Não há forma de lhes fugir. Pode atribuir-se-lhes muita, pouca ou nenhuma importância mas, a partir do momento em que, mais ou menos espontaneamente, surgem, é garantido que - para além do que de valioso produzam - a indústria rapidamente fará tudo o que estiver ao seu alcance para as esterilizar, normalizar, infinitamente replicar e converter em marcas registadas. Falo, naturalmente, das inúmeras "scenes" que, numa interminável corrida de estafetas, recebem o testemunho da anterior e logo o passam à seguinte. Breve revisão: o “eixo-Liverpool/Manchester” (Joy Division, Echo & The Bunnymen, The Teardrop Explodes, Smiths); a breve mas intensa "no wave" novaiorquina; o lerdo grunge de Seattle; a coreografia química de Madchester; o "british jazz revival" de Sade, Weekend/Working Week ou Everything But The Girl; a languidez de Bristol; enfim, a cintilante polivalência da "Brooklyn scene" (Dirty Projectors, Vampire Weekend, The National, My Brightest Diamond). (daqui; segue para aqui)
(sequência daqui) O que estava, entretanto, no ponto de partida, em 1993, quando os Low iniciaram a caminhada? “Quando era miúdo, a música, para mim, era magia. Nessa altura – final dos anos 70, início de 80 – vivíamos numa comunidade agrícola, bastante longe da cidade. A informação acerca do que se passava era muito escassa. Lembro-me de ouvir os discos dos Doors do meu pai e até... os Emerson, Lake & Palmer ou In-A-Gadda-Da-Vida, dos Iron Butterfly!... Isto, antes de começarmos a comprar os nossos próprios discos: David Bowie, The Clash, Hüsker Dü, R.E,M., Violent Femmes, todos a que pudéssemos deitar a mão”. Tudo isso ter tido lugar em Duluth, Minnesota, chão sagrado do Nobel da Literatura de há 5 anos, não terá feito pairar um permanente fantasma sobre as cabeças de Alan e Mimi? “Só um bocadinho... Quando já era mais velho, costumava ir aborrecer o dono de uma loja de intrumentos e ele contava-me que tinha frequentado a mesma escola do Bob Dylan e recordava-se de histórias que lá tinham acontecido. Quando fomos para a universidade, em Duluth, aí sim, tive a noção de que, embora de uma forma discreta, a cidade orgulha-se de Dylan. A minha rendição a ele, contudo, só aconteceu há cerca de 15 anos. Antes disso, escutava Joy Division, Bauhaus, The Cure, Brian Eno, La Monte Young, Swans, Velvet Underground”. E, no meio dessa floresta de referências, quando sentiram ter encontrado a vossa via? “Isso acontece quando escrevemos a nossa primeira canção. Desejamos ser originais e trilhar um caminho próprio. Às vezes, de uma forma tão obsessiva que chega a cegar-nos para o facto de, se calhar, sermos iguais a todos os outros! (risos) Mas sentimos que descobrimos qualquer coisa que estava escondida e mais ninguém conhecia”. (segue para aqui)
27 April 2021
Dry Cleaning - "Oblivion" (Grimes)
(sequência daqui) Mas o que era, na verdade, aquilo a que se convencionou chamar “o som 4AD”, o qual, mesmo antes de comprarmos um álbum, podíamos, de certa maneira, antecipar? “Não me parece que a 4AD fosse assim tão diferente de outras como a Mute, a Factory, Rough Trade ou Cherry Red. Isso valia apenas para alguma música. A maior banda da 4AD, os Pixies, não se encaixava nessa matriz sonora em que temos tendência para pensar. É um grande tema de reflexão que não cabe numa peça jornalística mas penso que a 4AD era muito mais variada do que se supõe. Quando se afirma que a editora, nos anos 80, tinha uma sonoridade muito própria, é apenas verdade até certo ponto, não na totalidade. Isso resulta do modo como tendemos a encarar o passado: mesmo quando essa percepção não corresponde à realidade, a memória que dele construimos substitui a realidade”. No entanto, ainda que os Cocteau Twins não fossem os Pixies e os Dead Can Dance nada tivessem a ver com as Breeders, poder-se-ia, ainda assim, desenhar um retrato-robot da típica banda 4AD? “Nessa percepção da editora, eu diria que a clássica banda-4AD foram, realmente, os Cocteau Twins. Os Dead Can Dance também, por aquela sensação de alargamento do horizonte, de assombro... É assim que a maioria das pessoas continua a ver a 4AD. Porque, nos anos 90, falavam dela mas, na verdade, não a conheciam. Apenas identificavam a estética das capas e os Cocteau Twins. Passa-se o mesmo com a Factory: sobreviveu a música dos Joy Division e a ideia de tratar-se de um bando de gente infeliz de Manchester mas esqueceram-se as toneladas de lixo que publicaram. As pessoas gostam de olhar para as memórias do passado e acreditar que tiveram um significado importante. E de imaginar um passado que foi muito melhor do que o presente”. (segue para aqui)
04 March 2021
(sequência daqui) Excerpts from Chapter 3... é um tremendo petardo sonoro e, afinal, em confissões anteriores, os Rats haviam revelado uma genealogia bastante mais plausível: The Fall, Echo & the Bunnymen, Gang of Four, Cure, Pop Group, Wire, e Joy Division aos quais, agora, após uma digressão pelo Japão, acrescentam Inoyamaland, Miharu Koshi e a nunca suficientemente amada Phew. Todos friamente esventrados para que, do exame das vísceras, se enxergue o futuro, e submetidos a um superior desígnio: “Que os que nos escutam fiquem com a sensação de terem sido esmagados por um rolo compressor e que gostem do que sentiram”. E o futuro é coisa inquietante, desarticulada e quase burroughsiana, história frenética de perseguições, pragas, conspirações e pesadelos, afogada em ruído urbano e tempestades, uma cavalgada cega através de um labirinto mental, desenhada em modelo de furiosa ópera psych-pop forrada de aceradas lâminas punk.
Era claramente um progresso desde os tempos em que, acabado de chegar a Nova Iorque, Matt Berninger fora habitar num "loft" de Gowanus, zona industrial desclassificada no sul de Brooklyn, onde os locais incendiavam os automóveis para receber o dinheiro do seguro e cujas ruas as produtoras de lacticínios usavam como local de despejo para produtos fora de prazo: agora, Aaron Dessner tinha uma casa em Ditmas Park, um dos Distritos Históricos de Brooklyn, e alugava o andar de cima a Matt que, sozinho e alcoolicamente estimulado q.b., o ocupava como sala de partos poética, Bryce Dessner morava num apartamento da mesma rua (era ele quem cozinhava para Aaaron e Matt e lhes deixava as refeições à porta) e os irmãos Devendorf também não viviam longe. Quando chegava o momento de dar corpo a um álbum, a garagem no jardim de Aaron estava mesmo ali à mão. Foi assim durante cerca de dez anos e cinco discos – Sad Songs For Dirty Lovers (2003), Alligator (2005), Boxer (2007), High Violet (2010) e Trouble Will Find Me (2013). Hoje, os 5 elementos dos National vivem dispersos pelo mundo, separados por milhares de quilómetros. Não serão os primeiros a quem tal acontece. Mas, no caso deles, nota-se.
Segundo a versão oficial, nada disso teria implicado qualquer perda criativa. Quando necessário, dizem, juntam-se em locais vários para sessões de trabalho colectivo nas quais a velha alquimia da banda volta a borbulhar nas retortas. Mas, na verdade, escutando Sleep Well Beast, é difícil não reparar que, se o espírito e a tensão de Alligator ou Boxer não se extinguiram, tudo é muito mais calculado do que instintivo, mais jogo de guerra digital do que combate corpo a corpo. Continua a haver nervo mas há menos nervos à flor da pele, o que, aliás, em entrevista à “Stereogum”, Bryce Dessner, falando sobre o trabalho de composição do grupo, eloquentemente explica: “É como construir um edifício no interior de outro edifício. Depois, demolimos o edifício exterior e construimos outra estrutura semelhante a primeira, fazemos ajustes nas janelas e retiramos o telhado”. As canções dos National nunca foram, de facto, matéria para arrebatamentos adolescentes mas também nunca como hoje música tão adulta para náufragos que, numa jangada à deriva, insistem em conhecer os minutos e segundos exactos em que abandonaram o navio.
Se Berninger não abdica da ironia para se referir à linguagem cada vez mais elíptica e desbastada dos seus textos (“Não escrevo prosa nem escrevo poesia. Escrevo bons emails e envio mensagens com piada”) é em consequência dessa cerebral frieza que "Walk It Back" é um prometedor esboço que não chega a descobrir o rumo e disfarça o desnorte com um solo de guitarra, "Guilty Party" e "The System Only Dreams in Total Darkness" são o género de canções que têm tudo para nos submergir mas apenas nos deixam a reparar na sobrenatural inteligência das extrassístoles rítmicas de Bryan Devendorf e ficamos a desejar que, por exemplo, a via de "The Day I Die"– uns Joy Division mais ricamente texturados – ou o descontrolo de "Turtleneck" tivessem sido previlegiados.
07 June 2016
GENEALOGIAS
Os dois pares de irmãos Dessner e Devendorf e (em menor grau) Matt Berninger – isto é, The National – estão em acelerado processo de se converterem numa daquelas centrais nucleares de produção musical que, mais tarde ou mais cedo, tornarão indispensável a organização de uma árvore genealógica para que consigamos orientar-nos sem tropeções através do seu superlotado labirinto. Não esgotando o assunto e começando por Bryce Dessner, bastará recordar as colaborações com o New York City Ballet, Filarmónica de Los Angeles, Kronos Quartet, Richard Reed Parry, Nico Muhly, Sufjan Stevens, Jonny Greenwood, Steve Reich, Matthew Ritchie, a co-composiçao (com Ryuichi Sakamoto e Alva Noto) da banda sonora para O Renascido, a criação da editora Brassland e do festival MusicNow, em Cincinnati. Dando lugar ao gémeo, Aaron, inventarie-se a produção de bandas e músicos como This Is The Kit, Sharon Van Etten, The Lone Bellow e Local Natives, o alistamento nas hostes instrumentais de David Byrne, Grizzly Bear ou My Brightest Diamond, e a fundação dos festivais de Eaux Claires, no Wisconsin, e Boston Calling, devendo ainda associar-se-lhe o nome a várias das iniciativas atribuídas a Bryce, de que as mais relevantes serão Dark Was The Night (2009) e a edificação do recentíssimo altar de culto aos Grateful Dead, Day Of The Dead, que envolveu praticamente a totalidade da "intelligentzia indie" & adjacências norte-americanas.
Extracurricularmente, Matt Berninger ensaiou o pouco entusiasmante projecto EL VY com Brent Knopf, dos Menomena, e Bryan e Scott Devendorf, dupla de genuíno "drum & bass" orgânico, a quem The National deve bem mais de dois quintos da sua personalidade, ouvimo-los, apenas, em diversos dos antes referidos e no perímetro experimental Pfarmers. Mas poderemos escutá-los também, agora, em trio com Ben Lanz, dos Beirut, e anunciando-se como LNZNDRF (ler “Lanzendorf”). Conta a lenda que, no início, foram apenas uma solução de recurso para a ausência de uma "support band" dos National, em Auckland, na Nova Zelândia. A verdade é que o resultado de uma prolongada "jam" de dois dias e meio numa igreja de Cincinnati deu à luz algo que, não sendo imaculado, dir-se-ia o intrigante elo perdido entre os Joy Division e o "krautrock", achado, sabe-se lá porquê, num arquivo perdido dos Pink Floyd na 4AD.
No curso de Literatura Inglesa e Filosofia da Universidade de Glasgow de 1981, Lloyd Cole era o tipo que jogava golfe, ia para as aulas de fatinho completo e fumava John Player’s sem filtro. Já tinha andado por Direito, no University College de Londres, mas não lhe tinha parecido um nicho ecológico da academia particularmente à sua medida. Em Glasgow, mesmo tendo chegado ao 2º ano do curso, Cole, contudo, dificilmente conseguia fugir à sua natureza oculta de "music trainspotter”: “Eu fazia as palavras cruzadas do ‘New Musical Express’ mais depressa do que qualquer outro da minha turma e conhecia todos os discos que todas as bandas ‘cool’ tinham publicado entre 1970 e 1980. Era, realmente, uma tristeza, mas a minha vida era assim”, contava ele, ao “Independent”, em 2003.
Não seria, por isso, verdadeiramente imprevisível que o moço que sonhava, em simultâneo, com os Joy Division, James Brown, Booker T, Isaac Hayes e os Chic, mais tarde ou mais cedo, afixasse num placard da associação de estudantes um anúncio em busca de um teclista que fosse fã dos Television e Talking Heads. Respondeu Blair Cowan, adepto dos Kraftwerk, Steely Dan e Vangelis. A seguir, chegou Neil Clark, guitarrista profundamente convicto de que, em White Music, dos XTC, Andy Partridge soava exactamente como uma tradução punk de McCoy Tyner, e, pouco depois, o baterista Stephen Irvine (falhara, por uma unha negra, a hipótese de substituir Topper Headon, nos Clash) e o baixista Lawrence Donegan (ainda fresco de ter sido corrido dos Bluebells).
Entretanto, antes, apenas com o trio inicial, já tinha ocorrido o satori criativo quando, em poucas semanas, "Are You Ready to Be Heartbroken?", "Perfect Skin", "Charlotte Street" e "Forest Fire", emergiram definitivas e perfeitas e, assim, criaram Lloyd Cole & The Commotions, mais do que eles as criaram a elas. Cole, hoje, confessa como "Perfect Skin" nunca teria podido existir, se, por essa altura, ele não vivesse embriagado de Dylan e de "Subterranean Homesick Blues" e, há doís anos, por ocasião da morte de Lou Reed, afirmava que, não fora este, e ele, provavelmente, teria “acabado como professor de matemática”.
Porém, no caminho que conduziria ao fantástico álbum de estreia, Rattlesnakes (1984), havia muito mais do que vénias aos mestres: o jovem literato, adepto de Raymond Carver e Joan Didion, fora capaz de reinventar uma pop para gente que sabe divertir-se tanto do pescoço para baixo como para cima, segundo a orientação que, há cinco anos, aquando da publicação de Broken Record, ele próprio me desvendaria: “Os Commotions sempre se dedicaram a formas musicais americanas submetidas a uma estética europeia. Se reparar nas diferenças entre os R.E.M e os Commotions – que tocavam tipos de música semelhantes –, na música deles havia qualquer coisa que os aproximava mais dos Allman Brothers do que dos Rolling Stones. Os Commotions, apesar de tocarem pop, partilhavam com os Stones o facto de tocarem música americana com uma estética britânica: interessava-nos mais a elegância do que a paixão, interessava-nos a concisão”.
Havia, no entanto, uma inesperada pedra no caminho, na qual os Commotions haveriam de tropeçar. Ia a banda em alto voo pelos tops, quando Donegan confessou que, ele em particular (e também o grupo, em geral), sofria(m) de um síndroma raro: ao contrário do cliché habitual que garante que um crítico musical não é senão um músico frustrado, eles eram, de facto, críticos musicais falhados. Daí que, ninguém como eles, tenha jorrado tanta injusta bílis sobre o seguinte Easy Pieces (1985) – e, mais venenosamente, sobre a dupla de produtores Langer & Wintanley – mas também, embora em menor grau, em relação ao derradeiro Mainstream (1987). Até quanto ao mais que perfeito Rattlesnakes, em 1993, Cole rabujava acerca do vibrato da sua voz que teria transformado o álbum “numa fotografia óptima mas que saiu ligeiramente desfocada, um pequeno detalhe que pode estragar tudo”.
Quase inevitavelmente, em 1989, os Commotions chegariam ao fim. Lawrence Donegan viria mesmo a ser crítico musical no “NME” e “Record Mirror” (e, posteriormente, de golfe, no “Guardian”), Blair Cowan é engenheiro informático, Neil Clark compõe para cinema e televisão e Lloyd prossegue uma discretamente magnífica carreira a solo: "Tenho uma ridícula vida paralela em que sou um especialista de golfe. Num livro que li, explicavam que, para desenhar um campo de golfe, é indispensável ter instinto artístico e talento matemático. Como, na escola, era um prodígio em matemática, talvez devesse ir por aí. Recordo-me, porém, claramente da primeira vez que passeei por Londres e nenhuma cabeça se voltou. A sensação não foi boa. Podia ter ido comprar pornografia que o ‘Sun’ não se incomodaria a tentar fotografar-me. Mas, depois de 15 anos de rock, poderia eu fazer outra coisa? Quereria eu fazer outra coisa?” A história toda, contada em 5 CD, um DVD e um "booklet" de cerca de 50 páginas, com as proverbiais raridades, inéditos e lados B, pode ser recordada em Collected Recordings 1983-1989. Mas continuamos impreparados “to be heartbroken”.
25 June 2015
OS LUGARES ERRADOS
Na edição de Abril da “Cosmopolitan”, Jana Hunter publicou um texto onde recordava o momento, por volta dos 4 anos, em que explicara aos pais, irredutivelmente católicos, que era um rapaz e não uma rapariga. O facto de (pouco surpreendentemente) a reacção ter sido tudo menos acolhedora, não a impediu, porém, de, hoje, se declarar “incrivelmente confortável com as minhas muito fluidas identidade de género e sexualidade”. Ainda que continue a perturbá-la bastante a circunstância de alguém que não se identifica como “mulher” poder ser objecto da misoginia predominante no universo pop/rock, por mais "indie" que ele se afirme. Aceitemos, então, isso na qualidade de atenuante para o título do terceiro álbum da sua banda – os Lower Dens – ser Escape From Evil, última obra de Ernest Becker, seguidor norte-americano da amaldiçoada superstição freudiana. Felizmente, tal assombração não se nota demasiado na matéria do próprio disco, exemplo singularíssimo de uma colecção de canções que, aparentando ajoelhar perante o altar da retromania, é, afinal, algo diferente.
É Jana quem, sem subterfúgios, coloca as cartas na mesa: “Escape From Evil alimenta-se esteticamente da celebrada pop dos anos 80. Mas não se contenta em ficar pela homenagem. Usamos o passado, os seus clichés e inocência, como uma lente através da qual imaginamos um futuro aberto e queer”. O que, na realidade, se escuta é um exercício de cuidadosa arrumação das peças em todos os lugares errados do puzzle, dedicado a fintar a previsibilidade através de meia dúzia de manobras de diversão bem sucedidas: raptar Debbie Harry e colocá-la à frente dos Joy Division aos quais, entretanto, se ofereceu a aura sonora dos Cocteau Twins que, no mesmo instante, se viram com Siouxsie Sioux no lugar de Liz Frazer e assistiram à disputa entre Johnny Marr e Will Sargeant pela vaga de guitarrista nuns Cure em gravidade zero, produzidos por Brian Eno acabado de ser expulso dos Feelies, subitamente devotos do krautrock. Espreitem o assaz lynchiano video de "To Die In LA": as coordenadas de Escape From Evil menos óbvias à superfície exibirão, sem excessiva dissimulação, a sua "seedy underbelly" talhada por medida para a anunciada reencarnação de Twin Peaks.
15 October 2014
OUTRA HISTÓRIA SECRETA
“Não tenho a capacidade, nem sequer o desejo, de escrever uma argumentação desenvolvida, coerente, passo a passo, sobre o que quer que seja. Gosto de escrever sem obedecer a uma direcção. Gosto de bater à porta da frente e, enquanto esta se abre, aparecer também pela das traseiras” dizia Greil Marcus, em 2012, numa conversa com Simon Reynolds para a “Los Angeles Review Of Books”. Na última frase do recém-publicado The History Of Rock’n’Roll In Ten Songs lê-se “Esta foi apenas uma versão da história, mas há uma infinidade de outras que igualmente a contam”. Logo na primeira página (e nas quatro e meia que se seguem), Marcus inventaria uma vasta lista dos nomes que todas as enciclopédias invariavelmente acolhem (esses mesmos em que estão a pensar) quando se trata de alinhar, das origens à actualidade, a cronologia do rock’n’roll. E, daí em diante, tal como em Lipstick Traces (1989), a propósito do punk, se dedicara a investigar a “história secreta do século XX” (da Irmandade do Livre Espírito medieval à Internacional Situacionista), ocupa-se daquilo que só pode ser designado como a história secreta do rock’n’roll. Corrijo: a sua história secreta do rock’n’roll.
"Transmission" em Control - real. Anton Corbijn (2007)
Daí que não possa constituir motivo de escândalo o facto de, das dez canções, seis se situarem entre o final dos anos 50 e o início de 60, que uma das outras quatro – "Transmission", dos Joy Division – seja encarada sob a perspectiva da interpretação dos actores que, em Control, de Anton Corbijn, encarnam a banda de Ian Curtis, ou que, muito rapidamente, tenhamos de nos habituar à ideia de estar perante uma tapeçaria de Bayeux contemporânea enrolada em forma de fita de Möbius. Afinal, nada de novo: desde o inicial Mystery Train, de 1975 (subintitulado, não esquecer, “Images of America in Rock 'n' Roll Music”), que aprendemos a não estranhar quando, como agora acontece, no “Instrumental Break” dedicado a Robert Johnson, este acabe literalmente contracenando com Louis Armstrong, Bing Crosby, os NWA e Barack Obama. Recordando a justificação que dava aos amigos para a sua obsessão por "Money", na versão dos Beatles (“é a representação metafórica das forças tecnológicas descontroladas da sociedade moderna”), Marcus conta como, ao mesmo tempo, se ria desse pretensiosismo mas acrescenta “E, contudo, porque não? Fazia todo o sentido”.
Steely Dan. Nova Mob. Thin White Rope. “Interzone”. The Soft Machine. Matching
Mole. Heavy Metal. 23 Skidoo. The Soft Boys. Bandas, géneros, canções, nomeados a
partir de textos de William Burroughs. Tzara e os dadaístas já tinham criado poemas a
partir de palavras retiradas, ao acaso, de um chapéu. Os surrealistas celebraram os
“encontros fortuitos” e os “cadavres exquis” e Jean Cocteau encomendava, a George
Auric, música para sequências específicas dos seus filmes e, depois, distribuía-a,
aleatoriamente, jogando com aquilo a que chamava “sincronia acidental”. Mas foi no nº
9 da Rue Gît-le-Coeur, em Paris, o decrépito “Beat Hotel” onde, entre 1957 e 1963,
pararam também Gregory Corso e Allen Ginsberg, que Brion Gysin e Burroughs, por
descuido – ao cortar folhas de papel de desenho, Gysin fatiou também algumas páginas
de jornal cujos recortes recompôs ignorando os originais –, tropeçaram no "cut-up" (e, a
seguir, no "fold-in", no "inching", no "drop-in"), menos técnicas literárias do que telescópios
mentais ("When you cut into the present the future leaks out") e estratégia de guerrilha
contracultural, dedicada, "à la" Rimbaud, tanto a desregular os sentidos como a sabotar as
“máquinas de controlo” (“Smash the control images. Smash the control machine”).
A
cultura pop, ávida de infracção e experimentalismo, acolheu de braços abertos o "upper
class junkie", de fato completo, gravata e chapéu, homossexual, literato, homicida por
acidente, autor de Naked Lunch e The Nova Trilogy, proto-inventor do "sampling":
Debbie Harry, Patti Smith, Joe Strummer, Lou Reed, foram ao beija mão, em Nova
Iorque, nos anos da "no wave"; Tom Waits co-escreveu com ele a ópera The Black
Rider; Hal Willner, em Dead City Radio, convocou John Cale, Sonic Youth, Donald
Fagen e outros para lhe encenarem os textos; R.E.M, Cobain, Laurie Anderson,
Disposable Heroes of Hiphoprisy gravaram com ele; Bowie, em "Sweet Thing", de Diamond Dogs,
recorreu ao "cut-up" e, Paul McCartney fez questão que Burroughs figurasse na capa de Sgt. Pepper, inclinando a cabeça sobre Marylin. Morto em 1997, completaria, em
2014, 100 anos. Em Burroughs100, está o calendário completo das
comemorações internacionais. Em 2012, foi a vez do centenário de John Cage.
Celebramos, como é justo, os génios do século XX. Mas convinha irmos também
começando a detectar os do século XXI.
14 April 2014
VINTAGE (CXCIX)
Joy Division - "Interzone"
25 September 2013
VINTAGE (CLXV)
June Tabor & Oyster Band - "Love Will Tear Us Apart"
24 September 2013
CÂMARA ESCURA
Elvis Costello não se fica por meias palavras: “Se não gostam de escutar June Tabor, melhor seria que desistissem de ouvir música”. De facto, a existirem casos em que um certo fascismo estético se justifica, June Tabor é bem capaz de ser um deles. Experimentem, por exemplo, recorrer ao vosso bom amigo YouTube e procurem “June Tabor sings Lili Marlene”. Durante os quase dois minutos iniciais (no concerto “Daughters of Albion”, da BBC4), June conta a história dessa canção. Provavelmente, não repararão de imediato mas, já aí, na articulação das palavras, nas pausas, acentuações, respirações, é de música que se trata. E, logo a seguir, desde o instante em que pronuncia “Vor der Kaserne, vor dem grossen Tor...”, por um milhão de vezes que tenhamos escutado o texto de Hans Leip musicado por Norbert Schultze, a voz que, agora, o interpreta apossa-se dele e fá-lo como se fosse a primeira. Para ela, trata-se de uma espécie de compromisso ético/estético: “Não tem a menor importância de onde provém uma canção. Desde que seja uma boa canção, tenha um texto forte e me fale directamente, é-me completamente indiferente o facto de ser muito recente ou muito antiga. Se mexer com as minhas emoções, sei que vou ser capaz de a interpretar. Porque é isso que eu faço: sou uma intérprete que procura partilhar as sensações que uma canção me proporciona. Tenham as canções seiscentos anos ou apenas dois. A melhor interpretação é a que soa como se fosse a primeira vez que estivéssemos a cantar aquela música. Se parecer ser apenas mais uma canção, é porque estamos a prestar-lhe um mau serviço”.
Huw Warren (piano) e Iain Ballamy (sax soprano e tenor) que, em trio com ela, gravaram para a ECM o recente e belíssimo Quercus – na verdade, tal como já sucedera com Aleyn (1997), o registo de um concerto de 2006, no Anvil, em Basingstoke, do qual foram cirurgicamente extraídos todos os vestígios de público – e o virão apresentar no Teatro Maria Matos na próxima 4ª feira, 25 de Setembro, confessam que, de June, aprenderam a “evitar tudo o que, numa música, não tenha justificação para lá estar ou que apenas surja por motivos convencionais”, bem como a “procurar que a voz e o sax funcionem como um só, mais do que fazer solos complexos”. Não ecoam senão o que ela afirma acerca de como encara a própria voz (“Se eu quisesse, podia ornamentar uma canção até fazê-la desaparecer ou cantar soul, mas isso não me diz nada, é só técnica. Da forma como canto, prefiro ser mais directa, transmitir emoções sem as dissimular”), esse assombroso instrumento de luz e sombras, tão capaz de, qual câmara escura, revelar a natureza profunda de Richard Thompson, Ian Curtis, Lou Reed e Costello como da Idade Média, dos textos de Shakespeare ou Robert Burns ou das vetustas trevas da tradição popular britânica e europeia. Se lhe perguntarem qual o álbum que prefere, responderá que é An Echo Of Hooves (2003), colecção de baladas recolhidas por Francis James Child, no final do século XIX. Não acreditem: a verdade é que, das mais de duas dezenas das suas gravações, ninguém de bom senso se atreveria a escolher uma e a relegar todas as outras para segundo plano.
John Cage terá escrito e feito tudo o que lhe era possível para nos explicar que “there is no such thing as silence” (demonstrando-o até praticamente em 4’33”). Mas, mais de meio século depois, isso continua a não impedir que – directa ou indirectamente influenciados por problemáticas digestões "new age" (e afins) de orientalismos avulsos – os apelos ao silêncio como suposta via de acesso a duvidosas entidades como “o eu interior” ou “a verdadeira realidade” se repitam. As britânicas (mais gaulesa incluída) Savages elevaram mesmo a atitude ao nível do manifesto, imprimindo na capa do seu álbum de estreia um apelo em que, equivocadamente, proclamam que “o mundo costumava ser silencioso, agora contém demasiadas vozes e o ruído é uma distracção constante que multiplica, intensifica e desvia a nossa atenção do que é conveniente, e do que fala de nós próprios”, concluindo com a sugestão de que “se o mundo se calasse, mesmo que só por um instante, talvez pudéssemos começar a escutar o ritmo distante de uma jovem melodia rebelde”. Naturalmente, a primeira faixa intitula-se "Shut Up", mas, ainda que estivéssemos dispostos a levar a sério a pregação, rapidamente desistiríamos ao descobrir que a “jovem melodia rebelde” é uma quase quarentona com os traços de personalidade de Ian Curtis e a voz de Siouxsie Sioux.
Entretanto, em Lisboa, no passado dia 21 de Junho, teve lugar um concerto, aparente filho natural de Cage: Lisboa Em Si, concebido por Pedro Castanheira em torno do número 7 (7 colinas, 7 minutos de duração do terramoto de 1755 e do próprio concerto), propunha-se gerar uma “’epifonia’, uma epifania de som”, através da articulação das sonoridades de apitos de embarcações, viaturas de bombeiros, comboios, sinos de igrejas e campainhas de eléctricos, produzidas ao vivo e convidando-nos a estar presentes em 7 pontos de escuta, com o centro de operações no Terreiro do Paço. Se a concretização ficou seriamente aquém da potencial “utopia sonora” – à beira Tejo, pouco mais se ouviu do que distantes sirenes de barcos e de um carro de bombeiros –, a raiz do projecto estava já ela infectada por uma “traição” a Cage: segundo Castanheira, “O grande desafio é calar a cidade. Os carros, os bailaricos. Pedimos às pessoas que com o seu silêncio sejam parte activa na partitura. Porque normalmente estão a fazer barulho. E se estiverem em silêncio durante sete minutos é como se estivessem a tocar, naquele momento estão a tocar pausas”. John Cage pensava de modo diferente: “Não existe tal coisa como um espaço vazio ou um tempo vazio. Há sempre algo para ver, alguma coisa para ouvir. Na verdade, por mais que tentemos fazer silêncio, não conseguimos. Estejamos onde estivermos, o que ouvimos é, essencialmente ruído. Quando o ignoramos, perturba-nos. Se o escutarmos, achamo-lo fascinante”. A verdade é que o autêntico concerto dos sons urbanos de Lisboa só ocorreu quando as muitas pessoas que se tinham deslocado à Praça do Comércio a começaram a abandonar e, numa Rua do Ouro engarrafada, um coral de buzinas de automóveis tomou conta do lugar. Está lá, todos os dias, pronto para ser desfrutado.
18 June 2012
O SILÊNCIO E O ESPAÇO
Em Fevereiro de 1999, Ricardo Camacho, numa
conversa numerologicamente peculiar a propósito de O Sexto Sentido (sexto –
incluindo o live, Auto de Fé, de
1994 – e último álbum da Sétima Legião), travada num sexto andar da Rua de
Campolide entre seis interlocutores, garantia que “este e o primeiro álbum são,
provavelmente, os nossos dois discos mais homogéneos”.E defendia-o explicando
que “no fundo, é como se todo o disco fosse uma música só. A ironia é que,
contra a vontade colectiva (deve ser uma das poucas coisas que nos unem),
acabámos por chegar ao álbum conceptual!”. Camacho – que, para além de médico,
já fora também crítico de música e confessava, por vezes, compor a partir de
textos críticos sobre discos que não ouvira – não poderia fazer uma
autoavaliação mais acertada: se a totalidade da discografia da Sétima Legião
deve ser classificada no patamar superior da pop portuguesa da segunda metade
do século XX, A Um Deus Desconhecido (1984) e O Sexto Sentido são as duas colunas
sobre que assenta tão elegantíssima ogiva. E, agora que a obra integral de
estúdio do grupo volta a estar disponível, não haverá mais oportuno pretexto,
não apenas para a fazer conhecer junto de desatentos e infiéis, como para lhe
traçar mais nitidamente o perfil.
A verdade é que tanto o álbum de estreia
como o derradeiro – que, por muito boas razões, esteve para se chamar “Nações
Unidas” –, ainda que de forma absolutamente diferente, acabaram por obedecer a
um mesmo princípio: abdicar de tudo o que fosse inútil e supérfluo e guardar
apenas o estritamente essencial. Daí que, embora a ambição que gerou O Sexto
Sentido fosse enorme (edificar um quase cinemático painel sonoro em torno de
uma ficção sobre o universo da tradição popular portuguesa construída sobre samples de recolhas etnográficas de
Michel Giacometti, apontamentos avulsos de flauta do sultanato de Omã,
atmosferas de medinas árabes e meia dúzia de compassos de Wagner), o método tenha
sido implacável: “Nas primeiras experiências, queria incluir tanta coisa na
mesma música que acabava por soar mal, era excessivo e não existia um fio
condutor. Conseguia uma voz daqui, outra dacolá, e soavam todas bem umas com as
outras mas a coisa em si não chegava a existir. Muito do trabalho final foi limpar
as misturas, deitar fora, para chegar à forma definitiva que acabou por ser
muito minimal” (Ricardo Camacho).
No pólo oposto (ou, no fundo, talvez não), A
Um Deus Desconhecido era, desde o início, osso, nervo e a pura assombração de
uma espécie de fado parido na neblina britânica que sufocou Ian Curtis (“Desce
um véu, arde a catedral, anjo negro no céu, lá vem o vendaval”), vertido em
esquemáticas molduras de guitarra, pontuação de baixo, transparências de teclas
e o uivo da gaita de foles de Paulo Marinho que, em instrumentais como "Pois
Que Deus Assim O Quis" – afinal, outro modo de dizer “foi por vontade de Deus”
–, soprava já a vela épica e trágico-marítima que, qual poster sonoro da memória de um imaginário realismo-socialista
arcaicamente medieval, haveria de gerar os três registos – Mar D’Outubro
(1987), De Um Tempo Ausente (1989) e o quase-herético em relação ao regime
minimal, O Fogo (1992), que alojariam a Sétima nos ouvidos lusos. Eles –
Camacho, Marinho, Rodrigo Leão, Pedro Oliveira, Nuno Cruz, Gabriel Gomes, Paulo
Abelho e Francisco Menezes – eram a banda “que nem sequer toca assim tanto” e
que achava que “muito mais importante do que fazer um imortal solo de guitarra
é poder, mudar, virar, transformar as coisas”. E, também e por isso mesmo, a
banda de “Sete Mares”, “Por Quem Não Esqueci”, “Ascensão”, “A Reconquista”, “A
Norte do Mundo”, “Noites Brancas” ou “Além-Tejo”. Aquela que, ao contrário do
que era a norma claustrofóbica das gravações da época (“enquanto houvesse uma
pista livre, tinha de se meter lá alguma coisa”), preferia “gerir o silêncio e
o espaço”.