24 August 2007

ESPREITANDO AS ARCAS DO TESOURO

Aos Fairport Convention, deve-se muito mais do que à maioria das bandas de qualquer género: a fundação do folk-rock britânico (alegadamente, à maneira de Cristovão Colombo: pretendiam emular os Jefferson Airplane e foram ter a outro lugar muito diferente); uma discografia portentosa e interminável com What We Did On Our Holidays, Unhalfbricking e Liege And Lief à cabeça; uma cantora e "songwriter", Sandy Denny, sobrenaturalmente excepcional; uma ilustríssima descendência (Steeleye Span, The Bunch, Fotheringay, a série Morris On, as várias Albion Bands, Home Service, Carnival Band e é melhor ficarmos por aqui...); e um gigantesco guitarrista e autor-compositor, Richard Thompson.
Foi o próprio Thompson que, no prefácio de uma biografia ainda por publicar de Sandy Denny, da autoria de Pamela Murray Winter —, escreveu: "Por estes dias, não ouvimos Sandy Denny na rádio. Os seus discos, apesar de poucos, não se ajustam aos formatos correntes, não provocam paroxismos aos programadores, não põem os ouvintes a votar. Nunca se pensa nela a propósito da nostalgia dos êxitos dos anos 60 e 70: ela nunca teve êxitos. Estações de rádio de rock? Nunca vendeu álbuns em número suficiente. Até Nick Drake se consegue insinuar num ou noutro programa de 'easy listening', com a sua música embaladora dissimulando a dor que a habita através de uma superfície atraente, algo de romântico a que um culto se pode agarrar. Mas onde está o culto de Sandy? Onde estão os vigilantes da sepultura à maneira de Jim Morrison? As dissertações culturais dos suplementos? Os epitáfios do South Bank Show e os maus 'biopics' que nos informam acerca de quem deverá ser importante para as nossas vidas? Algures pelo caminho, os gurus do gosto falharam na sua missão junto do rebanho, não conseguiram dizer-nos, após vinte anos de oportunidades para isso, que Sandy Denny foi a maior artista britânica da sua geração". E, depois de caracterizar o encontro entre os Fairport Convention ("um grupo de tímidos e reservados intelectuais do Norte de Londres") e Denny em 1968 — altura em que esta se juntaria ao grupo substituindo a anterior cantora Judy Dyble — como "uma colisão entre um Mini e um camião carregado de tijolos", Thompson confessa: "Ela ensinou-nos a exprimir as nossas paixões musicais, deu-nos uma voz autêntica no limite mais agudo da nossa criatividade e fez-nos deitar cá para fora tudo o que tínhamos sem nos preocuparmos com mais nada. (...) Talvez seja preciso uma campanha concertada para colocar Sandy no mapa, no lugar que merece. É tempo para uma justa avaliação de Sandy e talvez seja apenas uma questão de clima: agora que a poeira assentou acerca dos excessos hippies dos anos 60, podemos perceber melhor quem era verdadeiramente criativo e quem era apenas perturbado".

(som periclitante...)
É este o texto que também abre o indispensável "booklet" biográfico que se inclui naquela que poderá ser a última peça essencial para essa urgente reavaliação de Sandy Denny: a sumptuosa caixa de cinco CD, A Boxful Of Treasures — aliás, o título original da canção (que aqui se escuta na primitiva versão) que acabaria por se chamar "Fotheringay" —, viagem diagonal através da preciosa discografia de Alexandra Elene MacLean Denny, nascida a 6 de Janeiro de 1947 numa pacata família da classe média de Wimbledon e desaparecida 31 anos depois, vítima de hemorragia cerebral, em consequência de um absurdo acidente doméstico.


(imagem e som... é o que há)
Aqui, em 90 faixas (das quais, mais de um quarto inéditas), tanto das gravações "oficiais" com os Strawbs, Fairport, Fotheringay, The Bunch, Ian Matthews ou a solo, como de "home tapes", registos ao vivo ou sessões de rádio, fica absolutamente patente o desmedido talento de alguém que, da folk, ao rock ou à canção de veia mais tradicionalmente clássica, desenhou um percurso absolutamente singular como cantora (só Linda Thompson e June Tabor se arriscariam a ser comparadas com ela) e "songwriter" de melodias enganadoramente serenas e textos de uma melancolia perturbada que, ainda assim, não deixavam verdadeiramente adivinhar uma real personalidade terminalmente excessiva, desequilibrada, insegura e, ano após ano, crescentemente alcoólica. Foi a 27 de Novembro de 1977, em Londres, no Royalty Theatre de Portugal Street, que Sandy Denny deu o seu ultimo concerto. Encerrou-o com "Who Knows Where The Time Goes?". Uma das suas mais belas canções para que ela não teve (e nós continuamos a não ter) resposta.

Sobre Richard Thompson, entretanto, o momento também é favorável para que definitivamente fique clara a invulgar dimensão (como autor-compositor e guitarrista) daquele sobre quem Greil Marcus escreveu "tudo estava lá desde o início - ou, pelo menos, desde aquele dia em 1968, quando, como elemento dos Fairport Convention, escreveu as linhas impossivelmente duras e impiedosas de 'Tale In A Hard Time': 'Take the sun from my heart, let me learn to despise'". Ou que, enquanto objecto de estudo e de análise nas monumentais 330 páginas que lhe dedica Dave Smith em The Great Valerio - A Study Of The Songs Of Richard Thompson, não apenas o coloca na descendência directa de Yeats, Blake ou Eliot como — citando o que este último afirmou sobre John Webster — o descreve "much obsessed with death, he saw the skull beneath the skin". Identificar "o melhor de Richard Thompson" (em duo com Linda Thompson ou a solo) é tarefa de catalogador psicótico. O melhor é praticamente tudo. Mas e recente reedição ("digitally remastered" e com faixas-extra) dos três primeiros álbuns com Linda, I Want To See The Bright Lights Tonight (1974), Hokey Pokey (1975) e Pour Down Like Silver (1975) bem como do DVD The Richard Thompson Band/Live In Providence pode abrir, sem dúvida, duas ou três portas bem iluminadas sobre uma das mais impressionantes discografias de sempre. Porque, se Hokey Pokey e Pour Down (coincidentes com o momento de conversão de Thompson ao gnosticismo sufi islâmico) são indispensáveis colecções de canções em absoluto estado de graça, é francamente difícil encontrar um disco mais perfeito e inesgotável do que I Want To See The Bright Lights Tonight: "When I Get To The Border" é a exacta metáfora-Houdini para a fuga à desgraçada realidade, continuada pelo polaroide de desesperado hedonismo proletário da faixa-título e pela vingança "lumpen" de "Poor Little Beggar Girl"; "The Calvary Cross", "Withered And Died", "The Great Valerio" e "Down Where The Drunkards Roll" são quase puro Fellini; "Has He Got A Friend For Me" é "pathos" terminal e a devastadora "The End Of The Rainbow" é a canção de embalar ("Life seems so rosy in the cradle, but I'll be a friend, I'll tell you what's in store, there's nothing at the end of the rainbow, there's nothing to grow up for anymore") que reduz os Joy Division à dimensão de felizes e despreocupados escuteiros. Gravado a 23 de Julho de 2003, em Providence, Rhode Island, o DVD, em treze canções (e oito extras repescando aparições de televisão passadas), faz o ponto acerca do Richard Thompson actual e revisita alguns dos santuários do seu "songbook". Mas, acima de tudo — particularmente numa versão arrasadoramente incandescente de "Shoot Out The Lights" —, faz entrar pelos ouvidos dentro a evidência de Thompson ser o mais assombroso guitarrista que o mundo faz questão de não reconhecer. (2005)

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