(sequência daqui) E, um pouco por todo o lado, outros nomes – Shane MacGowan, Johnny Cash, Nick Cave, William Blake, Christy Moore – iriam sendo pronunciados, inclusive pela própria Lisa quando interrogada sobre que elementos a influenciariam: “A chuva, o vento, as flores, as abelhas, os rios, as árvores, os pássaros, as perguntas que as crianças fazem. Gente como Alan Watts, Charlie Chaplin, Einstein, Nina Simone, Moondog, a lua e o pó das estrelas”. Nem seria preciso recordar a assombração da sua voz no episódio final da série Peaky Blinders incinerando o haiku “All The Tired Horses”, de Bob Dylan, para que, antes da escuta de All Of This Is Chance, não tivesse já a menor dúvida de que “a lawless league of lonesome beauty” acabara de chegar das costas da Irlanda. Crua e densamente orquestral, entranhadamente tradicional e irremediavelmente contemporânea, com o olhar nas estrelas ("A star ran rings around the star before me and spun and swooped and sank in rock beneath me”) e uma fonte de alimentação inesgotável: “The solar system is a very large pool to draw from!”
(sequência daqui) Tinha-a entrevisto num álbum dos Watersons mas encontrou-a junto do mestre Stanley Robertson – cigano de Aberdeen, sobrinho da lendária Jeannie Robertson de quem herdou o reportório tradicional – e da também cigana Freda Black (não espanta, pois, que, num episódio da extraordinária série Peaky Blinders, tenha aparecido como cantor num casamento cigano). De ambos, aprendeu “o que realmente significa habitar uma canção e como permitir que a música nos guie”. Exactamente o que acontece quando "Turtle Dove" e "Soul Cake" se deixam exaltar nas vagas orquestrais buckmasterianas do ex-Suede, Bernard Butler, quando Liz Fraser (Cocteau Twins), furtivamente, com "Wild Mountain Thyme", alimenta o crescendo de "The Moon Shines Bright", e quando, em todas, a voz de Sam Lee – algures entre os dois Buckley, Tim e Jeff, com Christy Moore na memória –, altiva mas reverente, declama o passado como quem inventa o futuro.
A atmosfera geral – de Cohen a PJ Harvey, Burroughs, Darren Hayman, Shirley Collins, Paul Simon, Christy Moore – não foi propriamente festiva. Há anos assim. Mas alguns, como este, na música e no resto, carregam claramente nas tintas. Do francamente sepulcral à nostalgia dorida, ao delírio assombrado ou à denúncia política, a paleta raramente recorre às cores primárias. O que, seria facilmente acentuado se, dilatando a lista dos dez primeiros, incluíssemos Blackstar, de David Bowie, Lover, Beloved: Songs From An Evening With Carson McCullers, de Suzanne Vega, Skeleton Tree, de Nick Cave, ou You Can't Go Back If There's Nothing to Go Back To, dos Richmond Fontaine. Fiquemos, pois, gratos à vibrante experimentação electro-acústica de Anna Meredith, ao suave neo-classicismo de Meilyr Jones (e, noutro registo, Bob Dylan) ou à iconoclastia de Luke Haines e Neil Hannon, por terem permitido que um pouco de luz penetrasse.
Mick Blake, "singer-songwriter" de Leitrim – na margem do “broad majestic Shannon”, como diria Shane MacGowan –, há dois anos, publicou no YouTube, "Oblivious", uma canção que, embora referindo-se muito especificamente à realidade irlandesa, se traduzida para português, nunca adivinharíamos que pudesse ter tido outra origem. Dedicada a “those suffering from blind allegiance or apathy”, é uma amável "folk ballad", a transbordar de amargura e revolta: “When they give all that you treasure away for a pittance, or banish your children to toil on a rich foreign shore, when they prey on the weakest and bow to the ones that have plenty, they know that you'll follow blindly as you did before (…) What will it take to make you angry? Where is the spark to light your flame? We've been sold out, taken in, yet blindly you do it all again, fuel that gravy train, oblivious, it's like we’re oblivious”. Já em 2012 – sempre exclusivamente via YouTube –, "Leitrim (A Brief History)" traçava uma arrepiante diagonal entre a Grande Fome de 1845/1852 (que dizimou um milhão de irlandeses e obrigou à emigração de outros tantos) e o tremendo colapso bancário de Setembro de 2008 (do qual a gravação das conversas entre administradores do Anglo Irish Bank, revelada pelo “Irish Independent”, poria um pacifista a sonhar com guilhotinas).
Christy Moore não estava desatento. Ele, “Irish national treasure” a comemorar 50 anos de carreira, fundador dos prodigiosos Planxty e Moving Hearts, orgulhoso autor de canções proibidas (por “subversivas”) na rádio e, em 2004, ao abrigo do Prevention of Terrorism Act, detido e interrogado pelo Special Branch britânico acerca dos textos que cantava, ele, Christy Moore, apadrinhou "Oblivious" e "Leitrim" e incluiu-as no seu reportório. A primeira surge, agora, em Lily, último álbum de Moore. E, transportada por aquela voz que se diria talhada na rocha de Benbulben, dificilmente se encontraria terapia mais poderosa contra a “blind allegiance” e a “apathy”. Algo que a intensa versão de "Wallflower", de Peter Gabriel (sobre os prisioneiros políticos), aprofunda e, com "The Ballad of Patrick Murphy", se converte em centro de gravidade de uma impressionante colecção de nove canções e uma assombração "spoken word" - "The Lost Tribe Of The Wicklow Mountains" – a partir de um poema de Dave Lordan.
Quando, em Janeiro passado, se comemorou o centenário de Ewan MacColl (morto em 1989), Shirley Collins, a matriarca da folk britânica, chamada a depor pelo “Guardian”, não mediu as palavras: “Ewan teve uma influência bastante perniciosa na folk. Todos os músicos sobre quem exerceu influência acabaram a soar iguais. Era terrivelmente sexista, pretensioso e pomposo”. Não era, de facto, flor que se cheirasse o fulano que, aos 17 anos, enquanto militante da Juventude Comunista, já tinha dossier aberto no MI5: de acordo com o dogma maccoll-zhdanovista, a folk deveria manter-se imaculadamente pura e fidelíssima à vetusta tradição, higienicamente afastada de qualquer influência burguesa e/ou imperialista – cada canção teria de ser cantada no sotaque de origem, nada de vis contaminações americanas, mesmo o jovem Dylan-cantor-de-protesto era encarado como “lixo capitalista” –, cantora folk digna desse nome livrasse-se de pintar as unhas e, até ao fim (tendo, nos anos 60, alinhado com a dissidência maoista do Partido Comunista da Grã Bretanha), nunca renegaria a sua "Ballad Of Stalin" (“Joe Stalin was a mighty man and a mighty man was he, he led the Soviet people on the road to victory”).
Mas foi também o dramaturgo e actor aplaudido por Bernard Shaw, o criador, nos anos 50, do programa “Radio Ballads”, para a BBC, e fundador do Singers Club, em Londres – que, apesar do colete de forças ideológico, foram gatilhos decisivos para o "folk revival" –, o intérprete e colector (com A. L. Lloyd) de centenas de espécimes tradicionais, e autor de canções como "Dirty Old Town" ou "The First Time Ever I Saw Your Face", gravadas por Elvis Presley, Phil Ochs, Pogues, Planxty e Johnny Cash. Shirley Collins terá, então, de se resignar ao facto de, no ano em que foi publicado o seu álbum de homenagem, Shirley Inspired, sair também Joy Of Living - A Tribute to Ewan MacColl, sobreexcelente duplo CD que reúne a "crème de la crème" de várias gerações e dinastias folk (Marry e Norma Waterson, Martin e Eliza Carthy, Christy Moore, Martin Simpson, The Unthanks) com "snipers" exteriores (Paul Buchanan, Jarvis Cocker, Billy Bragg, Steve Earle), entregues às heréticas delícias da desobediência à linha dura em matéria de estética.