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27 March 2019

ZÉNITE 


“Esquecemos muitas coisas mas há outras que não nos saem da memória. Recordo-me de quando, há 40 anos, eu e o Grant íamos a atravessar uma ponte, de carro, ele ter-me perguntado se já tinha um nome para a banda e eu ter respondido ‘The Go-Betweens’. Aquela conversa entre dois tipos de 20 anos, está agora em sinais espalhados por toda a cidade de Brisbane, e, provavelmente, vai lá ficar centenas de anos. Poderia ser o ponto de partida para um filme... Quando começamos uma banda, sonhamos com discos de ouro, tocar no Madison Square Garden, nunca pensamos que o nome dela há-de vir a ser atribuído a uma ponte da nossa cidade”, diz-me Robert Forster, a propósito de, desde 2009, Brisbane – por votação popular "online" – ter passado a incluir na sua toponímia o nome do grupo que, em 1977, ele, Grant McLennan e Lindy Morrison fundaram. Sim, os Beatles poderão ter cantado a Penny Lane, de Liverpool, Tom Waits a Kentucky Avenue, de Whittier, na Califórnia, e Van Morrison a Cyprus Avenue, de Belfast, mas, a eles, foi a cidade que lhes chamou seus. 

 
Não virá a ser, talvez, o ponto de partida para um filme – pelo menos, um filme dele: no novo álbum, Inferno, o que diz, metaforicamente ou não, em "No Fame", é “I’m going to write a novel that is set a hundred years ago” – mas, de certo modo, haverá de servir como compensação para aqueles tempos em que alguma da mais perfeita joalharia pop foi pouco menos do que ignorada e de que ele, agora, fala, sem um pingo de modéstia, em "Remain": “I know what’s like to be ignored and forgotten when yours is the name that doesn’t come up too often, big city screens, big city dreams remain, I did my great work while knowing it wasn’t my time”. E, no entanto, nestas bem-aventuradas nove canções gravadas no estúdio de Victor Van Vugt, em Berlim (onde, como Forster relata no ”Berlin Diary”, “todas as mulheres parece terem visto um fantasma”), que, no total, não vão além dos 35 minutos e se iniciam com um poema de W. B. Yeats ("Crazy Jane on the Day of Judgement"), não existe uma sombra de ressentimento. Pergunto-lhe se “Eat only what I eat, breathe only what I breathe, well that’s me”, as últimas linhas da última canção ("One Bird in The Sky"), não contém algo daquele conceito do budismo zen que aconselha a “comer quando se tem fome, beber quando se tem sede e dormir quando se tem sono” e ele responde que apenas é “adepto de dizer coisas simples mas com significado”. Seja, então, budismo zénite, o ponto mais alto do céu.

23 October 2018

ATRAVESSAR A PONTE

  
Louis Forster jura que não é utilizador da Go-Between Bridge, a ponte que, em Setembro de 2009, numa votação online proposta pelo City Council de Brisbane, na Austrália, foi assim baptizada em homenagem à banda de Grant McLennan e Robert Forster: “É preciso pagar uma portagem de 6 dólares, não tenho dinheiro para isso”. Aliás, Louis, filho de Robert, garante também que nunca ouviu a música dos Go-Betweens: “Às vezes, vêm ter comigo e fazem-me perguntas sobre um disco ou sobre uma determinada canção e chega a ser embaraçoso porque, de facto, nunca os escutei. Tenho sempre de pedir imensa desculpa e dizer que não faço ideia do que estão a falar”. Não é fácil acreditar: quem, sem qualquer informação sobre os autores, escutasse Up For Anything (2016) – o álbum de estreia dos Goon Sax, banda de Louis Forster, James Harrison e Riley Jones – não hesitaria em dizer que, muito provavelmente, tratar-se-ia de uma preciosa colecção de inéditos dos Go-Betweens. E se, continuando a não revelar nomes, se adiantasse tratar-se de um trio de Brisbane constituído por dois guitarristas/compositores e uma miúda baterista, as últimas dúvidas desapareceriam. 



Não sendo, aparentemente, um caso de disputa familiar – Robert Forster, há 2 anos, abençoou publicamente a obra da descendência –, só uma tentativa de esquivar-se à maldição dos "sons of" (numa já razoável lista de crias de famosos, apenas Jeff Buckley se mostrou à altura da ilustre paternidade) poderia explicar a recusa da óbvia linhagem. Ou, então, teremos entre mãos uma extraordinária prova da existência de ADN musical que caberá à ciência investigar. Agora que We’re Not Talking, o segundo álbum, é publicado, apetece dizer que aquilo que a Forster e McLennan levou quatro gravações para atingir – o esplendorosamente orquestral Liberty Belle And The Black Diamond Express (1986) –, os Goon Sax realizaram em duas: o díptico de abertura "Make Time 4 Love" (“Let's feel nervous in your room again”) e "Love Lost" (“So I look through film stores wondering what I should read, so I forget what movie I originally wanted to see”) passaria sem suspeitas por "bonus tracks" de Liberty Belle e as restantes dez, em diversos graus de parentesco – eles, agora, erigem altares às Raincoats, aos Orange Juice ou aos Love mas, se acrescentássemos Young Marble Giants, a genealogia ficaria mais completa –, não desmentem a filiação. Um dia destes, Louis Forster ainda há-de atravessar a Go-Between Bridge.

12 April 2018

UM OVO DE FABERGÉ

  
Seria a música ou o cinema. “Grant falava-me da Nouvelle Vague e do ‘film noir’. Eu falava-lhe da grandeza dos Velvet Underground. Ele falava-me acerca da teoria dos autores e do génio de Preston Sturges. Eu falava-lhe de Dylan, a meio dos anos sessenta. Ele referia Godard e Truffaut. Tornámo-nos Godard e Truffaut. Brisbane não fazia a menor ideia disso mas havia dois miúdos de dezanove anos ao volante de um automóvel que pensavam ser realizadores de cinema franceses”. E, com um single – lado A, "Lee Remick", dedicado à actriz de Days Of Wine And Roses; lado B, "Karen", exercício de luxúria juvenil sobre as bibliotecárias da universidade de Queensland – e quase nenhum dinheiro no bolso, Robert Forster e Grant McLennan, em 1979, voaram da Austrália para Londres. Não conheciam ninguém e não tinham um único número de telefone útil. Com pernas demasiado curtas para andar, o plano de internacionalização-relâmpago dos Go-Betweens, naturalmente, teve de ficar entre parêntesis. Obrigado a aceitar emprego no arquivo de radiologia do St. Mary’s Hospital, Forster descobriu, por acaso, uma radiografia ao joelho do realizador de cinema, Nicolas Roeg. No último dia em que ali trabalhou, escondeu-a no sobretudo e, qual fetiche, levou-a. Como, agora, conta em Grant & I: Inside And Outside The Go-Betweens, “Foi o mais perto que alguma vez chegámos da indústria cinematográfica britânica”



Não desistiram, porém: já a banda tinha publicado os seis álbuns da primeira metade da carreira, Forster (durante uma tournée com Lloyd Cole com quem, em Lisboa, jogou golf) desafiou McLennan para a escrita do argumento de um filme de gangsters. Na pior altura: “Tarantino tinha aparecido e feito explodir o género – os diálogos dele cantavam”. Nas 350 páginas de Grant & I também cinematograficamente se canta (está dividido em “Reel One” e “Reel Two”) a história pública e privada dos Go-Betweens: a calorosa rivalidade entre Robert e Grant; o desmedido amor pelas canções; a extravagância (e posterior domesticação) de um e o progressivo afundamento na depressão do outro; o permanente nomadismo de editora em editora, na busca das condições ideais – ou apenas aceitáveis – para o merecido reconhecimento da sua música que, fora de um circuito de fidelíssimos fãs, nunca chegaria; a separação, o reencontro e a morte de McLennan. Algures para o final, Forster escreve: “Os Go-Betweens eram uma coisa rara, um ovo de Fabergé, e como tal deviam ser tratados”. Recordo-me de uma vez lhes ter chamado “os Smiths em melhor”.

11 May 2016

HERDEIROS 


Brisbane, Queensland, Austrália. Primeiro, dois rapazes (guitarras e baixo) e, mais tarde, uma rapariga (bateria). Um dos rapazes tem como apelido Forster. De que banda se trata? Quem respondeu The Go-Betweens errou. Mas merece, pelo menos, um prémio de consolação por ter andado tão perto que até assusta. A miúda (miúda mesmo, as idades do trio oscilam entre 17 e 18 anos) não é Lindy Morrison mas Riley Jones e entrou para a banda após um mês de aulas de bateria. Um dos moços não responde por Grant McLennan mas por James Harrison e o outro dá pelo nome de Louis Forster. E é aqui que a muito objectiva proximidade entre os Goon Sax e os Go-Betweens se verifica: Louis é filho de Robert, metade da dupla Forster/McLennan que, entre 1977 e 2000 (quando a banda, definitivamente, se dissolveu, após a morte de Grant), criou o formidável reportório do grupo que, há sete anos, viu o seu estatuto de lenda local confirmado com a atribuição do seu nome a uma nova ponte sobre o rio Brisbane


A afinidade estética, essa, por muito subjectiva que seja, é, porém, impossível de negar: não apenas a constituição dos Goon Sax mimetiza a formação inicial dos Go-Betweens como, escutado Up To Anything – álbum de estreia –, os traços “de família” tornam-se indesmentivelmente óbvios. Mas, de uma forma de tal modo ingenuamente adolescente na transposição das marcas do passado para o presente, que nunca obriga a pensar em manhoso trabalho de copistas mas apenas numa naturalíssima – e inevitável – condição de herdeiros. Sim, "Sweaty Hands", "Boyfriend" e "Sometimes, Accidentally" (“No, I don't care about much but one of the things I care about is you, sometimes I think about things and sometimes I accidentally think about you”) tresandam a Forster/McLennan mas, alguma vez eles, os originais, o teriam feito com tal candura? É verdade, verdadinha que "Home Haircuts" poderia ter saído intacta de Before Hollywood mas quem escreveria “I go to the barber to get shorn and I leave feeling empty and forlorn, I show them a picture of Roger McGuinn, Edwyn Collins, John Lennon, David Byrne, it seems I just can't win”?... Pensando melhor, talvez a ilustre ascendência que, no início, não era assim tão mais velha, daria tudo para que o álbum de estreia (Send Me a Lullaby, 1981), por muito promissor que fosse, pudesse ter estado à altura de Up To Anything

20 May 2015

MEMÓRIA FERIDA

  
Em Setembro de 2009, o City Council de Brisbane, na Austrália, propôs a realização de uma votação online para decidir qual o nome que haveria de ser atribuído a uma nova ponte sobre o rio Brisbane, até aí, conhecida como Hale Street Link. Com mais do dobro dos votos do segundo classificado numa "shortlist" de 11 candidatos, os vencedores foram os Go-Betweens, a lendária e sempre insuficientemente amada banda de Grant McLennan e Robert Forster – por essa altura, já inexistente, após a morte de McLennan, três anos antes. A devoção dos habitantes de Brisbane bem poderia, contudo, estender-se a outros nativos da cidade, os Apartments, de Peter Milton Walsh, também, por coincidência, membro fugaz da primeira formação dos Go-Betweens. 



Até porque o povo melómano da Austrália tem para com ele uma enorme dívida: não só o magnífico primeiro álbum da banda (The Evening Visits... And Stays For Years, 1985, reeditado, agora, pela nova-iorquina Captured Tracks) não foi sequer publicado no seu país, como a posterior e errática trajectória foi, essencialmente, suportada pelo reduzido mas fidelíssimo núcleo de seguidores europeus (particularmente, franceses) e, em menor grau, norte-americanos, o que ajuda a compreender o motivo porque o actual No Song No Spell No Madrigal, sucessor de Apart (1997) e sexta gravação em 30 anos, surge por via da gaulesa Microcultures. Ainda que fechasse amanhã as portas e não pusesse no mundo nem mais um só disco, valeria a pena ter existido apenas por este: obra de "songwriter" literato capaz de incluir na lista de favoritos John Cassavettes, Jacques Tourneur, James Salter, Jacques Brel, Peter Bogdanovich ou – pedra de toque! – Malcolm Lowry, mas que facilmente confessa ter sonhado ser um dos Walker Brothers, No Song No Spell No Madrigal respira a impuríssima atmosfera do melhor "film noir" traduzida para as páginas de um diário irremediavelmente ferido pela memória do filho, Riley, morto aos três anos (“I carried you on my hip, at first, I carried you on my shoulders, I carried you to a long black car, you will never get any older”). Numa espécie de impossível bissectriz entre os Blue Nile e os Go-Betweens de Liberty Belle, infindavelmente “looking for some other town where the steps go up instead of down”.

09 May 2008

GODARD E TRUFFAUT



Robert Forster - The Evangelist

Quando, a 6 de Maio de 2006, numa tarde de sábado, Grant McLennan, aos 48 anos, morreu vítima de um ataque cardíaco fulminante, o seu amigo e companheiro de três décadas nos Go-Betweens, Robert Forster, escreveu uma emocionada “remembrance” na qual contava como ambos se haviam conhecido no departamento de teatro da universidade de Queensland. Grant vivia e respirava cinema, Robert estudava literatura inglesa mas tocava já numa banda que respondia alternativamente pelo nome de The Mosquitoes ou The Godots: “Quando Grant e eu nos encontrámos, não o sabíamos ainda mas tínhamo-nos descoberto, um era a imagem no espelho do outro. Ele falava-me sobre a ‘nouvelle vague’ francesa e o ‘film noir’. Eu falava-lhe sobre a grandeza dos Velvet Underground. Ele falava-me acerca da teoria dos autores e o génio de Preston Sturges. Eu falava-lhe acerca de Dylan, a meio dos anos sessenta. Ele referia Godard e Truffaut. Nós tornámo-nos Godard e Truffaut. Na altura, Brisbane não fazia a menor ideia disso mas havia dois miúdos de dezanove anos ao volante de um automóvel que pensavam ser realizadores de cinema franceses”.


Robert Forster ensinou Grant McLennan a tocar guitarra-baixo e apercebeu-se que, de estudante de cinema capaz de tocar baixo, ele se havia convertido em músico e compositor. A primeira canção de ambos chamou-se “Big Sleeping City” e os Go-Betweens, em Janeiro de 1978, acabavam de nascer. Nunca chegaram a concretizar a segunda parte da sua conspiração privada – realizar um filme e escrever um livro, The Death Of Modern America: Dylan 1964-66 – mas a preciosa discografia da banda que (com os Triffids) criou as mais sublimes canções da pop australiana bastou e transbordou. The Evangelist, assinado por Robert Forster, é, então, de facto, o último álbum dos Go-Betweens. Forster bem poderá dizer que apenas meia dúzia de linhas e dois refrões foram herdados de McLennan mas a memória dele (e de ambos e daquilo que aos dois assombrava) está lá, intacta. Por todo o lado: no momento em que “Did She Overtake You”, partindo dos Velvets, reinventa os Go-Betweens; nas duas subtis variantes-Dylan de “Don’t Touch Anything” e “Let Your Light In, Babe”; na frase final de “It Ain’t Easy”, “I write these words to his tune that he wrote on a full moon, and a river ran and a train ran and a dream ran through everything he did”; no “segredo” que, em “From Ghost Town”, aperta um nó na garganta. Agora, sim, os Go-Betweens repousam em paz. (2008)

11 June 2007

GRANT MCLENNAN (1958-2006)



A (auto)biografia está toda nas vinte e cinco linhas de "Cattle And Cane", de Before Hollywood (1983), o segundo álbum dos Go-Betweens. Começa com "I recall a schoolboy coming home through fields of cane, to a house of tin and timber and, in the sky, a rain of falling cinders". Depois, surge "a boy in bigger pants, like everyone just waiting for a chance, his father's watch he left it in the shower". No final, "a bigger brighter world, a world of books and silent times in thought, and then the railroad, the railroad takes him home, through fields of cattle, through fields of cane". E sempre "the waste, memory wastes - further, longer, higher, older". Grant McLennan, com Robert Forster, era metade dos Go-Betweens, a banda que, nos anos 80, com os Triffids e Nick Cave, deu notícias de uma pop superiormente poética e letrada na Austrália. Gostava de Cormac McCarthy, Raymond Carver, Dylan e Springsteen. Morreu, enquanto dormia, no passado sábado, em Brisbane. Num dos enormes álbuns do século passado — Liberty Belle And The Black Diamond Express (1985) —, escreveu uma das mais belas estrofes da poesia pop: "When the rain hit the roof, with the sound of a finished kiss, like a lip lifted from a lip, I took the wrong road down". A memória não se esvai mas dói. (Maio de 2006)