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13 August 2018

ELOGIO DA ERUDIÇÃO

  
Exemplo típico de quanto uma pitada de erudição pode ampliar significativamente a forma como desfrutamos de algo: é perfeitamente possível ver Moulin Rouge, de Baz Luhrmann (2001), ignorando totalmente a história e a proveniência das várias canções que ocorrem ao longo da narrativa e, ainda assim, considerá-lo um belíssimo “musical”. Mas não se duvide que muito mais de metade do prazer que dele retiramos se perderá para quem não se aperceba que o hino dos boémios parisienses "fin de siècle" é "Children Of The Revolution", dos T. Rex, que o poema com que Christian/Ewan McGregor seduz Satine/Nicole Kidman é, afinal, "Your Song", de Elton John, que o nome do corpo de baile do “cabaret”, Diamond Dogs, pisca o olho a David Bowie, mas, sobretudo – num inesgotável mil-folhas de citações que vai de "Material Girl" a "Smells Like Teen Spirit", "Like a Virgin", "Roxanne" ou "Heroes" –, o saboroso anacronismo de, com Toulouse-Lautrec por testemunha, assistirmos ao nascimento de The Sound Of Music, numa mansarda de Montmartre, em 1900. 


Coisa muito semelhante se passa com Wide Awake!, dos Parquet Courts. Logo a abrir, "Total Football", começa por exigir que, para entender o manifesto de luta colectiva (“Rebels, teachers, strikers, sweepers, workers, authors, poets, stoppers”) contra as tiranias contemporâneas, se conheça a táctica criada pela selecção holandesa dos anos 70. Depois, o texto da “ponte” – “Hesse total football, Twombly total football, Tzara total football, Mina total football, Panthers total football, CoBrA total football, Dada total football, Beatles total football” – obriga a investigar quem são (ou foram), pelo menos, Eva Hesse, Cy Twombly, Mina Loy ou o movimento CoBrA. O remate final (“Fuck Tom Brady!”), esse, leva-nos à descoberta de um ídolo da NFL desgraçadamente apoiante de Trump. Não está lá, preto no branco, mas todo o album nos poderia conduzir aquela citação da feminista e anarquista Emma Goldman, “If I can’t dance, I don’t want to be part of your revolution”: de uma ponta a outra, neste magnifico festival de art-punk politicamente carregado (“Violence is daily life, a cause, an effect, a rejoice, a regret”, “Adapt to the void then if you must, into this perverted status quo, what if I've grown tired of being polite?”, “What becomes of our demonstrations? To which fate these gatherings fell? Which walls echo all the chants we yelled?”), George Clinton – “Free your mind and your ass will follow” – não foi esquecido.

13 September 2016

ESTILHAÇOS 


Amadeus (1984), de Milos Forman – vertendo para o cinema a peça homónima de Peter Shaffer –, dificilmente poderia conter maior número de imprecisôes históricas e efabulações fantásticas acerca da biografia de Mozart. Mas isso não o impediu de se tornar no retrato eventualmente mais revelador do precoce génio musical de Viena (aliás, Praga, no filme), capaz, por exemplo, de nos fazer adivinhar que o autor do avassalador Requiem era exactamente o mesmo de peças tão desabridas como o canone “Leck Mich Im Arsch” (traduzindo, preventivamente, em inglês, “Lick My Ass”). Florence Foster Jenkins, de Stephen Frears, é, sem dúvida, infinitamente mais fiel à história real da celebrada “pior cantora que alguma vez pisou o palco do Carnegie Hall” do que Marguerite, de Xavier Giannoli, que, confessadamente, apenas “se inspirou” nela. E não somente isso: mudou-lhe o nome (subtraído a Margaret Dumont, uma partenaire dos irmãos Marx), a nacionalidade (de norte-americana para francesa) e convidou-a a recuar duas décadas (dos anos 40 para os 20 do século passado). Ao fazê-lo, porém, não se limitou a evitar a armadilha do "biopic": libertou um imenso espaço para a criação de uma personagem paralela, que, através de Marguerite Dumont, permite ver muito para além de Florence.


Se, na (brilhante) encarnação de Meryl Streep, ela é quase só uma extravagante, patética e tragicómica burguesa rica, espécie de avestruz ululante e "clown" involuntário da boa sociedade nova-iorquina, a baronesa Dumont, de Giannoli, ainda que não menos trágica, abre um portal sobre um outro universo no qual a Paris dos dadaístas, a encara enquanto porta-estandarte da profanação das soirées burguesas e protagonista de actos de provocação com a ‘Marselhesa’ em fundo, destinados, como diria Marcel Janco, a “chocar o bom senso, a opinião pública, as instituições, os museus, o bom gosto, em suma, toda a ordem vigente”. Mal ouviu uma gravação de Jenkins, Giannoli pensou imediatamente “que se tratava de uma performance artística, reflecti sobre o que era a arte e o absurdo. Fugir aos códigos aceites do que é belo não é uma forma de desconstrução, um estilhaço dadaísta? Será mais importante cantar com afinação perfeita ou investir totalmente no desejo (até no delírio) mesmo que se cante mal?” Há-de ser por esse motivo que nos recordaremos sempre do filme de Frears como uma história excêntrica muito bem contada mas Marguerite nos deixará a pensar no “rugido de cores tensas, o abraço de opostos, contradições, grotescos e inconsistências” de Tristan Tzara.

27 July 2016

HOHI, HOHO, BANG, BANG 



“Declaro que Tristan Tzara encontrou a palavra Dada no dia 8 de Fevereiro de 1916 às 6 horas da tarde; eu estava presente com os meus doze filhos quando Tzara pronunciou pela primeira vez essa palavra que desencadeou em nós um entusiasmo legítimo. Passou-se isso no Café Terrasse em Zurique, e eu trazia um brioche na narina esquerda. Estou convencido que esta palavra não tem nenhuma importância e que só imbecis ou professores espanhóis se interessam por datas”, garantia Hans Arp. Mas foi em Julho desse ano que Hugo Ball subiu ao palco do Cabaret Voltaire (perto do qual, vivia Lenine, alegado frequentador do clube), e leu o Manifesto Dada: “Dada guerra mundial sem fim, dada revolução sem princípio, amigos e auto-intitulados poetas, estimados cavalheiros, fabricantes e evangelistas. Dada Tzara, dada Huelsenbeck, dada m'dada, dada m'dada dada mhm, dada dera dada, dada Hue, dada Tza. (...) Como nos livrarmos de tudo o que fede a jornalês, a vermes, tudo o que é bonitinho e limpinho, preconceituoso, moralista, europeizado, debilitado? (...) A palavra, a palavra, a palavra fora do vosso domínio, da vossa pestilência, da vossa ridícula impotência, da vossa siderante auto-satisfação. A palavra, cavalheiros, é um assunto público de primeira importância”

Exactamente a meio dos quatro anos de horror da guerra, Dada definia o seu lugar (“Dada permanece no quadro europeu das fraquezas, não deixa de ser merda também, mas, de agora em diante, desejamos cagar em cores diferentes para ornamentar o jardim zoológico da arte de todas as bandeiras dos consulados. Somos directores de circo e assobiamos por entre os ventos das feiras, conventos, bordéis, teatros, realidades, sentimentos, restaurantes, hohi, hoho, bang, bang”), fazia anti-teoria anti-política ("Poder-se-ia construir uma máquina de fazer política, com um veio excêntrico automodificável, e assim substituir com vantagem o centro governamental; sendo uma espécie de maquiavel automático, essa máquina cuidaria da vida pública de um país com uma precisão impressionante, proveria a todas as combinações necessárias à respectiva saúde e impediria a sua senilidade”) e, de caminho, inventava o mundo moderno nas colagens, "cut-ups", "readymades", fotomontagens, "assemblages" e "sound poetry". Identificando-o como primeiro elo da “história secreta do século XX” que desembocaria no punk, Greil Marcus escreveu: “Dada foi uma profecia mas não fazia nenhuma ideia do que profetizava e a sua força era não querer saber disso para nada”

05 April 2016

POR ONDE COMEÇAR


Se costuma acreditar em tudo o que lê, é bem possível que tenha ficado convencido que, no último álbum, Painting With, os Animal Collective tenham optado por um matrimónio peculiar entre a variedade de psicadelismo que praticam e uma estirpe contemporânea do dadaísmo. No ano em que se comemora o centenário da inauguração, em Zurique, do Cabaret Voltaire (não confundir, por Zeus!, com a homónima banda britânica), e do primeiro Manifesto Dada, de Tristan Tzara, era um anzol que estava mesmo a pedir para ser engolido. A verdade é que, caso o tema lhe interesse, ficará bem melhor servido se ler Dada – Histoire d’une Subversion (de Henri Béhar e Michel Carassou, recentemente traduzido pela Antígona). Porque, no disco de Noah Lennox, David Portner e Brian Weitz – tal como não é a inclusão da frase “Le tout début d’une histoire est plus beau qu’un urinoir de Marcel Duchamp” que faz de Quinze Chansons, de Vincent Delerm, um espécime neo-dadaísta –, a única relação com “o jogo louco do vazio” de Hugo Ball, Picabia e Hans Arp, é o título da primeira canção, "FloriDada". Só isso.



E a também vastamente referida associação à estética-Ramones (a propósito: “Gabba gabba hey” será uma interjeição dada?) não foi senão a expressão do desejo de se imporem regras de brevidade e concisão, uma estratégia de estimular a criatividade através da aceitação de restrições. Para concluir a demolição do "hype" fabricado pelos media mais preguiçosos, acrescente-se ainda que, sim, Painting With foi gravado nos mesmos EastWest Studios onde decorreu a gestação de Pet Sounds, dos Beach Boys, mas tal só aconteceu porque outras alternativas não foram possíveis e não porque o trio sonhasse com a invocação da musa criativa de Brian Wilson. O que, neste particular, não impediu que – em linha evolutiva mais ou menos previsível – boa parte do disco soe ao que poderia resultar de uma sessão de estúdio dos Beach Boys sequestrados no interior de um jogo de vídeo e sob a influência simultânea de um generoso sortido de químicos e do hoquetus vocal medieval. Sob as condições ideais de temperatura e pressão, o que resulta é luminoso e multicolorido. Acerca do que sobra, a palavra a Portner: “I don’t even know where to begin, or how should I start these days”.

22 March 2016

"DADA reste dans le cadre européen des faiblesses, c'est tout de même de la merde, mais nous voulons dorénavant chier en couleurs diverses pour orner le jardin zoologique de l'art de tous les drapeaux des consulats" (Tristan Tzara, Le Manifeste de M. Antipyrine, 1916 - daqui)

16 September 2015

RUÍNAS 


“Como se faz o alinhamento de um concerto dos Apartments? Aceitam-se algumas sugestões. Pega-se numa tesoura. A seguir, cortam-se cuidadosamente os títulos e colocam-se todos num saco. Agita-se delicadamente. Retiram-se, então, um após outro. Copiam-se pela ordem em que saíram do saco. 'Et voilá', o alinhamento será a minha cara – um autor infinitamente original de encantadora sensibilidade, embora nem todos estejam de acordo (com pedido de desculpas a Tristan Tzara)”. É o género de post que é possível ler na conta de Facebook dos Apartments, isto é, de Peter Milton Walsh, que, algures, perante comentários de que nunca publica nada pessoal, responde “O que poderia ser mais pessoal do que uma canção?”, mas, cedendo, “vira uma página” e coloca uma fotografia do cão, Teddy, “ouvindo-me ler as críticas a No Song, No Spell, No Madrigal e a lista de datas da digressão francesa dos Apartments”. A primeira das quais será a 19 de Setembro, “em Saint-Lô, a ‘Capital das Ruínas’, como lhe chamou Beckett. Não é coincidência”.



Não é mesmo. Se o texto de Samuel Beckett lidava com a “humanidade em ruínas” que avistou na cidade da Normandia, arrasada pelos bombardeamentos da segunda guerra mundial, não é despropositado dizer que todas as canções de Peter Milton Walsh são o muito pouco que conseguiu salvar dos escombros da sua demasiado humana individualidade. Talvez por isso, em 37 anos, não tenha registado mais de oito álbuns e, à excepção de França e de meia dúzia de células clandestinas de admiradores dispersas pelo planeta, continue virtualmente inexistente. Em 2012, a meio de outra tournée francesa, aceitou o convite da Radio France para gravar sete canções, sessão de que, no Record Store Day do ano seguinte, a Talitres publicaria 449 cópias em vinil, rapidamente esgotadas. Acompanhado por Amanda Brown (ex-Go-Betweens), Nick Allum e Wayne Connolly, Seven Songs – "Things You'll Keep", "Thank You For Making Me Beg", "World of Liars", "On Every Corner", "Mr. Somewhere", "Everyday Will Be New" e "All You Wanted" – é, agora, reeditado em CD, pronto para, uma vez mais, nos fazer ajoelhar. Na contracapa, fotografada por Raymond Cauchetier nas filmagens de À Bout de Souffle, Jean Seberg, dá-nos o golpe de misericórdia.

23 April 2014

BURROUGHS 


Steely Dan. Nova Mob. Thin White Rope. “Interzone”. The Soft Machine. Matching Mole. Heavy Metal. 23 Skidoo. The Soft Boys. Bandas, géneros, canções, nomeados a partir de textos de William Burroughs. Tzara e os dadaístas já tinham criado poemas a partir de palavras retiradas, ao acaso, de um chapéu. Os surrealistas celebraram os “encontros fortuitos” e os “cadavres exquis” e Jean Cocteau encomendava, a George Auric, música para sequências específicas dos seus filmes e, depois, distribuía-a, aleatoriamente, jogando com aquilo a que chamava “sincronia acidental”. Mas foi no nº 9 da Rue Gît-le-Coeur, em Paris, o decrépito “Beat Hotel” onde, entre 1957 e 1963, pararam também Gregory Corso e Allen Ginsberg, que Brion Gysin e Burroughs, por descuido – ao cortar folhas de papel de desenho, Gysin fatiou também algumas páginas de jornal cujos recortes recompôs ignorando os originais –, tropeçaram no "cut-up" (e, a seguir, no "fold-in", no "inching", no "drop-in"), menos técnicas literárias do que telescópios mentais ("When you cut into the present the future leaks out") e estratégia de guerrilha contracultural, dedicada, "à la" Rimbaud, tanto a desregular os sentidos como a sabotar as “máquinas de controlo” (“Smash the control images. Smash the control machine”). 


A cultura pop, ávida de infracção e experimentalismo, acolheu de braços abertos o "upper class junkie", de fato completo, gravata e chapéu, homossexual, literato, homicida por acidente, autor de Naked Lunch e The Nova Trilogy, proto-inventor do "sampling": Debbie Harry, Patti Smith, Joe Strummer, Lou Reed, foram ao beija mão, em Nova Iorque, nos anos da "no wave"; Tom Waits co-escreveu com ele a ópera The Black Rider; Hal Willner, em Dead City Radio, convocou John Cale, Sonic Youth, Donald Fagen e outros para lhe encenarem os textos; R.E.M, Cobain, Laurie Anderson, Disposable Heroes of Hiphoprisy gravaram com ele; Bowie, em "Sweet Thing", de Diamond Dogs, recorreu ao "cut-up" e, Paul McCartney fez questão que Burroughs figurasse na capa de Sgt. Pepper, inclinando a cabeça sobre Marylin. Morto em 1997, completaria, em 2014, 100 anos. Em Burroughs100, está o calendário completo das comemorações internacionais. Em 2012, foi a vez do centenário de John Cage. Celebramos, como é justo, os génios do século XX. Mas convinha irmos também começando a detectar os do século XXI.