(sequência daqui) Até ao encerramento em 1972, transformar-se-ia no ponto de encontro e centro nevrálgico das cenas folk, blues e tudo à volta da época, para lá convergindo tanto devotos das músicas tradicionais como audaciosos experimentadores do que não era ainda conhecido como "psicadelismo", futuras celebridades ou eternos desconhecidos. Bob Dylan, Joni Mitchell e Van Morrison terão também andado por lá, Nick Drake era visto como "um jovem nervoso que punha o público a dormir", e, conta o guitarrista Mike Cooper, uma noite, tendo-se cruzado à porta com um tipo que era a cara chapada de Tim Buckley, disse-lho. "Mas eu sou o Tim Buckley" respondeu ele. "Sim, sim, e eu sou o Tim Hardin". Era o Tim Buckley.
20 April 2023
"Horumarye"
(sequência daqui) Agora, em Nowhere and Everywhere, sob a designação Unthank : Smith, uma escapada a duo com Paul Smith (dos não demasiado memoráveis Maxïmo Park) vigiada pela produção de David Brewis (Field Music), o argumento regionalista volta a emergir: “Eu vivo em Northumberland, já vivi em Newcastle e a minha família é de Teesside. O Paul vive em Newcastle mas é de Teesside. O David é de Sunderland. Mas não concebemos o álbum como obra de um triunvirato do Nordeste, foi apenas uma coisa bastante natural”. Smith alega que a aproximação à folk decorreu da descoberta da música de Martin Carthy, Karen Dalton, Nick Drake e Bert Jansch, e ambos, sem o terem planeado, foram achando um lugar comum para as vozes que, com o suporte do clarinete de Faye MacCalman e da percussão de Alex Neilson, sob a supervisão espartanamente minimalista de Brewis, se lançaram, de sotaques e dialectos locais orgulhosamente em riste (“Sentimos que era importante não adocicar as nossas vozes”, diz Rachel), sobre histórias e lendas de marinheiros, mineiros e lendários seres marinhos enfeitiçados.
(sequência daqui) “Foi-me fácil usar a estrutura do ano porque é também dessa forma que se encara o tratamento do cancro – esta sensação de lidar com o tempo, um ano de cada vez”, diria Dessner. As últimas peças do "puzzle" foram acrescentadas quando, no Natal de 2018, esta desafiou os irmãos Aaron e Bryce (os gémeos Dessner, de The National) a ocupar-se das orquestrações que haveriam de ser executados pela Malmö Symphony Orchestra, repto imediatamente aceite. Gravados os esboços vocais/instrumentais nos estúdios St. Germain, de Paris, pela frente surgiria ainda o obstáculo do confinamento pandémico que, uma vez ultrapassado, possibilitaria a conclusão do projecto. Sem ser, realmente, mais uma variação sobre o tema das 4 estações mas antes uma busca da sintonia entre o individual e o universal, Complete Mountain Almanac é um ponto de encontro perfeito entre música de câmara e joalharia folk, tal como Virginia Astley, as Unthanks ou Nick Drake imediatemente as apadrinhariam.
(sequência daqui) E, referindo-se ao facto de grande parte do disco ter sido concebido nas atmosferas rurais do Norte do estado de Nova Iorque e de Santa Fe, no Novo México, acrescentava; “Não sou uma pessoa particularmente espiritual. Não sou religioso. Mas, definitivamente, sinto uma espécie de relação misteriosa com certos lugares. É o mais próximo que chego de uma experiência espiritual”. É, então, num registo de art/rock/folk – de Van Dyke Parks a Baden Powell, Robert Wyatt, Jim O’Rourke, Nick Drake, a clássica de câmara e o jazz – que estas 10 matrioscas sonoras meticulosamente orquestradas circulam, entre espirais de guitarra, arrebatamentos orquestrais e oceânicas massas corais, à esquina de um quase aforismo Zen: “Our work for work’s sake, we’re useless in our way, clear the brush and push the paint, nothing’s lost when there’s nothing there, whatever was and whatever will”.
(sequência daqui) Em 35 minutos e 10 aguarelas pontilhistas, todos desmontam a armadilha preferida da perfeição que consiste em fazer-nos crer na sua impossibilidade de existir – ela está aqui, pronta a ser descoberta a cada capítulo desta sucessão de haikus envoltos em névoa que pairam sobre uma cabana-grande-como-uma-casa, “um lugar temporário onde nos abrigamos das intempéries”, concebido “como um espelho, como imagens que se reflectem, se opõem e se respondem”, nas vozes sobrenaturalmente complementares de Will Oldham e Kate Stables. Construída laboriosamente ao longo de 5 anos (“Tinha ficheiros verdes, vermelhos e amarelos no meu computador e, à medida que os trabalhava, esperava que alguns se elevassem à cor superior. Por vezes, voltava ao dossier vermelho na esperança de poder salvar algum e temia que algum verde tivesse sido despromovido a vermelho”, conta Thomas a respeito do seu semáforo criativo), é uma delicada peça de folk de câmara para interiores – desdobrada em componentes de video e fotografia – de um frágil impressionismo luminoso e detalhado que, para se nos colar à pele, não precisa que se diga quanto, aqui e ali, faz pensar em Paul Simon ou no olhar de Robert Kirby sobre Nick Drake.
Se, numa lista de 10, escasseiam vagas para aquilo que, em ano de farta colheita musical, mais estimulou os tímpanos, 52 semanas são também intervalo de tempo verdadeiramente insuficiente para, uma a uma, se ir destapando tudo o que, no dilúvio da edição discográfica, merece não passar despercebido. O que transforma o início de cada novo ano numa espécie de coda do anterior na qual, por entre justificações mal amanhadas (ler as linhas acima) e actos de contrição perante a desatenção que conduziu a ignorar o que não devia ser ignorado, se procura remediar as falhas. Sejam, então, bem-vindos à coda 2017/2018, a abrir, justissimamente, com uma daquelas peças que, só por si, comprovariam a urgência de prolongamento do calendário gregoriano: Last Leaf, do Danish String Quartet.
Sem cair na armadilha dos intérpretes de formação clássica que, ao deixar-se tentar pela abordagem de idiomas populares, tendem a desvalorizar a própria identidade, Rune Tonsgaard Sørensen (violino, harmonium, piano, glockenspiel) Frederik Øland (violino), Asbjørn Nørgaard (viola de arco) e Fredrik Schøyen Sjölin (violoncelo) – reconhecidos como virtuosos exploradores das partituras de Bartók, Beethoven, Shostakovich, Brahms, Haydn, Mozart, Sibelius e Schnittke – propuseram-se, agora, investigar “a rica fauna das melodias folk nórdicas”. Recuando até "Dromte Mig en Drom" – a mais antiga canção secular escandinava presente na última folha do Codex Runicus (c. 1300) –, guiam-nos por 16 pontos de paragem, num fantástico périplo de dimensão equiparável (embora com as coordenadas distintivas de um quarteto de cordas clássico) ao que os Hedningarna de Kaksi! (1992) nos haviam oferecido.
A tradição musical popular é, igualmente, a matéria-prima das Sopa de Pedra, colectivo vocal feminino a capella, do Porto, e uma das mais recentes peças de um "puzzle" onde já se encontravam Cramol, Segue-me à Capela e Maria Monda (todas, aliás, reunidas em Novembro do ano passado no concerto “De Viva Voz”)
Cinco anos de gestação foram necessários para dar à luz Ao Longe Já Se Ouvia, belíssimo painel de temas maioritariamente do reportório tradicional da Beira-Baixa, Alentejo,Trás-os-Montes e Açores (acrescidos de dois de Amélia Muge e outro de José Afonso) em gloriosas polifonias corais.
O extraordinariamente intitulado Adiós Señor Pussycat constitui, enfim, o inesperado regresso de uma das lendas secretas da escrita de canções pop britânica: Michael Head (com a Red Elastic Band), ele dos Pale Fountains, Shack e The Strands, que o “New Musical Express” chegou a coroar como “our greatest songwriter”, mas a quem, uma particularmente infeliz combinação de azares e múltiplos vícios sempre impediu de se erguer acima do estatuto de culto.
Aparentemente, de novo com a cabeça fora de água, canções como "Queen Of All Saints", "Josephine", "What’s The Difference", "Wild Mountain Thyme", "Adiós Amigo" ou "Rumer", recuperam sem perdas aquele precioso e aromático "pot-pourri" de Byrds, Love e Nick Drake.
06 June 2017
ASCENDER
Molly Drake nasceu, em 1915, na Birmânia. Era filha de Sir Idwal Lloyd e Georgie Lloyd, ambos membros das forças militares do império britânico. Estudou em Inglaterra mas regressaria a Rangum onde se casaria com Rodney Drake em 1937. A invasão japonesa, em 1942, obrigá-la-ia a fugir, a pé, para Deli, na Índia, aí permanecendo até perto do final da segunda guerra mundial. De volta a Rangum, teria a primeira filha, Gabrielle, e quatro anos depois, um filho, Nick (futuro autor de uma curta e sublime discografia – Five Leaves Left (1969), Bryter Layter (1971) e Pink Moon (1972) – depressivo profundo que, aos 26 anos, se suicidaria). Finalmente, em 1952, a família mudou-se para Inglaterra, residindo em Tanworth-in-Arden, no Warwickshire, não longe da shakespeareana Stratford-upon-Avon, onde desfrutaria de uma confortável vida "upper-middle-class". Não era segredo que Molly, para a família e amigos, tocava piano e interpretava canções que, informalmente, compunha sem qualquer ambição de alguma vez as gravar ou publicar. Foi apenas há dez anos, aquando da edição de Family Tree – uma compilação de gravações caseiras de Nick Drake –, que, pela primeira vez se escutaram duas canções de Molly, "Do You Ever Remember?" e "Poor Mum".
Essas duas e mais dezassete surgiriam, depois, no CD Molly Drake (2013), recolha de canções e poemas a partir dos registos de Rodney Drake num gravador Ferrograph. Rachel e Becky Unthank, na qualidade de “cantoras folk com alma de pega”, escutaram o álbum e, “perante aquela arca de tesouros” sentiram, de imediato, que não poderiam esquivar-se a fazer algo com elas. Seria, aliás, mais uma óptima peça no puzzle da discografia paralela das Unthanks: a série “Diversions” que já inclui os volumes The Songs of Robert Wyatt and Antony & the Johnsons (2011), The Unthanks with Brighouse and Rastrick Brass Band (2012) e Songs from the Shipyards (2012). The Songs And Poems Of Molly Drake é, então – com a colaboração de Gabrielle Drake que lê os poemas –, o lugar onde, nas vozes de Rachel e Becky e nos detalhados e subtis arranjos de Adrian McNally, a sombria melancolia "naïve" das palavras e melodias de Molly Drake ganha profundidade, relevo e espessura harmónica. Ela que, morta em 1993, fez inscrever na lápide tumular “And now we rise, and we are everywhere”, de "From The Morning", de Nick Drake.
29 May 2017
A Skin Too Few - The Days of Nick Drake (2000)
05 November 2014
SUPLENTE DE LUXO
Nick Laird-Clowes?... O nome não faz tocar muitas campainhas mas, houvesse alguma justiça nesta matéria, por esta altura, já deveria ter acedido ao estatuto de mini-lenda pop. Ora reparem: quantas personagens conhecem que possam gabar-se de, aos 13 anos, ter fugido do regaço" upper-middle-class" familiar para estar presente no festival da ilha de Wight de 1970? Ou que, um ano depois, tendo conhecido Lennon e Yoko durante uma manifestação contra o julgamento por obscenidade da revista underground, “OZ”, hajam sido convidadas por estes para pernoitar na sua mansão de Tittenhurst Park onde, pela primeira vez, conheceriam os deleites da conjunção carnal com uma modelo australiana duas vezes mais velha? E que, a isso, juntassem as medalhas de ter participado no último álbum dos T. Rex, colaborado com David Gilmour – amigo lá de casa –, em The Division Bell (1994), e com Brian Wilson (Brian Wilson, 1988) que o apelidou de “génio”? Ter convencido Johnny Marr a tocar num dos seus discos e haver sido aluno de guitarra e composição de Davy Graham e Paul Simon vale?
Foi, de facto, pela relação com Simon, que tudo começou, quando o moço que, com o teclista Gilbert Gabriel, tocava, antes dos strip-shows, num clube do Soho londrino, lhe apresentou uma canção que ele e Gabriel tinham composto, "The Morning Lasted All Day". Paul Simon aprovou a canção mas vetou o título: deveria, antes, chamar-se "Life In A Northern Town". Supostamente inspirada em Nick Drake – afinal, fora apenas criada na guitarra que Drake exibe na capa de Bryter Layter, a qual, num impulso fetichista, Nick comprara –, articulando um refrão coral “africano”, atmosfera folk, a guitarra de Gilmour e arpejos repetitivos, confessadamente "à la" Steve Reich, seria, em 1985, o primeiro e único sucesso dos Dream Academy, aliás, Laird-Clowes, Gilbert e Kate St. John, oriunda (tal como Virgínia Astley) das Ravishing Beauties. Ao primeiro álbum homónimo, suceder-se-iam Remembrance Days (1987) e A Different Kind Of Weather (1990), sombras de Satie, Edie Sedgwick e Steinbeck, algo como um suplente de luxo para aqueles momentos em que não há um disco dos Prefab Sprout à mão. Tudo, enfim, reunido agora nos dois outonais CD deThe Morning Lasted All Day.
06 June 2013
NULLI PRAEDA SUMUS
No caldo de cultura pop largamente
dominante em que a inspiração tende a funcionar através do método de
aspiração-Hoover do passado, as águas dividem-se entre aqueles que negam
peremptoriamente as provas óbvias da matéria aspirada e os outros que as exibem
triunfantemente como se de troféus de caça se tratasse. Com Laura Marling, as
coisas passam-se de um modo algo diferente: não só é ela a primeira a admitir
que, quando, aos seis anos, começou a aprender a tocar guitarra, a primeira
canção que o pai lhe ensinou foi "The Needle And The Damage Done", de Neil
Young, e que, praticamente, bebeu do biberão Joni Mitchell, Bert Jansch e James
Taylor, como, hoje, é, justamente, gente como Young, Graham Nash ou Joan Baez
que se confessa fã da filha do quinto baronete de Marling, cujo lema de
família, Nulli Praeda Sumus (“Não somos presa de ninguém”), Laura tatuou no
pulso direito.
Once I Was An Eagle poderá, facilmente, deixar-se inscrever no
género dos álbuns “confessionais” – de que Mitchell et alia foram os praticantes máximos, entre uma multidão de
discípulos menores que chegaram a transformar "singer-songwriter" num insulto bem pior do que “palhaço” – mas,
note-se, num subcapítulo das refregas sentimentais em que Laura Marling não
abdica do estatuto de predadora. Experimentem este percurso: “When we were in love, I was an eagle and
you were a dove”, “I’m a master hunter, I cured my skin, now nothing gets in”, “I
will not be a victim of romance, I will not be a victim of circumstance”, “Once
is enough to make you think twice”, “You weren’t a curse, thank you naïveté for
failing me again, he was my next verse” e “Give me something, let me go, tell
me something I don’t know”.
Mas, se lhe acrescentarem “You want a woman
who’ll call your name, it ain’t me babe, no, no, no, it ain't me babe”, isso,
por interposto Dylan, ajudará a compreender como Marling, ainda só no quarto álbum
(após Alas,
I Cannot Swim, 2008, I Speak Because I Can, 2010, e A Creature I Don't
Know, 2011, todos, como este, com títulos de seis sílabas) se mostra
suficientemente confiante para citar os clássicos e – escutando os seus 63
minutos –, ao mesmo tempo, reclamar para si uma genealogia musical não menos
aristocrática do que a da sua família de sangue: a de Roy Harper, John Martyn,
Nick Drake, Van Morrison ou dos Byrds (se quisermos aproximar mais
conspirativamente a cronologia, pense-se, igualmente, em Sometimes I Wish We
Were An Eagle, de Bill Callahan, 2009). Quase conceptual na estrutura (suite
inicial de uma única peça desdobrada em cinco títulos, coda, interlúdio e
desfecho final em oito andamentos), austero na utilização praticamente
exclusiva de guitarras,
violoncelo e percussão – mas o Hammond, oh quão dylaniano!... de ‘Where Can I Go?’ –, é o perfeito lugar geométrico onde todos os elementos
se combinam, expandem e transfiguram, a evocação das 12 cordas de Roger McGuinn
convive com modalismos tão orientais como ibéricos e, à discretíssima boleia de "It's Alright, Ma(I'm Only Bleeding)", em "When We Were Happy", Laura Marling, por um segundo, nos
obriga a pensar com ela: “I look at people in the city and wonder if they’re
lonely or like me they’re not content to live as things are meant to be”.
02 July 2012
CLASSES "A" E "B"
Anna Ternheim - The
Night Visitor
Há uma dificuldade intrínseca e dificilmente
removível na missão de levar a sério uma "singer-songwriter"
sueca de tendência folk/country e a gravar em Nashville. Será, possivelmente,
apenas um preconceito idiota: na verdade, se a contribuição de origem
escandinava para a música popular tradicional norte-americana “branca” não foi
tão importante como a das ilhas britânicas, nem por isso deixou de existir. E,
vendo bem, não é menos legítima Anna Ternheim do que a legião de bandas
inglesas de blues do final dos anos 60. Até porque, do ponto de vista do
recrutamento dos parceiros de expedição de Anne pela América profunda, nada
existe de reprovável: Matt Sweeney (cúmplice de Cat Power, Bonnie "Prince"
Billy, Guided By Voices, Six Organs Of Admittance, Yo La Tengo) enquanto
produtor, o lendário Cowboy Jack Clement, Will Oldham...
Também não é pelo lado
da escolha de reportório – versões de temas alheios e originais – nem do
guarda-roupa musical (mui sóbrios arranjos acústicos de guitarras,
discretíssimas secções de cordas e vestigiais acordeão e bandolim) que o
edifício vacila. Porque, na verdade, nem vacila. Simplesmente, da sua exacta e
mais que perfeita bissectriz entre tradições americanas e o seu posterior
reflexo europeu (ver Sandy Denny, Nick Drake, Martin Carthy), traduzida em
amáveis aguarelas melódicas e macios afagos harmónicos, solta-se muito mais a
sensação de "coffee-table music" para
salões de classes A e B do que tudo aquilo que – com mais ou menos alegada
autenticidade, mais ou menos terra agarrada à voz e aos instrumentos – preferimos
escutar num disco que reinvindica o género de paternidade que The Night
Visitor escolheu para si. E é impossível afastar a suspeita de que, um
só passo para o lado errado, e Anna Ternheim chamar-se-ia Norah Jones.
26 January 2011
PETÚNIA À BEIRA DO DESMAIO
Sun Kil Moon - Admiral Fell Promises
Mark Kozelek – desde as origens nos Red House Painters à discografia assinada com o próprio nome ou sob o heterónimo Sun Kil Moon – nunca foi o género de criatura que se convida para dar vida a uma festa. Nada de grave: Leonard Cohen, Nick Drake ou Mark Eitzel também não devem a celebridade ao facto de terem uma costela de "stand-up comedians" e isso não os impediu de, por entre dilúvios de melancolia e saturnidade, terem legado discografias memoráveis. Se, por outro lado, optarmos por tentar descobrir traços de afinidade estética com Neil Young – tanto em variante acústica como eléctrica –, instantaneamente nos aperceberemos de que nunca o canadiano praticou nada de tão entorpecente quanto a modalidade-Kozelek de rock/folk/country-on Xanax. Dylan?... Mas deixar-se-ia ele alguma vez apanhar a destilar (mesmo nos anos das trevas "born again") inefáveis essências poéticas do género “Come out from the burning fire, butterfly, let me lock you in my room and keep you for a while, could you be the answer to my every prayer?” Não, nem sequer Bonnie ‘Prince’ Billy, demasiado alucinado para poder dar-se a tais luxos de auto-comiseração. Kozelek vive, de facto, na sua bolha estanque de ruminativa solidão cultivada como uma petúnia sempre à beira do desmaio, terminalmente desinteressado de alterações de "mood" ou de expressão, sem rumo e sem alento, mas obstinado na multiplicação desta espécie de "easy-listening" para almas indie asténicas. Nessa exacta medida, Admiral Fell Promises é bem capaz de ser o seu melhor álbum: apenas voz e guitarra acústica entregue a arpejados devaneios monocromáticos, morosas ornamentações proto-“hispânicas” e, Zeus o proteja, um mundo sentimentalmente esfarrapado que não desiste de conspirar contra ele.
(2011)
17 January 2010
SEGUNDO EPISÓDIO
Mumford & Sons - Sigh No More
No episódio anterior, tínhamos deixado Charlie Fink, de coração despedaçado pela jovem Laura Marling que, à beira do sucesso – para o qual ele, em larga medida, contribuíra –, o abandonara, assim lhe oferecendo o argumento "arrache-coeur" para um dos melhores álbuns de 2009, The First Days Of Spring, dos Noah & The Whale. Vamos reencontrá-la, agora, redescobrindo o amor nos braços de Marcus Mumford, o baterista da banda que a acompanhava, o qual moço, embriagado pelos encantamentos de Afrodite, gravou um álbum – este – que, se ouvido em devido tempo, teria, facilmente, integrado também o escol do ano recém-defunto.
Imaginem uns Pogues (com idêntica "inautenticidade" folk) vitaminados pelo élan épico e coral dos Arcade Fire. Pensem em Nick Drake com a voz de Micah P. Hinson e mais testosterona. Considerem a hipótese de um Nick Cave cercado de banjos, bandolins, sopros mariachi-balcânicos, a expelir as mesmas tiradas bíblicas em que se doutorou ("There will come a time when I will look in your eye, you will pray to the god that you've always denied, I'll go out back and I'll get my gun, I'll say you haven't met me, I am the only son"). Acrescentem-lhe um refrão como "It was not your fault but mine, and it was your heart on the line, I really fucked it up this time, didn't I, my dear?". Aquela miúda, a Laura, deve ter mesmo qualquer coisa de muito especial...
(2010)
30 April 2008
MODERN CLASSIC
Beth Gibbons & Rustin Man - Out Of Season
"God knows how I adore life, when the wind turns on the shore lies another day, I cannot ask for more", são as primeiras palavras que, em "Mysteries", Beth Gibbons canta a abrir Out Of Season. E, como declaração de alguém que, enquanto voz e imagem dos Portishead, sempre pareceu encarnar uma certa personagem de "torch singer" moderna embora tradicionalmente magoada e sofrida, não poderia ser mais inesperada. Mas, se essa não irá ser a tonalidade constante do seu primeiro álbum a solo — a faixa que se segue, "Tom The Model", retoma logo a atmosfera de "love gone wrong" que lhe ficou colada à pele —, serve, pelo menos, para sublinhar que uma coisa serão os Portishead enquanto colectivo e outra bem diferente a trajectória individual da sua cantora e autora dos textos, mesmo que ainda episodicamente recorrendo a companheiros anteriores como o guitarrista Adrian Utley, o baterista Clive Deamer ou o pianista John Baggott.
Aqui, porém, o outro eixo musical de criação é constituido por Paul Webb (aliás, Rustin Man), dos Talk Talk, que, como marca de separação estética, assegurou que se trataria de um álbum "beats free". Isto é, se como Webb afirma, "os arranjos e o espírito geral destas canções poderiam perfeitamente pertencer aos anos 40", todo o ambiente se pretendeu predominantemente (mas não exclusivamente) acústico e algures entre Joni Mitchell e o canto de recorte "jazzy", Nick Drake, Bacharach e, sim, também algo dos... Portishead. Haverá relativamente pouco dos traços identificativos daquilo a que nos habituámos a designar por trip-hop, porém, dir-se-ia que se trata da transposição de uma mesma escala cromática para um outro contexto sonoro.
versão de "Candy Says", dos Velvet Underground
Beth Gibbons sublinha que o que a motiva é "a filosofia da música, as surpresas, os acidentes, a sonoridade das palavras e a tentativa de as exprimir de uma forma pela qual a totalidade das emoções seja revelada" e procura distanciar-se do estereótipo romântico quando diz que, embora se alimente de alguma sensação de desamparo, "sofrer pela arte está um bocadinho sobrevalorizado". Estará, provavelmente, e muito desse desamparo e melancolia serão, talvez, encenados — "let the show begin", canta ela em "Show". Mas, mesmo que nos custe a crer que isso seja verdade quando se escuta canções como "Romance", "Drake", "Sand River" ou "Resolve", enquanto forem capazes de gerar um álbum tão modernamente tradicional e tão intemporalmente belo como Out Of Season, bem podem continuar assim. (2002)
24 August 2007
ESPREITANDO AS ARCAS DO TESOURO
Aos Fairport Convention, deve-se muito mais do que à maioria das bandas de qualquer género: a fundação do folk-rock britânico (alegadamente, à maneira de Cristovão Colombo: pretendiam emular os Jefferson Airplane e foram ter a outro lugar muito diferente); uma discografia portentosa e interminável com What We Did On Our Holidays, Unhalfbricking e Liege And Lief à cabeça; uma cantora e "songwriter", Sandy Denny, sobrenaturalmente excepcional; uma ilustríssima descendência (Steeleye Span, The Bunch, Fotheringay, a série Morris On, as várias Albion Bands, Home Service, Carnival Band e é melhor ficarmos por aqui...); e um gigantesco guitarrista e autor-compositor, Richard Thompson.
Foi o próprio Thompson que, no prefácio de uma biografia ainda por publicar de Sandy Denny, da autoria de Pamela Murray Winter —, escreveu: "Por estes dias, não ouvimos Sandy Denny na rádio. Os seus discos, apesar de poucos, não se ajustam aos formatos correntes, não provocam paroxismos aos programadores, não põem os ouvintes a votar. Nunca se pensa nela a propósito da nostalgia dos êxitos dos anos 60 e 70: ela nunca teve êxitos. Estações de rádio de rock? Nunca vendeu álbuns em número suficiente. Até Nick Drake se consegue insinuar num ou noutro programa de 'easy listening', com a sua música embaladora dissimulando a dor que a habita através de uma superfície atraente, algo de romântico a que um culto se pode agarrar. Mas onde está o culto de Sandy? Onde estão os vigilantes da sepultura à maneira de Jim Morrison? As dissertações culturais dos suplementos? Os epitáfios do South Bank Show e os maus 'biopics' que nos informam acerca de quem deverá ser importante para as nossas vidas? Algures pelo caminho, os gurus do gosto falharam na sua missão junto do rebanho, não conseguiram dizer-nos, após vinte anos de oportunidades para isso, que Sandy Denny foi a maior artista britânica da sua geração". E, depois de caracterizar o encontro entre os Fairport Convention ("um grupo de tímidos e reservados intelectuais do Norte de Londres") e Denny em 1968 — altura em que esta se juntaria ao grupo substituindo a anterior cantora Judy Dyble — como "uma colisão entre um Mini e um camião carregado de tijolos", Thompson confessa: "Ela ensinou-nos a exprimir as nossas paixões musicais, deu-nos uma voz autêntica no limite mais agudo da nossa criatividade e fez-nos deitar cá para fora tudo o que tínhamos sem nos preocuparmos com mais nada. (...) Talvez seja preciso uma campanha concertada para colocar Sandy no mapa, no lugar que merece. É tempo para uma justa avaliação de Sandy e talvez seja apenas uma questão de clima: agora que a poeira assentou acerca dos excessos hippies dos anos 60, podemos perceber melhor quem era verdadeiramente criativo e quem era apenas perturbado".
(som periclitante...)
É este o texto que também abre o indispensável "booklet" biográfico que se inclui naquela que poderá ser a última peça essencial para essa urgente reavaliação de Sandy Denny: a sumptuosa caixa de cinco CD, A Boxful Of Treasures — aliás, o título original da canção (que aqui se escuta na primitiva versão) que acabaria por se chamar "Fotheringay" —, viagem diagonal através da preciosa discografia de Alexandra Elene MacLean Denny, nascida a 6 de Janeiro de 1947 numa pacata família da classe média de Wimbledon e desaparecida 31 anos depois, vítima de hemorragia cerebral, em consequência de um absurdo acidente doméstico.
(imagem e som... é o que há)
Aqui, em 90 faixas (das quais, mais de um quarto inéditas), tanto das gravações "oficiais" com os Strawbs, Fairport, Fotheringay, The Bunch, Ian Matthews ou a solo, como de "home tapes", registos ao vivo ou sessões de rádio, fica absolutamente patente o desmedido talento de alguém que, da folk, ao rock ou à canção de veia mais tradicionalmente clássica, desenhou um percurso absolutamente singular como cantora (só Linda Thompson e June Tabor se arriscariam a ser comparadas com ela) e "songwriter" de melodias enganadoramente serenas e textos de uma melancolia perturbada que, ainda assim, não deixavam verdadeiramente adivinhar uma real personalidade terminalmente excessiva, desequilibrada, insegura e, ano após ano, crescentemente alcoólica. Foi a 27 de Novembro de 1977, em Londres, no Royalty Theatre de Portugal Street, que Sandy Denny deu o seu ultimo concerto. Encerrou-o com "Who Knows Where The Time Goes?". Uma das suas mais belas canções para que ela não teve (e nós continuamos a não ter) resposta.
Sobre Richard Thompson, entretanto, o momento também é favorável para que definitivamente fique clara a invulgar dimensão (como autor-compositor e guitarrista) daquele sobre quem Greil Marcus escreveu "tudo estava lá desde o início - ou, pelo menos, desde aquele dia em 1968, quando, como elemento dos Fairport Convention, escreveu as linhas impossivelmente duras e impiedosas de 'Tale In A Hard Time': 'Take the sun from my heart, let me learn to despise'". Ou que, enquanto objecto de estudo e de análise nas monumentais 330 páginas que lhe dedica Dave Smith em The Great Valerio - A Study Of The Songs Of Richard Thompson, não apenas o coloca na descendência directa de Yeats, Blake ou Eliot como — citando o que este último afirmou sobre John Webster — o descreve "much obsessed with death, he saw the skull beneath the skin". Identificar "o melhor de Richard Thompson" (em duo com Linda Thompson ou a solo) é tarefa de catalogador psicótico. O melhor é praticamente tudo. Mas e recente reedição ("digitally remastered" e com faixas-extra) dos três primeiros álbuns com Linda, I Want To See The Bright Lights Tonight (1974), Hokey Pokey (1975) e Pour Down Like Silver (1975) bem como do DVD The Richard Thompson Band/Live In Providence pode abrir, sem dúvida, duas ou três portas bem iluminadas sobre uma das mais impressionantes discografias de sempre. Porque, se Hokey Pokey e Pour Down (coincidentes com o momento de conversão de Thompson ao gnosticismo sufi islâmico) são indispensáveis colecções de canções em absoluto estado de graça, é francamente difícil encontrar um disco mais perfeito e inesgotável do que I Want To See The Bright Lights Tonight: "When I Get To The Border" é a exacta metáfora-Houdini para a fuga à desgraçada realidade, continuada pelo polaroide de desesperado hedonismo proletário da faixa-título e pela vingança "lumpen" de "Poor Little Beggar Girl"; "The Calvary Cross", "Withered And Died", "The Great Valerio" e "Down Where The Drunkards Roll" são quase puro Fellini; "Has He Got A Friend For Me" é "pathos" terminal e a devastadora "The End Of The Rainbow" é a canção de embalar ("Life seems so rosy in the cradle, but I'll be a friend, I'll tell you what's in store, there's nothing at the end of the rainbow, there's nothing to grow up for anymore") que reduz os Joy Division à dimensão de felizes e despreocupados escuteiros. Gravado a 23 de Julho de 2003, em Providence, Rhode Island, o DVD, em treze canções (e oito extras repescando aparições de televisão passadas), faz o ponto acerca do Richard Thompson actual e revisita alguns dos santuários do seu "songbook". Mas, acima de tudo — particularmente numa versão arrasadoramente incandescente de "Shoot Out The Lights" —, faz entrar pelos ouvidos dentro a evidência de Thompson ser o mais assombroso guitarrista que o mundo faz questão de não reconhecer. (2005)
05 April 2007
Bonnie 'Prince' Billy - The Letting Go
Nas suas diversas encarnações — Palace, Palace Music, Palace Songs, ou com o nome de baptismo, Will Oldham —, Bonnie 'Prince' Billy foi edificando um apreciável culto de farol de uma certa folk intimista e lo-fi, com algo das tonalidades de Neil Young e Nick Drake agarradas à lenda e muita assombração bíblica e poeira "western" a comporem a patine. Mas, se o Belo Príncipe é um notável "songwriter" (que diabo, há que dar crédito a um autor que assinou uma canção com o título "You Have Cum In Your Hair And Your Dick Is Hanging Out"!), nem sempre esteve imune a uma certa auto-indulgência nas incontáveis gravações em que se tem desmultiplicado.
Não é o caso de The Letting Go em que a quase ideal convergência de factores favoráveis — a(s) segunda(s) voz(es) em sombra(s) chinesa(s) de Dawn McCarthy (dos óptimos Faun Fables), a participação dos habituais colaboradores de Björk, Valgeir Sigurdsson e Nico Muhly, os subtilíssimos arranjos de cordas, a consistência da maioria das canções — deu origem a um magnífico álbum que, nos melhores momentos, traz de volta a memória de quando John and Beverley Martyn habitavam o Olimpo. (2006)