UMA TARTE DE MAÇÃ
Alela Diane & Wild Divine - Alela Diane & Wild Divine
Fleet Foxes - Helplessness Blues
Dois dias antes do 70º aniversário de Bob Dylan – celebrado no passado 24 de Maio –,
o “Observer” decidiu inquirir uma série notáveis da música e outras artes acerca de qual o presente que achariam mais apropriado para lhe oferecer. As propostas foram, previsivelmente, assaz diversas: Martin Carthy (recordando um episódio ocorrido no Inverno de 1962 entre ambos) sugeriu um piano e uma espada de samurai para despedaçar o piano e o usar como lenha para a lareira nas noites frias; Isobel Campbell pensou numa camisa de seda e num par de sapatos italianos; Chrissie Hynde lembrou-se de um jogo de dardos (
“por nenhuma razão especial: suponho que ele gostaria”); e Alela Diane, imaginando sensatamente que ele poderá comprar tudo aquilo que quiser, optou pelos valores básicos e seguros: uma tarte de maçã que confeccionaria segundo a infalível receita da mãe. E explicou-se:
“A música folk, na sua essência mais profunda, foi criada para as pessoas conviverem à sombra do alpendre e eu associo a tarte de maçã a esse tipo de comportamento. Suponho que a vida do Bob Dylan, nestes últimos tempos, se tenha tornado muito mais simples e que, no dia de anos, lhe saiba bem sentar-se no alpendre e fazer o que lhe apetecer. Como companhia, uma tarte de maçã será tudo o que precisa”.
A música que emergiu do que foi baptizado como "new weird America" (padrinho do baptismo: David Keenan, no número de Agosto de 2003 da “Wire”), "free-folk", "psych-folk" ou "freak-folk" não foi, assim, senão um ensaio do regresso da boa velha tarte, mais ou menos condimentada com temperos psicotrópicos, e preparada de acordo com uma interpretação livre dos antiquíssimos preceitos recuperados das tradições britânica e norte-americana. Que, agora, quase dez anos depois, e após a poeira ter assentado suficientemente, permite distinguir com maior facilidade os folqueiros de fim-de-semana (aqueles que apreciavam travestir-se de descendentes híbridos de Jesse James e feiticeiros comanches com uma costela de bardo celta) dos outros que, verdadeiramente, reinventavam e retomavam o fio da história no ponto em que – sem nunca, de facto, ter sido interrompida –, há trinta e tal anos, ficara suspensa. Por motivos de proximidade geracional e geográfica, inicialmente, Alela Diane foi associada a algumas das cintilações da seita neo-hippie, caso, por exemplo, de Joanna Newsom.
Mas, com The Pirate’s Gospel (2006) e To Be Still (2009), tudo ficaria devidamente esclarecido: a ascendência poderia ter ramos comuns mas o que dela resultava era, afinal, uma novíssima e valiosa voz de songwriter bem mais afim de Neko Case ou Jolie Holland (ou, recuando até às origens, Sandy Denny) do que de míticas lambisgóias “celtas”. Alela Diane & Wild Divine (a saber: ela e banda acompanhante que, em registo de "family affair", inclui o pai e o marido), sem exibir tremendas alterações no perfil musical reconhecível, encorpa sensivelmente a sonoridade das óptimas canções – o produtor Scott Litt, com CV ao lado dos R.E.M., Nirvana e Patti Smith, terá modificado dois ou três parâmetros – e aproxima-as dos igualmente recomendáveis padrões de Neil Young ou Richard & Linda Thompson, povoadas de inquietantes recados como “death is a hard act to follow” ou “we are hopeful, we are scattered, we are dust”.
Genuína emanação da cena "freak-folk", os Fleet Foxes, pelo seu lado, mantém inalterada a faceta menos digerível da genealogia – a da chinela “poética” que os obriga a, sem se rirem, formularem portentosas interrogações do gènero de “why is the Earth moving around the sun? why is life made only for it to end?” – mas como, muito mais do que canções, o que eles criam são majestosas catedrais de remoinhos corais que ampliam desmedidamente a matriz Beach Boys-CSN&Y-Simon & Garfunkel, “Helplessness Blues” não deixa de ser uma tentadora peça de dulcíssima massagem auditiva.
(2011)