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19 February 2020

 AGUARELA INGÉNUA


Gato repetidamente escaldado pelas inúmeras e desavergonhadas campanhas de "hype" à volta de “génios incompreendidos na sua época” que, trazidos à luz, se revelam muito pouco geniais e justissimamente ignorados, teme, naturalmente, a água fria de mais uma “inigualável descoberta” pronta a servir. Foi, pois, inteiramente justificado que, ao ser anunciada a exumação de duas preciosidades do início dos anos 70, desde então remetidas para a clandestinidade, e cujo autor, durante os 40 anos seguintes, se vira obrigado a sobreviver como jardineiro, operário e trabalhador rural, a oferenda tenha sido recebida com os dois pés firmemente colocados atrás. Afinal, por uma vez, o "hype" tinha toda a razão de ser: Bill Fay (1970) e Time of The Last Persecution (1971) – muito especialmente o primeiro – eram o género de peças perante as quais apenas podia pensar-se “Mas como foi possível?...”
 

Entusiasticamente apregoado por Jeff Tweedy, David Tibet, Nick Cave e Jim O’Rourke, era, de todo, impossível não alinhar no coro. E fi-lo: Bill Fay era “coisa da estatura de Goodbye and Hello, de Tim Buckley, dos quatro primeiros de Scott Walker, de American Gothic de David Ackles, ou, do ponto de vista da encenação sinfónica, de Songs Of Love And Hate, de Leonard Cohen”. Provavelmente decisivas eram as orquestrações de Mike Gibbs (jazzman às ordens de Carla Bley, Bill Evans, Peter Gabriel, Marianne Faithfull, e Joni Mitchell) porque, embora também valiosos, Time of The Last Persecution e os dois que gravaria pós-ressurreição (Life Is People, de 2012, e Who Is the Sender?, de 2015), sem a mão de Gibbs, tendiam a aconchegar-se demasiado às ecografias da alma dos velhos  "singer-songwriters". Countless Branches vem confirmar essa ideia: quase só pele e osso de voz e piano com ocasionais pinceladas transparentes de violoncelo e trompete, é uma aguarela intimista de deslumbramento cripto-cristão perante o mundo, a vida e os humanos, talvez excessivamente ingénua – confrontar com Leonard Cohen - para um cavalheiro de 77 anos.

01 January 2013

2012 - EM FRENTE, PARA O PASSADO 



Em Regresso Ao Futuro, Marty McFly/Michael J. Fox, a bordo de um DeLorean DMC-12 convertido em máquina de viajar no tempo, recua até Novembro de 1955 e, pelo meio de mil peripécias, alterando o rumo dos acontecimentos e a relação entre diversas personagens, não só procura evitar desastres futuros, como, de caminho, realiza o seu sonho de ser músico de rock’n’roll, criando "Johnny B. Goode" e o "duckwalk" e oferecendo, de bandeja, a Chuck Berry “that new sound you’re looking for”. A 10 de Dezembro último, o Google Doodle do dia (variações gráficas sobre o logo do Google com o objectivo de celebrar efemérides, eventos políticos, desportivos ou culturais, e aniversários de figuras marcantes) evocava Lady Ada Lovelace (1815 – 1852): filha de Lord Byron, e pioneira da computação (sonhava com a construção de um modelo matemático capaz de explicar como os pensamentos se formam no cérebro), a “máquina analítica”, precursora dos computadores, que o seu amigo Charles Babbage inventara e para a qual ela conceberia o primeiro algoritmo destinado a ser processado mecanicamente, fascinava-a a tal ponto que, em 1842, assegurava que ela “poderia compor músicas elaboradas e científicas em qualquer grau de complexidade e extensão". Mas, sensatamente, sublinhava que "a máquina analítica não tem quaisquer pretensões de originar coisa alguma. Pode apenas executar seja o que for que saibamos mandá-la fazer".


Dir-se-ia que, em 2012 (prosseguindo, teimosamente, o rumo por que a década anterior já enveredara), a cultura pop – com as honrosas excepções habituais – optou, em definitivo, por repetir a viagem de Marty Mc Fly. Mas, ao contrário dele, que tirou partido do passo atrás para forçar os acontecimentos a dar vários em frente, preferiu transportar na bagagem o equivalente contemporâneo da máquina do doutor Babbage e, sem “quaisquer pretensões de originar coisa alguma” (ainda que proclamando o oposto), entreteve-se a gerar infindáveis duplos e cópias a partir do catálogo de estilos e géneros passados. Confortavelmente empantufados nas décadas de 60, 70 e 80 (a de 90 já se perfila para entrar em cena também), aos Marty Mc Fly actuais não ocorre sequer a ideia de que é possível alterar as coordenadas em que se alojaram e fazer delas trampolim para um salto no futuro: Ariel Pink, Tame Impala, Lana Del Rey ou Beach House (para referir apenas alguns dos mais proeminentes nomes das numerosas tropas do cerco retromaníaco), conscientemente ou não, o que fizeram foi levar a sério uma entrevista, de 1995, de Brian Eno à “Wired”, na qual ele especulava sobre a hipótese de concepção de sistemas de software capazes de "criar" mais música "original" de Shostakovich, de Brahms, ou dele próprio.

Sharon Van Etten - "Magic Chords"

A consequência foi uma colheita musical em que, fora do perímetro cercado, apenas é possível identificar pouco mais de duas dezenas de gravações sem cheiro a mofo nem enjoativa sensação de "déjà vu" (para além da lista de 10, é importante referir, igualmente, Mr. M, dos Lambchop, Tramp, de Sharon Van Etten, Life Is People, de Bill Fay, Shields, dos Grizzly Bear, Wrecking Ball, de Bruce Springsteen, Who’s Feeling Young Now?, dos Punch Brothers, Long Black Cars, dos Wave Pictures, Tempest, de Bob Dylan, e mais três ou quatro) e, inclusivamente, no que à música portuguesa diz respeito, para além do fado à boleia da UNESCO, espírito verdadeiramente aventureiro só foi possível detectar na improbabilíssima aliança luso-grega de Amélia Muge e Michales Loukovikas, na continuação da saga dos Gaiteiros e na geometria em movimento dos Abztraqt Sir Q. O futuro segue (?) dentro de momentos.

23 September 2012

PONTE SOBRE ÁGUAS INQUIETAS


Bill Fay - Life Is People

Quando, no início da década de 70 do século passado, os dois primeiros álbuns de Bill Fay foram publicados, alguém terá dito, convictamente, ao seu manager da altura, Terry Noon, que era “apenas uma questão de tempo até que a música dele fosse reconhecida”. Não podia estar mais certo. Embora devesse ter acrescentado a medida exacta desse tempo: à volta de quarenta anos. Na realidade, entre o assombroso Bill Fay (1970) e o actual Life Is People, as quatro décadas que decorreram não foram integralmente vazias na biografia musical de Fay: no ano a seguir à estreia, gravou Time Of The Last Persecution e o seu reiterado insucesso comercial (“vendeu cerca de 2000 cópias”, confessa, hoje, Fay, provavelmente, desconhecendo que, no eBay, as prensagens originais oscilam entre os 400 e os 1000 e tal dólares) valeu-lhe o fim do contrato com a Deram/Decca. O rosto hirsuto de sonâmbulo profeta bíblico do fim dos tempos que exibia na fotografia da capa terá estado na origem da lenda menor que, a partir daí, emergiu: qual Syd Barrett ou Salinger britânico, Bill Fay teria desertado da sociedade e abraçado uma vida de eremita antisocial, curando males do corpo e da mente. Nada mais longe da verdade: pura e simplesmente, ele que nunca tinha autenticamente sonhado com uma carreira de popstar, limitou-se, pacatamente, a regressar a uma existência das 9 às 5, trabalhando como operário fabril, jardineiro ou trabalhador rural. E continuou a compor, procurando, como diz ainda agora, à beira dos 70 anos, “descobrir os mistérios daquela longa sequência de teclas brancas e pretas” que lhe pudessem revelar os motivos por que não conseguia largar os discos de Bob Dylan e de Schoenberg e lhe fizessem ser capaz de explicar a admiração que "See Emily Play", dos Pink Floyd, lhe provocava. 



Entretanto, aqueles dois únicos álbuns gravados ambos em sessões únicas de estúdio, iam conquistando fãs. Tanto o primeiro – coisa da estatura de Goodbye And Hello, de Tim Buckley, ou de American Gothic, de David Ackles –, envolto nos vertiginosos arranjos orquestrais de Mike Gibbs (“quando cheguei ao estúdio imaginei que tinha entrado numa outra versão da 5ª do Beethoven”), como Last Persecution, dividido entre uma escrita mais convencional e as labaredas da guitarra "free" de Ray Russell, juntaram nos louvores Jim O’Rourke, Nick Cave, Marc Almond, Jeff Tweedy (Wilco) e David Tibet que, em mera genuflexão ou de forma mais expedita, cuidaram de, a conta gotas, ir retirando uma ou outra pérola do baú. Assim foram surgindo, em 2004, From the Bottom of an Old Grandfather Clock, uma óptima colecção de demos de entre 1966 e 1970 capaz de envergonhar Sgt. Peppers, Tomorrow, Tomorrow & Tomorrow (2005) e Still Some Light (2010) – no total, 63 canções oscilando entre registos artesanais e outros que poderiam figurar num "best of" de Robert Wyatt, Peter Hammil e Randy Newman, fossem eles como a Santíssima Trindade – e, desta vez, Life Is People. Mais dylaniano (e, talvez, também, mais newmaniano) do que antes, com um timbre de voz, aqui e ali, também próximo de Peter Gabriel, é um ciclo de canções apaziguadas e apaziguadoras que faz lembrar as daquela época em que Nick Cave se assumiu como “The Good Son”: o mundo pode ser um vale de lágrimas mas, algures, existe sempre uma "bridge over troubled water" (e o recorte de hino cristão comunitário atravessa, por vezes, excessivamente, todo o disco) através da qual se chega a mais verdes pastagens. Não será a obra-prima de Fay mas, ainda assim, é um belíssimo álbum. 

01 January 2009

MÚSICA 2008 - REEDIÇÕES


Karen Dalton - "It Hurts Me Too"

Karen Dalton - In My Own Time e Green Rocky Road
Bill Fay - Bill Fay
Laura Nyro - More Than A New Discovery
Marianne Faithfull - Come My Way
Weekend - Live At Ronnie Scott’s
Fairport Convention - What We Did In Our Holidays e Unhalfbricking
GNR – Independança
Caetano Veloso - Tropicália
Caetano Veloso – Caetano Veloso
Caetano Veloso - Araçá Azul
Laurie Anderson - Big Science


(2008)

03 July 2008

JUVENTUDE COLOSSAL



Bill Fay - Bill Fay




Bill Fay - Time Of The Last Persecution

Solicite-se o auxílio do bom velho amigo Google para uma pesquisa acerca de “Bill Fay” e, logo no topo da primeira página, depararemos com “www.billfay.co.uk- Welcome to the ONLY Bill Fay site on the 'net”. Naturalmente, desconfiamos que aquele “the ONLY Bill Fay site on the 'net” possa ser publicidade enganosa mas, meia dúzia de páginas mais tarde, para além da inevitável (mas curta) entrada na Wikipedia – e lá está o link para “the only dedicated Bill Fay site” –, de umas quantas (poucas) recensões a propósito da reedição dos seus álbuns (uma delas assinada por Julian Cope), do site do homónimo evangelista que deseja partilhar connosco “a palavra de Cristo”, do daquele outro “tough, effective courtroom veteran Bill Fay” que se apresenta como candidato Republicano ao “Dallas County's Criminal District Court No. 3” ou ainda do enigmático “OkCupid.com: Solteiros interessados em Bill Fay”, na verdade, exclusivamente dedicado a Bill Fay, aquele parece ser caso único. À primeira vista, nenhum motivo de espanto: os dois álbuns que Bill Fay publicou em 1970 e 1971 passaram totalmente despercebidos à época e o prolongadamente inédito terceiro (Tomorrow Tomorrow And Tomorrow) só saiu das trevas em 2005.



Tudo se torna, contudo, absolutamente incompreensível quando colocamos a girar o disco de estreia: não, não estamos, mais uma vez, perante a estafada manobra dos operacionais do “hype” que pretendem, à viva força, convencer-nos de que mais um génio foi cruel e injustamente ignorado pelos seus contemporâneos e, só agora (em boa parte, devido à pública devoção de Jeff Tweedy, dos Wilco), finalmente, reconhecido: da primeira à última faixa, Bill Fay é o tipo de álbum para o qual o adjectivo “colossal” foi cunhado por medida. Orquestrado por Mike Gibbs (um dos mais notáveis músicos do jazz britânico da altura que colaboraria também com Carla Bley, Mike Westbrook, Bill Evans, Peter Gabriel, Marianne Faithfull, Gary Burton e Joni Mitchell) é – estou a pesar cuidadosamente as palavras – coisa da estatura de Goodbye and Hello, de Tim Buckley, dos quatro primeiros de Scott Walker, de American Gothic, de David Ackles, ou, do ponto de vista da encenação sinfónica, de Songs Of Love And Hate, de Leonard Cohen. Os textos de algumas canções poderão acusar a contaminação de uma certa “naïveté” hippie da era (o Tim Buckley inicial também e isso em pouco ou nada o diminuiu) mas é impossível não perder instantaneamente o pé perante as sucessivas vagas de crescendos orquestrais que arrastam tudo – melodias, palavras, voz – à sua frente. Em comparação, Time Of The Last Persecution, o segundo, quase parece um acto de deliberada rendição face ao convencionalismo do “songwriting” umbiguista da época. Igualmente fracassado comercialmente e única sombra que poderia (mas não pode) obscurecer a fulgurante luz anterior.

(2008)