não noutro sítio, mas porque é que sobreviveu aqui e não noutro lugar. A gaita de foles era um fenómeno nacional. O adufe, a mesma coisa. Porque é que hoje só subsiste na Beira Baixa? Isso é que é interessante estudar e não se deixar cair na tentação de inventar coisas supostamente identificadoras de uma terra ou de uma região. O que tem a ver com as consequências da massificação e da globalização que conduz à busca de identidades locais fortes. Foi o que aconteceu com os caretos em Trás-os-Montes que estavam quase extintos e hoje são um fenómeno local que ressurgiu.



Aí mesmo é curiosa a sobreposição de dois movimentos contrários e simultâneos: a recuperação da tradição "antiga", agora academizada e eruditizada e, por baixo disso, o desenvolvimento da tal cultura popular comercial/pimba que irremediavelmente a substituiu...
Mas isso são as formas de normalização da música tradicional. Pode ser inevitável, mas, de um ponto de vista musical, tende a empobrecer. A verdadeira escola da tradição tem de ser a tradição. Só a convivência, o toque e o canto dos mais velhos podem ensinar. Nesse tipo de aprendizagem, tende-se a adoptar os exemplares mais simples e a excluir os mais ricos, há um empobrecimento. O que aconteceu muito com as concertinas. Contudo, há fenómenos que ainda permanecem muito vivos como é o caso das romarias do Minho ou os círios na Estremadura que se mantêm integralmente. Mas, na maioria dos casos, à medida que as populações foram abandonando os campos, deixou de haver espaço, tempo e função para cantar. Embora ainda haja casos onde, nas festas da aldeia, ao sábado, actua o conjunto musical para o baile mas é reservado um dia - geralmente a segunda-feira, que é dia de guarda - para um tocador popular e toda a gente dançar à moda antiga. Ou o exemplo do adufe, que está, neste momento, a agarrar muita gente na Beira Baixa. Já não, evidentemente, tocado à soleira da porta nas funções antigas, mas noutras circunstâncias.

(2001)

01 June 2010

NÃO, NÃO É SÓ A CANÇÃO DE LISBOA
(sequência daqui)

José Alberto Sardinha - A Origem do Fado

É bem provável que inúmeras resistências surjam à tese defendida por José Alberto Sardinha nestas cerca de 600 páginas que dedica à vexata quaestio das origens do fado. Em primeiro lugar, as que decorrem de toda a argumentação assentar num ponto de vista – já aflorado em obras anteriores do autor – que contraria radicalmente um dos mais generalizados lugares-comuns (convertido em convicção e bandeira): o fado não é “a canção de Lisboa” mas sim, um género da tradição oral popular que, desde o início, foi praticado por todo o país. Depois, os partidários das diversas “teses das origens” (árabe, marítima, trovadoresca e, de maior relevância actual, brasileira/africana) que terão alguma dificuldade em digerir a torrencial exibição de testemunhos com que Sardinha ensaia a sua desmontagem.



Por último, quem possa adivinhar um ressurgimento de arrebatamentos nacionalistas na defesa da ideia de que o fado – de novo, encarado como “canção nacional” – poderá ter uma certidão de nascimento exclusivamente lusa, ainda que decorrente de um património literário mais comummente europeu. Porque, sintetizando perigosamente em meia dúzia de linhas uma investigação de mais de trinta anos, o que Sardinha sustenta é, essencialmente isto: “o fado, nos seus primórdios, representou o último estádio do romanceiro tradicional”, o qual “ao longo dos séculos, (...) foi perdendo o carácter épico inicial e foi-se progressivamente novelizando até versar quase exclusivamente assuntos de carácter amoroso ou trágico-sentimental”, tendo como agente criador e difusor os músicos e cegos mendicantes que, “nas vilas e cidades, nas aldeias, nas feiras, festas e romarias”, o interpretaram e popularizaram. Matéria, de agora em diante, de referência obrigatória, o mínimo que se pode desejar é que A Origem do Fado constitua um novo ponto de partida para o debate sobre tema tão simbolicamente sensível.

(2010)

30 May 2010

A FONTE, A GÉNESE, O TRONCO DO FADO



Algures a meio de um percurso de mais de trinta anos de recolha e estudo da tradição musical popular portuguesa, pelo fim da década de 80, nas imediações de Viseu, ao gravar o reportório de romances e canções narrativas de uma velha camponesa, José Alberto Sardinha teve o seu momento-estrada de Damasco: e se, na forma “afadistada” de interpretar os romances tradicionais (que sempre fora atribuída à maléfica contaminação da “pureza” original pelos media modernos), estivessem, afinal, os indícios acerca da origem primordial do fado? “Há momentos assim. A realidade, muitas vezes, está mesmo à frente dos olhos e não a vemos. Mas há um dia em que a vemos. Pode ser por um acaso mas o acaso e a sorte também se constroem. Já, há mais de 30 anos, em Vinhais, tinha gravado uma velhota, Lídia Cepeda, que cantava romances de uma forma afadistada que, na altura, eu abominava. E, tal como ela, muitas outras. Depois, as coisas começam a fazer sentido: primeiro, era assim que ela sentia aquela canção; e, depois, provavelmente tinha sido daquele modo que ela a tinha ouvido aos cegos que cantavam nas feiras. A forma 'gemidinha', sentimental de cantar provém do próprio enredo do tema, e, por parte dos cegos que as cantavam nas feiras, de um sentido comercial das coisas: quanto mais ‘aterravam’, quanto mais ‘terror’, mais lágrimas, espalhavam, mais ganhavam. É um bocado como acontece hoje com as revistas cor-de-rosa, quanto mais drama e escândalo mostrarem, mais vendem”.


J. A. Sardinha

Esse momento de revelação obrigou-o a colocar uma hipótese: “Isto serão apenas semelhanças ou será que é a raiz do fado?”. Desde então até hoje, paralelamente à publicação de diversas obras e gravações de espécimes do património musical popular seleccionadas dos milhares de horas de registos que realizou, não desistiu de perseguir essa hipótese que, agora, defende e fundamenta nas quase 600 páginas e quatro CD de A Origem do Fado: “Esse fado popular, esse fado das ruas, de faca e alguidar, dos ceguinhos, não é outro senão o substracto novelesco do romanceiro tradicional, e o subsequente manancial das canções narrativas, afinal, o primitivo, o primacial, o originário fado, a fonte, a génese, o tronco primevo do nosso fado”. As peças do puzzle começaram a organizar-se quando “tudo aquilo que tinha ouvido no campo e tudo aquilo que tinha lido e que voltei a ler logo a seguir bateu certo. O Giacometti, por exemplo, no guia das recolhas do serviço cívico, dizia que os romances, entre o povo rural, são conhecidos por ‘quadras’, ‘histórias de casos sucedidos’ ou ‘fados’. O Pires de Lima afirmava que, no Minho, o Romance do Conde da Alemanha é, ‘antipaticamente, conhecido por fado’. O próprio Teófilo Braga que é tido como defensor da tese ‘arabista’ mas, na realidade, não é, diz que ‘as chácaras são os nossos fados de hoje’. De início, ainda pensei que seriam só as canções narrativas a partir do século XVIII porque, do ponto de vista musical, de facto, o molde é de finais do século XVIII. Mas, poeticamente, vem mais de trás, do romanceiro novelesco. Já no século XVI e até no XV havia romances novelescos. Romances que, de históricos, passaram a novelescos. Histórias de amores e desamores das princesas que, depois, foram parar às cantigas de aventuras, e, por fim, ao Zé Pina e Maribela, à Rosinha costureira e ao Manel serralheiro”.


Cantadeira de fado (foto do Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa)

Ainda aí, no entanto, a possibilidade de “contaminação” se poderia imaginar: não teria sido a própria popularidade do fado que conduziu a designar como “fado” formas populares diferentes? “É exactamente ao contrário. À medida que o fado artístico se foi impondo, isso foi caindo cada vez mais em desuso. Alguns cegos contavam que os pais falavam dos ‘fados da feira’ mas que, agora, ‘sabiam que aquilo que cantavam, afinal, não era fado’. Fado, era o fado dos artistas. Os mais antigos chamam fado a tudo o que seja canto narrativo. Não faziam distinção entre cantar o ‘Romance do Soldadinho ou o ‘Conde da Alemanha’ e um fado da Amália. Na Beira, tudo o que conte uma história são ‘quadras’. Na segunda metade do século XIX, o canto narrativo teve o mote em quadra com glosas em quatro décimas. Por um fenómeno de generalização, todos os romances, mesmo os antigos, passaram a chamar-se ‘quadras’ e substituíram o termo ‘fado’". A bifurcação entre esse fado primitivo e o ‘artístico’ terá acontecido por volta de 1840, “quando o conde do Vimioso leva a Severa a cantar nos salões. Os dados históricos de que dispomos são os relativos a eles mas as coisas até podem ter começado antes. Não há, porém, dúvida que foi tomado de moda porque, na segunda metade do século XIX já estava na revista. O fenómeno, entretanto, já existia nas tabernas e bordéis há muito mais tempo. Os cegos sempre estanciaram e tocaram nas tabernas. O fado, no entanto, até poderia ter existido popularmente e ter desaparecido como tantas outras espécies musicais. Era um género desconsiderado que passou a ser socialmente aceite porque houve quem o achasse pitoresco. Nos salões, tocava-se a gavota, o minuete, a modinha, o lundum... e, a certa altura, aparecem uns tunantes com um género totalmente diferente!”.



Existiria, de facto, possivelmente, bem antes disso como refere Carolina Michaëlis que o faz recuar até aos séculos XV ou XVI: “Carolina Michaëlis também não seria credível se um conjunto de circunstâncias não coincidisse para que isso fosse levado a sério. Aliás, essa afirmação nunca foi revelada por nenhum estudioso do fado. Quando eu vejo as coisas como vi e comecei a ler os vários autores, aquilo fazia lógica. Os estudiosos do século XIX – Michaëlis, Teófilo Braga, Leite de Vasconcelos – não deram muita importância ao fado porque era uma coisa da época, não estava em vias de extinção, e eles procuravam era antiguidades. O nosso grande problema no estudo do Romanceiro e da nossa canção popular é não termos tido um Walter Scott nem um Robert Burns. Tivemos um Garrett que não sabia música. Estudou a literatura mas não estudou a música. As canções escocesas que nós cantamos como música tradicional são do Scott e do Burns. As verdadeiras tradicionais ficaram. Tal como o Garrett fez à poesia, eles fizeram à música: adocicaram-na, romantizaram-na e criaram novas músicas. Não tivemos em Portugal quem tivesse feito canções 'à la mode populaire'. Por outro lado, tivemos a vantagem de que as coisas nos chegaram em estado mais cru”.

(2010)