26 July 2020

O DISCO QUE LHE FUGIU


No início de Junho, Neil Young publicou no seu site, Neil Young Archives, uma versão recente de "Southern Man" (“I saw cotton and I saw black, tall white mansions and little shacks, southern man, when will you pay them back? I heard screamin' and bullwhips cracking, how long? how long?”), originalmente do álbum de 1970, After The Gold Rush. E acompanhava-a com uma mensagem que, sem nomear George Floyd, era assaz explícita: “Aqui estou eu, um velho, a cantar uma canção com 50 anos, escrita após incontáveis anos de racismo nos EUA. E olhem para nós, hoje! Estas coisas acontecem há tempo de mais. Já não se trata apenas do ‘homem do Sul’. Acontece por todos os Estados Unidos. Chegou a altura de haver mudanças autênticas, novas leis e novas regras para a polícia”.



Em Janeiro passado, pouco depois de, finalmente, ter conseguido a nacionalidade americana, apressara-se a declarar o seu apoio à candidatura presidencial de Bernie Sanders. Alguns dias após a revisitação de "Southern Man" e já consumada a desistência de Sanders, voltaria ao site para, sob o título “Hope”, nos convidar a ser testemunhas das suas novas rotinas quotidianas: “Olá, estou a lavar a loiça. Agora, faço-o todas as manhãs e começo a gostar de cuidar da nossa linda cozinha. Não era costume ocupar-me muito com isto. Adoro deixar tudo limpo e a brilhar. Quando acabo, pego num produto de limpeza de que gosto especialmente, ‘Thieves’, e limpo todas as superfícies. Segundo parece, foi inventado por ladrões (“thieves”) porque lhes permitia cometer crimes, limpar todas as áreas e remover os vestígios. Um grande produto com uma história. O que nos traz à nossa História”. E, abrindo as janelas ao mundo lá fora, atirava-se ao que, verdadeiramente, importa: “Sinto que vem aí uma mudança. Sabemos que as vidas negras são importantes. O meu coração está com todas as famílias negras que foram afectadas, isto é, com todas as famílias negras através da História da América. Sou um velho branco e não me sinto ameaçsdo pelo meu irmão negro. Se o nosso presidente foi responsável por toda esta agitação, por ter atiçado as chamas e ter tentado virar-nos uns contra os outros por motivos políticos, não desistimos do combate por aquilo em que acreditamos. Não passa de um desgraçado líder que ergue muros em volta da nossa casa. Os meus irmãos e irmãs negras já sofreram que baste. A supremacia branca está a chegar ao fim mas não desaparecerá tão cedo. Pensem ou não que o irmão branco de Barack Obama irá ser capaz de lidar com esta situação, será ele, muito provavelmente, o nosso novo líder, fazendo regressar compaixão e empatia à Casa Branca. Que o Grande Espírito esteja com Joe Biden”. E concluía: “A loiça está quase no fim e é altura de limpar a bancada e deixá-la a brilhar para o dia que aí vem”.



Todo este cenário doméstico estava já presente, desde Março, nas “Fireside Sessions” que, filmadas pela mulher, Daryl Hannah, em diversos locais do rancho de ambos no Colorado durante a imposta quarentena, contara com públicos tão especiais como os seus cães rebolando-se na neve, e, na “Barnyard Session”, uma alpaca impertinente, um cavalo desatento e um irrequieto grupo de galinhas. Coisa, obviamente, muito caseirinha e informal mas completamente de acordo com a iminente publicação de Homegrown, um dos vários e míticos “lost albums” que os arquivos de Young contêm. Gravado entre Dezembro de 1974 e Janeiro de 1975 na qualidade de legítimo sucessor do clássico Harvest (1972), acabaria por ser preterido a favor do negríssimo Tonight’s The Night (1975), assombrado pelas mortes por "overdose" do guitarrista dos Crazy Horse, Danny Whitten, e do "roadie" e amigo, Bruce Berry ("I'm sorry. You don't know these people. This means nothing to you", escrevera ele numa nota da edição original).


Se a justificação oficial para a desistência de Homegrown é, hoje, a de se tratar de uma colecção de canções demasiado impregnada pela memória da separação da actriz Carrie Snodgress – “Peço-vos desculpa. Deveriam ter podido escutar este álbum alguns anos depois de ‘Harvest’. É o lado triste de uma relação amorosa. E dos estragos que fez. Não suportava ouvi-lo. Queria andar para a frente. Por isso, guardei-o para mim, escondi-o no cofre, deixei-o na prateleira, arrumei-o na memória... mas devia tê-lo partilhado. Na verdade, é muito bonito. Foi essa a razão por que o gravei. Por vezes, a vida dói. Sabem o que quero dizer. Este foi o disco que me fugiu” –, segundo uma lenda apócrifa, a ocultação durante 45 anos terá sido decretada numa noite de libérrimo convívio alimentada por estimulantes vários no Hotel Chateau Marmont (que Jarvis Cocker e Chilly Gonzales celebrariam em Room 29) durante a qual Rick Danko, Levon Helm, Richard Manuel (da Band) e elementos dos Crazy Horse, chamados a decidir, votaram a favor de Tonight’s The Night e contra Homegrown.



È muito provável que tenham tido razão: o que quase meio século depois escutamos é, sem dúvida, um belo naco do Neil Young folk-country e (maioritariamente) acústico mas não se trata de nenhum Smile ou Basement Tapes e, muito menos, peça capaz de se elevar à crueza das trevas de Tonight’s.... "Love Is A Ros"’ entraria, facilmente, para o cânone de Young, "Kansas" é uma delicada variação mais leve do que o ar sobre o tema “Hello I love you, won’t you tell me your name (“And it’s so good to have you sleeping by my side, although I’m not so sure if I even know your name”), "White Line" (com bordado de Robbie Robertson), "Try" e "Star of Bethlehem" (ambas vaporizadas pela voz de Emmylou Harris), e "Vacancy" (a deixar infectar-se pela electricidade das guitarras) vão pelo mesmo bom caminho. Mas a faixa-título e "Little Wing" são desesperantemente banais, "We Don’t Smoke It No More" demonstra exactamente o contrário do que afirma e "Florida" – um exercício de "spoken word" sobre cordas de piano friccionadas por copos de vidro – revela Young a candidatar-se ao lugar de um JG Ballard ganzado e a falhar redondamente. Acerca de perdidos e achados idênticos, Neil Young disse, uma vez: “Trabalho para a minha musa. Começo um álbum e as coisas correm umas vezes melhor, outras pior. Muitas vezes, não há uma boa razão para um disco ter ficado perdido pelo caminho. Gravei-o, passou por mim, alguma coisa me distraíu e esqueci-me do que tinha estado a fazer antes”. Homegrown não merecia o esquecimento mas não perdia nada com um desbaste dos ramos secos.

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