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17 February 2025

16 February 2025


 
(sequência daqui) A Complete Unknown assume, então, um duplo carácter de filme musical - algumas dezenas de canções de Bob Dylan, Woody Guthrie, Pete Seeger, Joan Baez e vários outros , na totalidade ou em parte, são omnipresentes - e de documentário ficcionado. Interpretadas pelos próprios actores, Dylan/Chalamet chega a ser assombrosamente mimético, Edward Norton é um Pete Seeger totalmente convincente e Monica Barbaro apresenta uma versão vastamente melhorada de Joan Baez. Sob a figura tutelar (mas emudecida pela coreia de Huntington) de Woody Guthrie, no percurso de Bob Dylan entre a chegada a Nova Iorque em 1961 e o confronto com o fundamentalismo folk, na explosão eléctrica do Festival de Newport de 1965, importa muito pouco que o encontro entre Seeger e Dylan não tenha, de facto, tido lugar à beira da cama de hospital de Woody Guthrie onde Dylan lhe teria dado a ouvir "Song For Woody", que o insulto de "Judas!" lhe tenha sido lançado no Free Trade Hall, de Manchester, um ano depois, e não no palco de Newport, ou que, de forma aparentemente milagrosa, "Like A Rolling Stone" tenha descido dos céus por intervenção de Al Kooper sem necessitar das 20 "takes" que se preservam em The Cutting Edge 1965-1966: The Bootleg Series Volume 12 (2015). (segue para aqui)

14 February 2025

(sequência daqui) Justamente por nunca ter sido senão um total desconhecido, Todd Haynes, em I'm Not There (2007), dividiu-o em seis heterónimos: Arthur Rimbaud (narrador, comentador), Woody Guthrie (um miúdo negro que reune num só o jovem Dylan e Woody); Jack Rollins (Dylan “cantor de protesto” sobreposto ao simétrico cristão "born again"); Robbie Clark (protagonista de “Grain Of Sand”, um biopic ficcional sobre Jack Rollins), Jude Quinn (o assombroso Dylan em roda livre de Highway 61 a Blonde On Blonde); e Billy The Kid (o fora-da-lei em fuga do papel de “porta-voz de uma geração”). Já Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese (2019), o registo da digressão de Dylan de 1975, combinava desvairadamente material documental com delirante efabulação na qual nem Sharon Stone escapava de se ver retratada como "groupie/roadie" adolescente que desfrutara de favores vários de um Dylan em modo poeta errante. (segue para aqui)

08 June 2023

 
Bob Dylan c/ Suze Rotolo
 
(sequência daqui) 3) No documentário da BBC Dylan’s Women (2011), não espiolhando em modo "paparazzo" a vida privada de Bob Dylan, registam-se, porém, aquelas mulheres que, de um modo ou de outro, foram determinantes na sua vida. A saber: Terri Thal, primeira "manager" cuja residência em Greenwich Village funcionava como santuário para os músicos folk do início dos anos 60 e ponto de encontro para discussões sobre música, política e teatro. Foi ela quem lhe conseguiu o primeiro concerto no Gerde’s Folk City, lendário clube da época em Nova Iorque; Carolyn Hester, figura importante do "folk revival" da qual Dylan encontrou forma de se aproximar, praticamente suplicando que o autorizasse a fazer a primeira parte de um concerto em Boston e logrando um convite para tocar harmónica no álbum que ela se preparava para publicar pela Columbia. John Hammond não estava desatento e, pouco depois, contratá-lo-ia; Suze Rotolo, a companheira na capa de The Freewheelin' Bob Dylan (1963) que lhe daria a conhecer Bertolt Brecht, Kurt Weill, e sobretudo, Rimbaud cujo “Je est un autre” lhe viraria o mundo às avessas (“Todas as campaínhas começaram a tocar. Aquelas palavras faziam perfeito sentido”); Joan Baez, que, com ele, durante um breve espaço de tempo (iniciado no Newport Folk Festival de 1961), constituiu a suprema sizígia folk; Sara Lownds, a “Sad Eyed Lady Of The Lowlands”, actriz, modelo e força benigna apaziguadora com quem foi casado de 1965 a 1977. (segue para aqui)

06 February 2021

 
(sequência daqui) Terá de haver algum motivo insondável para que a quase fadista Cristina Branco tenha escolhido incluir no seu reportório "A Case Of You" e "Cherokee Louise". Porque, do que a autora de ambas revela na preciosa conversa com Cameron Crowe – fã reverente, jornalista, cineasta, argumentista, produtor, actor – reproduzida nas 36 páginas do "booklet", dir-se-ia que só no “quase” se poderá encontrar, talvez, a explicação: interrogada sobre se, no trajecto da folk para o "songwriting" e, daí, para o jazz, para a colaboração com Charlie Mingus e para os trabalhos de orquestração, não poderia ver-se o dedo do destino, Mitchell responde sem hesitar “Não, não ligo nenhuma ao destino. Nem compreendo, de todo, o conceito de destino”. Não é a única vez que, ao longo da troca de ideias, ela é assim tão afirmativa. Pronta a reconhecer Buffy Sainte-Marie, Woody Guthrie, Tom Rush, o Kingston Trio, Judy Collins, Peter, Paul & Mary, Dave Van Ronk e Lambert, Hendricks & Ross (um trio de jazz vocal) como músicos que admirava e a influenciaram (“Tudo o que aprendi foi por admiração e osmose”), quando o nome de Joan Baez é pronunciado, e reacção é instantânea: “Não fui, de modo nenhum, influenciada por Joan Baez. Que isso fique bem claro”. Já a propósito de Leonard Cohen, tudo é bem diferente: “Ouvi-o no Newport Folk Festival. 'Suzanne’ foi uma canção que me impressionou muito. Foi o primeiro que, verdadeiramente, admirei. Deixou-me com a impressão de quão imaturas as minhas canções eram. Ele era um adulto. Era assim que os adultos escreviam” (segue para aqui).
 

30 January 2020


Phil Ochs - "The Ballad of Joe Hill"

Billy Bragg -"I Dreamed I Saw Phil Ochs Last Night"

Christopher Hitchens about Phil Ochs and politics

28 November 2019

AMOR, SEXO, CULPA, REDENÇÃO E ÊXTASE (III)


De Nova Iorque para Londres, de Montréal para Israel, Cuba e a Grécia. Pelo menos, Marianne ficou para sempre na contracapa de Songs From A Room (1969), Suzanne Elrod na de Death Of a Ladies’Man e Sharon Robinson na de Ten New Songs. Como, amantes ou amigas, poderiam ter ficado também a outra Suzanne (Verdal, a que inspirou a canção), Joni Mitchell, Nico, Janis Joplin, Dominique Isserman, Rebecca De Mornay, Anjani Thomas, Judy Collins. Foi à porta desta última, em Nova Iorque, que, em 1966 – descrente da possibilidade de sobreviver como romancista depois de o segundo romance, Beautiful Losers (escrito num caldeirão mental alimentado a cocktails heróicos de LSD, anfetaminas, sedativos e jejuns), ter sido arrasado pela crítica literária canadiana –, Leonard foi bater, “desconhecendo totalmente o que Dylan, Phil Ochs ou Joan Baez andavam a fazer”. No documentário, Collins conta: “Abri-lhe a porta, ofereci-lhe um café, e ele diz-me ‘Não sei cantar, não sei tocar guitarra e não tenho a certeza se isto é uma canção’. Tocou-me ‘Suzanne' e eu disse-lhe ‘Podes ter a certeza que é uma canção! E tenho de a gravar imediatamente!’ Ficamos amigos, gravei a canção [e também "Dress Rehearsal Rag", no álbum In My Life, 1967, que só ressurgiria na voz do autor, no avassalador Songs of Love and Hate] e ele deixou sempre muito claro que, nunca por nunca, quereria cantá-la em público. Num concerto de beneficência, convidei-o para subir ao palco e cantá-la comigo. Tremia como varas verdes. A meio, começou a soluçar e fugiu do palco, num ataque de pânico. Fui atrás dele e convenci-o a regressar”. A canção sobre Suzanne Verdal - bailarina que estudara com Martha Graham e interpretava peças de John Cage e Edgar Varèse – “foi uma espécie de porta. Tinha de abri-la com cautela, senão perdia o acesso ao que estava do outro lado. Não foi uma canção acerca de uma determinada mulher. Não dormimos juntos. Ela não queria macular ou contaminar a pureza do carinho que sentia pela nossa relação. Foi uma canção sobre o começo de uma vida diferente para mim”.


Contudo, desde o final da frequência na McGill University, de Montréal, e o primeiro semestre em Columbia, uma depressão recorrente assombrava-o: “Quando me refiro a depressão, não estou a falar apenas de tristeza, não se parece muito com a ressaca de um fim-de-semana em que uma rapariga nos deixou pendurados. É uma espécie de agressão mental que, de um momento para o outro, nos impede de funcionar. Uma depressão clínica que é o pano de fundo de toda a minha vida, uma sensação de angústia e ansiedade, de que nada está bem, de que o prazer é inalcançável e todas as estratégias falham”. Num programa da televisão canadiana, com Irving Layton (aquele cuja mulher, Aviva, recorda que frequentemente o espicaçava, dizendo “Leonard, are you sure you’re doing the wrong thing?”), em surdina, tocava no assunto: “Quando, de manhã, acordo, a minha verdadeira preocupação é saber se estou ou não em estado de graça”. Em Madrid, foi mais longe: “Tenho sempre a sensação de viver à beira do colapso e preciso de tomar medidas de emergência: experimentei o Prozac, experimentei o amor, experimentei as drogas e a meditação zen. Tentei esquecer todas essas estratégias e caminhar em frente. Mas o úico lugar onde a verdadeira avaliação acontece é quando me sento para escrever, quando atinjo aquele ponto em que já não posso ser desonesto acerca do que faço”.


A sua eternamente desnorteada bússola política – definiu-se como “um anarquista incapaz de lançar uma bomba” mas, em Londres, teve relações problemáticas (embora fugazes) com o situacionista alucinado Alexander Trocchi e com o militante do Black Power, Michael X – levá-lo-ia a Havana, em 1961, durante a crise da Baía dos Porcos, “lutando por ambos os lados”: “Interessava-me muito saber o que significava para um homem andar armado e matar outros homens, e até que ponto eu me sentia atraído por esse processo. A morte aproxima-nos da verdade. Nunca fui muito fervoroso nas minhas convicções, nem sequer naquele tempo. Fui até Cuba convencido de que o mundo inteiro existia para usufruto da minha observação e educação enquanto indivíduo”. Em 2001, por ocasião da publicação de Ten New Songs, comodamente recostado no sofá de um hotel, em Paris, respondia-me acerca dos motivos para chamar The Army à banda que o acompanhava: “Gosto das fardas . Gosto da ausência de ambiguidade, do grande sentido de uma finalidade, de um objectivo, da implicação de solidariedade e fraternidade, o sentido de uma comunidade sagrada, da devoção e dedicação a um ideal”. Em "Field Commander Cohen" auto-retratava-se sarcasticamente: “Field Commander Cohen, he was our most important spy, wounded in the line of duty, parachuting acid into diplomatic cocktail parties, urging Fidel Castro to abandon fields and castles. I never asked but I heard you cast your lot along with the poor, but then I overheard your prayer, that you be this and nothing more than just some grateful faithful woman's favourite singing millionaire, the patron saint of envy and the grocer of despair, working for the Yankee Dollar”. E, em "The Last Tourist in Havana Turns His Thoughts Homeward", de Flowers for Hitler (terceira colecção de poemas, 1964), exortava: “Come, my brothers, let us govern Canada, let us find our serious heads, let us dump asbestos on the White House, let us make the French talk English, not only here but everywhere, let us torture the Senate individually until they confess, let us purge the New Party, let us encourage the dark races, so they'll be lenient when they take over”.



Caminhando perigosamente na corda bamba, em Paris, acrescentava: “Adoro política, as políticas extremistas. Posições políticas extremistas enquanto narrativa. Espero nunca viver sob tais regimes, mas sempre me atraíram naquilo que representam de um certo apetite humano pela ordem. Escutar pessoas que articulam visões da perfeição é sempre muito interessante. A maioria das pessoas é obrigada a negociar uma ambiguidade aterradora nas suas vidas. E, de súbito, alguém se ergue e afirma ‘Eu sou sérvio’". Ou sou isto ou aquilo. E tudo flui a partir daí. É a descoberta e o estabelecimento de uma identidade exclusiva. A maioria das políticas extremistas decorre desta posição. Todos os países possuem este elemento que deseja definir a totalidade da aventura nacional em termos de uma identidade muito específica”. E, de um modo mais geral, o homem que, em The Future (1992), cantaria “Give me crack and anal sex, take the only tree that's left and stuff it up the hole in your culture, give me back the Berlin wall, give me Stalin and St. Paul, I've seen the future, brother, it is murder”, explicaria: “Não me considero um pessimista. Um pessimista é alguém que está sempre à espera que chova. Eu estou encharcado até aos ossos”. (continua)

26 June 2019

RATSO


Larry “Ratso” Sloman é aquilo que, tecnicamente, se designa por “um pintas”. Não carregando demasiado no jargão científico, pode mesmo considerar-se “um melga”. Pelo que é possível apurar-se do "mockumentary" de Martin Scorsese sobre a Rolling Thunder Revue, de Bob Dylan, se alguma unanimidade existia entre todos os participantes da aventura, era acerca de Sloman: o fulano era insuportável! Então jornalista da “Rolling Stone” enviado para cobrir a digressão, segundo a lenda, terá sido Joan Baez quem, devido às óbvias semelhanças com a personagem de Ratso Rizzo – o vigarista encardido de Midnight Cowboy, interpretado por Dustin Hoffman – lhe terá atribuído a alcunha de “Ratso” que nunca mais largaria. A meio do percurso, a “Rolling Stone” mandou-o passear mas Ratso, já mestre na técnica de lapa-cola-e-não-despega, manteve-se a bordo e daí resultaria o livro On The Road With Bob Dylan, que o próprio Zimmerman classificaria como “the War and Peace of rock and roll”. Seguir-se-iam o auto-explicativo Reefer Madness: A History Of Marijuana (com prefácio de William Burroughs), três volumes a meias com o figurão Howard Stern, várias biografias e The Secret Life of Houdini, no qual defende que o famoso" escape artist" era espião inglês e foi assassinado por uma conspiração de espiritistas. 



À sua peculiar maneira, Ratso será um fala barato mas é também um sedutor. Só assim se explicam as amizades e ligações que foi estabelecendo e que, embora com um prolongadíssimo período de gestação, lhe permitiram, à beira dos 70 anos, gravar o seu... álbum de estreia, Stubborn Heart, com um leque de participações (directa ou indirectamente) absolutamente invejável. A começar por John Cale, aqui representado pelas duas canções – "Caribbean Sunset" e "Dying On The Vine" – que co-escreveu com Ratso (sim, é verdade, e com uma mãozinha de Tom Waits e Chuck E. Weiss, presentes no quarto de hotel de Sunset Boulevard onde o parto poético se deu), mas igualmente Nick Cave (num dueto em "Our Lady Of Light") que arrastou Warren Ellis, Dylan (via os 12 minutos inteirinhos de "Sad-Eyed Lady of the Lowlands") e Sharon Robinson, voz e esteio musical de Leonard Cohen, outro íntimo de Ratso. E é por aí que tudo corre muito mal: optando por aquele género de arranjos – teclados, coros femininos, e batida metronómica – que só ficavam bem a Cohen (mesmo quando lhe ficavam mal) e por um inacreditável registo vocal Dylan-imitando-Cohen-a-imitar-Dylan, não há como dar-lhe a benção. Já tinha idade para ter juízo.

25 June 2019

COM MÁSCARA, SEM MÁSCARA 


Bob Dylan não se chama Bob Dylan, mas Robert Allen Zimmerman. Ou Elston Gunn (quando, em 1959, tocou piano com Bobby Vee), Blind Boy Grunt (enquanto "folk singer" numa compilação da revista “Broadside” bem como num álbum de Richard Farina e Eric Von Schmidt, ambos de 1963), Tedham Porterhouse (quando empunhou a harmónica ao lado de Ramblin’ Jack Elliot, em 1964), Robert Milkwood Thomas (pianista em Somebody Else’s Troubles, de Steve Goodman, 1972), Boo Wilbury (nos Travelling Wilburys, com George Harrison, Jeff Lynne, Roy Orbison e Tom Petty, entre 1988 e 1991), Jack Frost (produtor ou co-produtor de Under The Red Sky, 1990, Time Out Of Mind, 1997, e Love and Theft, 2001), Sergei Petrov (co-argumentista com Larry Charles, no filme Masked and Anonymous, onde desempenha o papel da "rock star", Jack Fate, 2003) e, previsivelmente, Alias (personagem de Pat Garrett & Billy the Kid, de Sam Peckinpah, 1973). Em I’m Not There, de Todd Haynes (um filme “inspirado pela música e pelas muitas vidas de Bob Dylan”, de 2008), dividia-se por seis heterónimos: Arthur Rimbaud (narrador, comentador, a encarnação viva do lema que Dylan fez seu: “Je est un autre”); Woody Guthrie (um miúdo negro de 11 anos que tanto dá corpo ao jovem Dylan como ao próprio Woody); Jack Rollins (sobreposição do Dylan “cantor de protesto” e do simétrico cristão "born again"); Robbie Clark (protagonista do filme-dentro-do-filme, “Grain Of Sand”, um biopic sobre Jack Rollins), Jude Quinn (o Dylan de Highway 61 a Blonde On Blonde); e Billy The Kid (em fuga do papel de “porta-voz de uma geração”: “Quando acordo, sou uma pessoa, quando adormeço, tenho a certeza que sou já outra”). 

Em 1966, numa conversa com Robert Shelton, do “New York Times”, confessou ter-se libertado de uma dependência da heroína que lhe custava 25 dólares por dia e que, quando chegara a Nova Iorque, no início dos anos 60, havia trabalhado como prostituto. Antes disso, contara ter viajado clandestino em combóios de mercadorias e que trabalhara num parque de diversões ambulante como encarregado de limpezas e responsável pela grande roda. Não é, de todo, importante que essas e outras revelações nunca hajam sido confirmadas. Em Rolling Thunder Revue – A Bob Dylan Story by Martin Scorsese, ele faz questão de esclarecer logo tudo: “Viver não serve para nos descobrirmos ou para encontrarmos algo. Viver serve para nos criarmos”. É no quadro desse imenso plano que é importante reler com atenção o subtítulo: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese. “Uma” história – isto é, uma ficção entre possíveis outras – criada por Martin Scorsese, acerca de (um dos inúmeros) Bob Dylan. No caso, aquele que, no Verão de 1975, entre a publicação do magnifico e redentor Blood On The Tracks (1975) e a gravação de Desire (1976) - e após uma digressão com The Band que o deixara insatisfeito -, congeminou a ideia de, qual trupe de ciganos, fazer-se à estrada numa carrinha, na companhia de amigos vários – Roger McGuinn, Joan Baez, Joni Mitchell, Scarlet Rivera, Ramblin’ Jack Elliot, Mick Ronson, Ronee Blakley, Allen Ginsberg, T-Bone Burnett – e, praticamente sem anúncio prévio, apresentar-se em pequenas salas de cidades de reduzida dimensão. 


Teria início a 30 de Outubro de 1975, em Plymouth, no Massachusetts (58,271 habitantes) e, duas dezenas de datas depois, concluiria a primeira volta – haveria uma segunda, entra Abril e Maio do ano seguinte – a 8 de Dezembro, no Madison Square Garden, de Nova Iorque. Na véspera, actuara na Edna Mahan Correctional Facility for Women, uma prisão feminina de New Jersey. A bordo, viajariam também Sam Shepard e um documentarista que desempenhariam a função de cronistas da expedição. Se o Dylan actual, declara não recordar-se já de nada (“Aconteceu há tanto tempo, eu não era ainda nascido”), Shepard, no Rolling Thunder Logbook que publicaria em Março de 1976, regista que o Bicentenário dos EUA que, então se celebrava – meses depois da queda de Saigão e um ano após a demissão de Richard Nixon – “tinha enlouquecido New England, como se, em desespero, se procurasse ressuscitar o passado (...) e o nosso desvairado presente apenas pudesse ser salvo por fantasmas”. O documentarista Stefan van Dorp, esse, entrevistado por Scorsese, lamenta-se amargamente de não lhe ter sido atribuído o relevo que merecia e distribui bílis e ressentimento por diversos participantes da caravana.


É o instante em que começamos a aperceber-nos que The Vanishing Lady (1896), filme de um minuto e meio, de George Méliès, que abre o documentário, nos alerta para todo o ilusionismo que virá a seguir: na verdade, o responsável pelas filmagens da digressão foi Howard Alk, um realizador de Chicago amigo de Dylan, e van Dorp é uma personagem ficcional (representada por Martin Von Haselberg, marido de Bette Midler). Mais à frente, escutamos a divertida história do político democrata Jack Tanner, apoiante de Jimmy Carter, a quem este conseguiu, miraculosamente, um bilhete para o concerto de Niagara Falls. Tanner, de facto, existiu mas apenas virtualmente, enquanto personagem de Tanner ‘88’, uma série de televisão da HBO, realizada por Robert Altman, em 1988. Então e agora, encarnada pelo actor Michael Murphy. Jim Gianopulos é, sem dúvida, Jim Gianopulos mas, quando diz “Não é para me gabar mas a Rolling Thunder foi ideia minha”, o actual CEO da Paramount Pictures que nunca organizou um concerto na vida, está, deliciadamente, a assumir o guião da ficção Dylan/Scorsese. Tal como Sharon Stone – com fotografia photoshopada e tudo – ao relatar o concerto a que, com a mãe, teria assistido aos 19 anos, tendo sido recrutada como quase-roadie do circo itinerante e acreditado ingenuamente que fora acerca dela que Dylan escrevera "Just Like A Woman". E, não, a inspiração para se exibirem em palco com os rostos pintados de branco não teve origem na maquilhagem dos Kiss (que Scarlet Rivera, suposta namorada de Gene Simmons, lhe apresentara) mas em Les Enfants du Paradis (1945), filme de Marcel Carné.

O outro momento revelador acontece quando Bob Dylan, hoje, sem máscara nem pintura no rosto enrugado, olha para a câmara e afirma: “Se alguém estiver a usar uma máscara, dir-te-á a verdade. Se não, será bastante improvável”. Traduzindo: Rolling Thunder Revue – A Bob Dylan Story by Martin Scorsese não é verdadeiramente um documentário e apenas pode ser considerado “by Martin Scorsese” na qualidade de cúmplice – enquanto montador e reconfigurador das filmagens originais e responsável pelas entrevistas de agora – de mais uma reinvenção de Bob Dylan, que, de caminho, reinventa também a lenda em torno dele. À época, o que ocupava Scorsese era a realização de Taxi Driver e, só em 2005, com No Direction Home – esse, sim, um documentário sobre Dylan, das origens à “heresia eléctrica” –, os caminhos de ambos se cruzariam. O que já se conhecia – das caóticas 4 horas de Renaldo And Clara (1978), atabalhoadamente realizado pelo próprio Dylan e alegadamente herdeiro do filme de Carné e de Tirez Sur Le Pianiste (1960), de Truffaut –, ganha aqui, entretanto, uma incomparável nitidez: no episódio sobre o pugilista negro Rubin “Hurricane” Carter injustamente condenado a uma pena de prisão, acerca do qual Dylan escreveria uma canção que vemos e ouvimos iradamente interpretada, mas também na passagem pela reserva índia de Tuscarora, onde canta "The Ballad Of Ira Hayes", de Peter La Farge, nas intenssíssimas rendições de "Isis", "A Simple Twist Of Fate", "The Lonesome Death of Hattie Carroll", "A Hard Rain’s A-Gonna Fall" e "Another Cup of Coffee" ou na peregrinação, com Ginsberg, ao túmulo de Jack Kerouac. Com ou sem máscara.

26 December 2013

MIL ARDIS 


A realeza folk gosta de se apresentar na companhia de gatos: Dylan, deixou-se fotografar com eles em diversas circunstâncias, e, em especial, na capa de Bringing It All Back Home, com o seu "Rolling Stone" ao colo (em Rock Dreams, Guy Peellaert desenhá-lo-ia-o no interior de uma limusine abraçando outro tigre de bolso); Joan Baez, é omnipresente nas imagens do Google com uma pequena pantera negra nos braços; Joni Mitchell escreveu "Man From Mars" dedicada ao bem amado "Nietzsche" – arraçado de ocelote – e pintou-o (nomeadamente, na capa de Taming The Tiger); June Tabor escolheu-os para as capas de Abyssinians e Angel Tiger; Suzanne Vega não esconde o enlevo pelos "lounge tigers", "Caramel" e "Cinnamon", evocados em "Caramel" (que, bastante a propósito, seria incluída na banda sonora de The Truth About Cats And Dogs); e, acerca de Leonard Cohen, conhece-se a lenda dos seus poderes sobrenaturais de "cat whisperer", por meio dos quais terá devolvido a saúde ao felino "Hank" (assim baptizado em honra de Hank Williams). Mas, apesar disso, nenhum deles tinha tido, até agora, a honra de se juntar aos seus pares mais célebres do cinema como o "Orangey", de Breakfast At Tiffany's, o denunciante involuntário de Harry Lime/Orson Welles em O Terceiro Homem, o companheiro de Philip Marlowe no Long Goodbye, de Altman, ou a fabulosa assombração a preto e branco do genérico de Saul Bass para Walk On The Wild Side, coreografada sobre a música de Elmer Bernstein.



A sorte coube ao laranja, "Ulysses", encarregado de, em Inside Llewyn Davis, de Joel e Ethan Coen, representar o anónimo vadio que, na capa do álbum Inside Dave Van Ronk, espreita da mesma porta do Village a que este se encosta. Llewyn Davies não é Van Ronk, tal como o Salieri de Amadeus não era o Salieri histórico. Mas, nesta libérrima revisitação dos anos do folk revival nova-iorquino conduzida metaforicamente pela deambulação de um Ulysses de quatro patas, mais ou menos reconhecíveis ou com as identidades trocadas, não deixam de se encontrar marcas e figuras de uma era determinante para a música popular. Se Van Ronk era “o mayor de MacDougal Street” – esse santuário onde se situavam o Gerde’s Folk City, o Cafe Wha? ou o Gaslight Cafe, locais de peregrinação dos "beats", de Auden, Pollock, Miles Davis, Dylan Thomas, Gore Vidal e "tutti quanti" –, erudito supremo em matéria folk, isso não bastou para que, com o surgimento de Bob Dylan, em 1961 (a quem, em No Direction Home, de Scorsese, ele acusa justamente de lhe ter roubado o arranjo de "House Of The Rising Sun"), enquanto representante da geração de puristas ortodoxos, o seu tempo tivesse passado. Na banda sonora do filme (superiormente produzida por T Bone Burnett, reincidindo, ao lado dos Coen, após O Brother, Where Art Thou?), esse momento é assinalado pelo "Farewell", de Dylan, logo antes de "Green, Green, Rocky Road", do próprio Van Ronk. A restante cenografia musical – às mãos de Marcus Mumford, Punch Brothers e do improvável mas correctíssimo Justin Timberlake –, de tradicionais a temas de Tom Paxton, Brendan Behan e Ewan MacColl, é objecto de engenhosa reconstituição histórica. Tanto quanto os mil ardis de Ulysses.
FOLK SINGER(S) WITH(OUT) A CAT (VI)

(da esquerda para a direita) Mimi Fariña, Dave Van Ronk, Joan Baez, Leonard Cohen, Judy Collins, Chad Mitchell (na guitarra) - daqui

06 June 2013

NULLI PRAEDA SUMUS


No caldo de cultura pop largamente dominante em que a inspiração tende a funcionar através do método de aspiração-Hoover do passado, as águas dividem-se entre aqueles que negam peremptoriamente as provas óbvias da matéria aspirada e os outros que as exibem triunfantemente como se de troféus de caça se tratasse. Com Laura Marling, as coisas passam-se de um modo algo diferente: não só é ela a primeira a admitir que, quando, aos seis anos, começou a aprender a tocar guitarra, a primeira canção que o pai lhe ensinou foi "The Needle And The Damage Done", de Neil Young, e que, praticamente, bebeu do biberão Joni Mitchell, Bert Jansch e James Taylor, como, hoje, é, justamente, gente como Young, Graham Nash ou Joan Baez que se confessa fã da filha do quinto baronete de Marling, cujo lema de família, Nulli Praeda Sumus (“Não somos presa de ninguém”), Laura tatuou no pulso direito. 

 

Once I Was An Eagle poderá, facilmente, deixar-se inscrever no género dos álbuns “confessionais” – de que Mitchell et alia foram os praticantes máximos, entre uma multidão de discípulos menores que chegaram a transformar "singer-songwriter" num insulto bem pior do que “palhaço” – mas, note-se, num subcapítulo das refregas sentimentais em que Laura Marling não abdica do estatuto de predadora. Experimentem este percurso: “When we were in love, I was an eagle and you were a dove”, “I’m a master hunter, I cured my skin, now nothing gets in”, “I will not be a victim of romance, I will not be a victim of circumstance”, “Once is enough to make you think twice”, “You weren’t a curse, thank you naïveté for failing me again, he was my next verse” e “Give me something, let me go, tell me something I don’t know”.  



Mas, se lhe acrescentarem “You want a woman who’ll call your name, it ain’t me babe, no, no, no, it ain't me babe”, isso, por interposto Dylan, ajudará a compreender como Marling, ainda só no quarto álbum (após Alas, I Cannot Swim, 2008, I Speak Because I Can, 2010, e A Creature I Don't Know, 2011, todos, como este, com títulos de seis sílabas) se mostra suficientemente confiante para citar os clássicos e – escutando os seus 63 minutos –, ao mesmo tempo, reclamar para si uma genealogia musical não menos aristocrática do que a da sua família de sangue: a de Roy Harper, John Martyn, Nick Drake, Van Morrison ou dos Byrds (se quisermos aproximar mais conspirativamente a cronologia, pense-se, igualmente, em Sometimes I Wish We Were An Eagle, de Bill Callahan, 2009). Quase conceptual na estrutura (suite inicial de uma única peça desdobrada em cinco títulos, coda, interlúdio e desfecho final em oito andamentos), austero na utilização praticamente exclusiva de guitarras, violoncelo e percussão – mas o Hammond, oh quão dylaniano!... de ‘Where Can I Go?’ –, é o perfeito lugar geométrico onde todos os elementos se combinam, expandem e transfiguram, a evocação das 12 cordas de Roger McGuinn convive com modalismos tão orientais como ibéricos e, à discretíssima boleia de "It's Alright, Ma (I'm Only Bleeding)", em "When We Were Happy", Laura Marling, por um segundo, nos obriga a pensar com ela: “I look at people in the city and wonder if they’re lonely or like me they’re not content to live as things are meant to be”.

03 March 2013

NA RUA, DE NOVO 


Página 172 da edição de 1989 da Penguin Encyclopedia Of Popular Music, entrada de Chico Buarque de Hollanda (ou, como lá consta, “Buarque, Chico de Hollanda”). Depois de informar que “nasceu em 1944, em São Paulo” – na realidade, o feliz acontecimento ocorreu no Rio de Janeiro –, filho de uma família de académicos abastados, que é o autor de "A Banda" e "A Pesar [sic] de Você" e foi objecto da censura do regime militar brasileiro, acrescenta: “Compôs ‘Grândola Vila Morena’, em 1975, hino da revolução portuguesa, cujo texto, mais tarde, adaptaria para o Brasil”. Na totalidade das 1378 páginas da enciclopédia não se descobre qualquer alusão a José Afonso. Hoje, provavelmente, já seria mais difícil repetir-se tal erro, pois, após "Grândola" – iniciando uma segunda e atarefadíssima etapa de vida politicamente activa – ter sido entoada pela primeira vez na Assembleia da República a 15 de Fevereiro, a interromper um discurso de Pedro Passos Coelho, uma busca sumária no Google através de “Grândola Vila Morena + portuguese prime minister” ou “Grândola Vila Morena + premier ministre du Portugal” oferece uma perspectiva bastante esclarecedora de como a canção saltou definitivamente as fronteiras e uma razoável parcela do mundo deixou de poder gozar de atenuantes para eventuais confusões. 




Não que ao seu quase meio século anterior de existência – "Grândola" foi, de facto, escrita por José Afonso em 1964 embora só gravada, no álbum Cantigas do Maio, em 1971 – escasseasse o reconhecimento: muito antes de servir de banda sonora a cappella para toda e qualquer aparição de ministro ou secretário de estado português, em Portugal ou alhures, contava já com cerca de duas dezenas de versões por músicos de diversos géneros, nacionalidades e importâncias. Verdadeiramente memorável é a do contrabaixista de jazz, Charlie Haden, no álbum de 1983, The Ballad Of The Fallen (álbum do ano para a “Down Beat”, em 1984), segundo volume da sua Liberation Music Orchestra, com arranjos de Carla Bley e a participação de Don Cherry, Michael Mantler, Paul Motian e Dewey Redman (a relação de Haden com Portugal vinha, aliás, de 1971, quando, no Festival de Jazz de Cascais, integrado no quarteto de Ornette Coleman, dedicara a sua "Song For Che" aos movimentos de libertação das colónias portuguesas, o que lhe proporcionaria a detenção pela PIDE/DGS no aeroporto de Lisboa e o convite para um conhecimento breve das instalações da António Maria Cardoso).




Mas as de Joan Baez, Amália Rodrigues, Nara Leão e Pascal Comelade não são medalhas muito menores, numa lista de tributos onde se inscrevem ainda, no território do jazz e domínios afins, as do Zé Eduardo Unit e da Orkest de Volharding (Holanda), roqueiramente electrificada, às mãos dos UHF e dos brasileiros Autoramas e 365, submetida a reconfigurações electrónicas por Vítor Rua e Gamma Ray Blast (José Paulo Andrade, ex-baixista dos Ocaso Épico), em graus diversos de cerimoniosa veneração, por finlandeses (Agit Prop), chilenos (Aparcoa), suecos (Brita Papini e Maria Ahlstrom), italianos (Canto Vivo) e alemães (Franz Josef Degenhardt), e, no patamar inferior da cadeia alimentar, Linda De Suza, Paula Ribas e Roberto Leal. Destino ilustre e pouco previsível para uma canção que, como conta o guitarrista Fernando Alvim no "booklet" de Cantigas do Maio (na reedição em curso da discografia de Afonso), nasceu, humildemente, a 17 de Maio de 1964, ao volante do automóvel que Zeca conduzia, no regresso de um concerto na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense onde também conheceria Carlos Paredes ("O que esse bicho faz da guitarra!", escreveria José Afonso numa carta aos pais): “Ele ia cantando ao volante – até para não adormecer –, depois, começou a desenvolver a melodia e, quando chegou ao fim da viagem, pelas quatro da manhã, a canção estava feita”.



Dez anos mais tarde, a 29 de Março de 1974 (treze dias após o ensaio geral para a revolução que teria lugar cerca de um mês depois), no “Primeiro Encontro da Canção Portuguesa”, organizado, no Coliseu de Lisboa, pela Casa da Imprensa – que, segundo o jornalista Pedro Laranjeira, quase não aconteceu: “O regime já estava nitidamente em fase de implosão. Quiseram derrotar-nos não com uma proibição do Festival, mas com uma não-resposta. Até ao dia do espectáculo ainda não sabíamos se tínhamos, ou não, autorização. Por volta das 17 e 30 do dia 29, quando cheguei ao Coliseu, já havia muita gente à volta, e ao fundo da Avenida da Liberdade lá estava a polícia de choque... estava a desenhar-se ali um confronto!” –, os mui zelosos e raramente inteligentes funcionários da Comissão de Censura que esquadrinharam o reportório a ser interpretado em palco (participavam igualmente, entre outros, Adriano Correia de Oliveira, Fausto, Vitorino, Carlos Paredes e Manuel Freire) amaldiçoaram boa parte das canções mas deram a bênção aquela que, dali a quatro semanas, lhes iria retirar a tão acarinhada ocupação: a encerrar o espectáculo, cantada em coro pelas 7000 pessoas que enchiam a sala, "Grândola Vila Morena" tornava-se candidata evidente ao estatuto de senha para o golpe de Estado.



Na noite de 24 para 25 de Abril, cerca de hora e meia depois do primeiro sinal para o desencadeamento das operações militares ("E Depois do Adeus", de Paulo de Carvalho), no programa “Limite”, de Pedro Laranjeira, na Rádio Renascença, "Grândola" era a vitamina para as forças em movimento: tudo corria de acordo com o plano, havia que o conduzir até ao fim. "Vivi o 25 de Abril numa espécie de deslumbramento. Fui para o Carmo, andei por aí... Estava de tal modo entusiasmado com o fenómeno político que nem me apercebi bem, ou não dei importância a isso da ‘Grândola’. Só mais tarde, com o 28 de Setembro, o 11 de Março, quando recomeçaram os ataques fascistas e a ‘Grândola’ era cantada nos momentos de maior perigo ou entusiasmo, me apercebi bem de tudo o que ela significava - e, naturalmente, tive uma certa satisfação" diria, anos depois, José Afonso. Mas, mesmo então, não sonhava, de certeza, que aquela música que lhe surgira numa madrugada, gravara nos estúdios do Château d’Hérouville, perto de Paris, e que cantaria, pela primeira vez, em palco, em Santiago de Compostela (onde, desde Maio de 2009, existe um Parque José Afonso), na praça do Burgo das Nações, a 10 de Maio de 1972, viria, de novo, a recuperar de tal modo a vitalidade simbólica que já tivera.




A 16 de Outubro de 2012, no Facebook, a página "Grândola ao Dragão" desafiava os adeptos que iriam assistir, nessa noite, ao jogo da Selecção Nacional com a Irlanda do Norte, a “aos 20 minutos e 12 segundos de jogo (20:12=2012, o corrente ano), entoarem a uma só voz o ‘Grândola Vila Morena’, canto e senha que nos uniu em lutas passadas, canto e senha que de novo se erga e que proclame, através de todo o território e além-fronteiras, que, ombro a ombro, sabemos que outro caminho é possível e que iremos percorrê-lo (...) contra a troika, este governo e a austeridade”. Já, em Maio do ano anterior, António Fontes, deputado do PND, cantara a "Grândola" no plenário do Parlamento Regional da Madeira, “em defesa da liberdade de imprensa na região autónoma”. Mas seria apenas após o coral de S. Bento e o silenciamento de um ministro da República que, nesse episódio, deverá ter encontrado novos motivos para a sua “simplicidade da procura do conhecimento permanente”, que a "Grândola" – manifestando-se também, nos protestos de Madrid, pela Gran Vía e Calle de Alcalá, no dia a seguir ao momento-Passos Coelho, interpretada pela Orquestra Solfonica 15M – abandonaria o seu estatuto instaladamente institucional de “hino do 25 de Abril”, condenado a picar o ponto uma vez em cada ano, e regressaria às ruas, fora de horas e ignorando o calendário, como acontecera um segundo antes de quase se deixar capturar pelos museus da História. (segue aqui)

14 August 2011

(O ANO A SEGUIR AO) ANO DO TIGRE (LVII)

Fotos de gente praticamente anónima (e que não foi
fácil identificar) autopromovendo-se na companhia
de esplendorosos tigres























Marilyn Monroe























Marianne Faithfull






















Gloria Grahame























Isabelle Huppert























Joan Baez

(2011)

31 May 2011

CANÇÃO DO PATRIMÓNIO TRADICIONAL
COMUM PORTUGUÊS, GREGO E IRLANDÊS

(e, futuramente, espanhol, italiano, belga e, quiçá, dinamarquês)

Joan Baez - "I Pity The Poor Immigrant" (B. Dylan)



I pity the poor immigrant
Who wishes he would've stayed home
Who uses all his power to do evil
But in the end is always left so alone
That man whom with his fingers cheats
And who lies with ev'ry breath
Who passionately hates his life
And likewise fears his death.

I pity the poor immigrant
Whose strength is spent in vain
Whose heaven is like Ironsides
Whose tears are like rain
Who eats but is not satisfied
Who hears but does not see
Who falls in love with wealth itself
And turns his back on me.

I pity the poor immigrant
Who tramples through the mud
Who fills his mouth with laughing
And who builds his town with blood
Whose visions in the final end
Must shatter like the glass
I pity the poor immigrant
When his gladness comes to pass.


(2011)

22 April 2011

O PENSAMENTO FILOSÓFICO PORTUGUÊS (LXIV)

João César das Neves



De JCN, já conhecíamos o génio para a alegoria de inspiração bíblica, a sua implacável denúncia do "totalitarismo do orgasmo", a incomensurável erudição sobre a vida e obra de Joan Baez e a requintada veia de onirismo profético.

Nada, porém, nos poderia preparar para o devastador embate de colidir de frente com o mais negríssimo humor aplicado ao comentário político. O início de "Crise" é duro, indignado e pungente:

"O que mais custa nesta terrível crise é a suprema injustiça. Pessoas inocentes são despedidas, prejudicadas, espezinhadas, agredidas, e os verdadeiros responsáveis não só ficam incólumes, mas ainda se atrevem a protestar e dar-se como vítimas". (...)

A crise embrulha-nos como enxurrada impiedosa e imparável, ao sabor dos credores internacionais. Sentimo-nos como gado levado para o matadouro, ovelhas mudas ante aqueles que nos tosquiam".


O murro no estômago, contudo, surge, na avassaladora "punch line":

"É precisamente nesta altura que o calendário nos traz a Páscoa, que nos mostra isto mesmo, num grau muito superior. Milhares de milhões de pessoas em todo o mundo vão celebrar o mistério da suprema injustiça, da mais completa impotência". (aqui)

Toma e embrulha!

(2011)