(sequência daqui) Terá de haver algum motivo insondável para que a quase fadista Cristina Branco tenha escolhido incluir no seu reportório "A Case Of You" e "Cherokee Louise". Porque, do que a autora de ambas revela na preciosa conversa com Cameron Crowe – fã reverente, jornalista, cineasta, argumentista, produtor, actor – reproduzida nas 36 páginas do "booklet", dir-se-ia que só no “quase” se poderá encontrar, talvez, a explicação: interrogada sobre se, no trajecto da folk para o "songwriting" e, daí, para o jazz, para a colaboração com Charlie Mingus e para os trabalhos de orquestração, não poderia ver-se o dedo do destino, Mitchell responde sem hesitar “Não, não ligo nenhuma ao destino. Nem compreendo, de todo, o conceito de destino”. Não é a única vez que, ao longo da troca de ideias, ela é assim tão afirmativa. Pronta a reconhecer Buffy Sainte-Marie, Woody Guthrie, Tom Rush, o Kingston Trio, Judy Collins, Peter, Paul & Mary, Dave Van Ronk e Lambert, Hendricks & Ross (um trio de jazz vocal) como músicos que admirava e a influenciaram (“Tudo o que aprendi foi por admiração e osmose”), quando o nome de Joan Baez é pronunciado, e reacção é instantânea: “Não fui, de modo nenhum, influenciada por Joan Baez. Que isso fique bem claro”. Já a propósito de Leonard Cohen, tudo é bem diferente: “Ouvi-o no Newport Folk Festival. 'Suzanne’ foi uma canção que me impressionou muito. Foi o primeiro que, verdadeiramente, admirei. Deixou-me com a impressão de quão imaturas as minhas canções eram. Ele era um adulto. Era assim que os adultos escreviam” (segue para aqui).
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06 February 2021
28 November 2019
De Nova Iorque para Londres, de Montréal para Israel, Cuba e a Grécia. Pelo menos, Marianne ficou para sempre na contracapa de Songs From A Room (1969), Suzanne Elrod na de Death Of a Ladies’Man e Sharon Robinson na de Ten New Songs. Como, amantes ou amigas, poderiam ter ficado também a outra Suzanne (Verdal, a que inspirou a canção), Joni Mitchell, Nico, Janis Joplin, Dominique Isserman, Rebecca De Mornay, Anjani Thomas, Judy Collins. Foi à porta desta última, em Nova Iorque, que, em 1966 – descrente da possibilidade de sobreviver como romancista depois de o segundo romance, Beautiful Losers (escrito num caldeirão mental alimentado a cocktails heróicos de LSD, anfetaminas, sedativos e jejuns), ter sido arrasado pela crítica literária canadiana –, Leonard foi bater, “desconhecendo totalmente o que Dylan, Phil Ochs ou Joan Baez andavam a fazer”. No documentário, Collins conta: “Abri-lhe a porta, ofereci-lhe um café, e ele diz-me ‘Não sei cantar, não sei tocar guitarra e não tenho a certeza se isto é uma canção’. Tocou-me ‘Suzanne' e eu disse-lhe ‘Podes ter a certeza que é uma canção! E tenho de a gravar imediatamente!’ Ficamos amigos, gravei a canção [e também "Dress Rehearsal Rag", no álbum In My Life, 1967, que só ressurgiria na voz do autor, no avassalador Songs of Love and Hate] e ele deixou sempre muito claro que, nunca por nunca, quereria cantá-la em público. Num concerto de beneficência, convidei-o para subir ao palco e cantá-la comigo. Tremia como varas verdes. A meio, começou a soluçar e fugiu do palco, num ataque de pânico. Fui atrás dele e convenci-o a regressar”. A canção sobre Suzanne Verdal - bailarina que estudara com Martha Graham e interpretava peças de John Cage e Edgar Varèse – “foi uma espécie de porta. Tinha de abri-la com cautela, senão perdia o acesso ao que estava do outro lado. Não foi uma canção acerca de uma determinada mulher. Não dormimos juntos. Ela não queria macular ou contaminar a pureza do carinho que sentia pela nossa relação. Foi uma canção sobre o começo de uma vida diferente para mim”.
Contudo, desde o final da frequência na McGill University, de Montréal, e o primeiro semestre em Columbia, uma depressão recorrente assombrava-o: “Quando me refiro a depressão, não estou a falar apenas de tristeza, não se parece muito com a ressaca de um fim-de-semana em que uma rapariga nos deixou pendurados. É uma espécie de agressão mental que, de um momento para o outro, nos impede de funcionar. Uma depressão clínica que é o pano de fundo de toda a minha vida, uma sensação de angústia e ansiedade, de que nada está bem, de que o prazer é inalcançável e todas as estratégias falham”. Num programa da televisão canadiana, com Irving Layton (aquele cuja mulher, Aviva, recorda que frequentemente o espicaçava, dizendo “Leonard, are you sure you’re doing the wrong thing?”), em surdina, tocava no assunto: “Quando, de manhã, acordo, a minha verdadeira preocupação é saber se estou ou não em estado de graça”. Em Madrid, foi mais longe: “Tenho sempre a sensação de viver à beira do colapso e preciso de tomar medidas de emergência: experimentei o Prozac, experimentei o amor, experimentei as drogas e a meditação zen. Tentei esquecer todas essas estratégias e caminhar em frente. Mas o úico lugar onde a verdadeira avaliação acontece é quando me sento para escrever, quando atinjo aquele ponto em que já não posso ser desonesto acerca do que faço”.
A sua eternamente desnorteada bússola política – definiu-se como “um anarquista incapaz de lançar uma bomba” mas, em Londres, teve relações problemáticas (embora fugazes) com o situacionista alucinado Alexander Trocchi e com o militante do Black Power, Michael X – levá-lo-ia a Havana, em 1961, durante a crise da Baía dos Porcos, “lutando por ambos os lados”: “Interessava-me muito saber o que significava para um homem andar armado e matar outros homens, e até que ponto eu me sentia atraído por esse processo. A morte aproxima-nos da verdade. Nunca fui muito fervoroso nas minhas convicções, nem sequer naquele tempo. Fui até Cuba convencido de que o mundo inteiro existia para usufruto da minha observação e educação enquanto indivíduo”. Em 2001, por ocasião da publicação de Ten New Songs, comodamente recostado no sofá de um hotel, em Paris, respondia-me acerca dos motivos para chamar The Army à banda que o acompanhava: “Gosto das fardas . Gosto da ausência de ambiguidade, do grande sentido de uma finalidade, de um objectivo, da implicação de solidariedade e fraternidade, o sentido de uma comunidade sagrada, da devoção e dedicação a um ideal”. Em "Field Commander Cohen" auto-retratava-se sarcasticamente: “Field Commander Cohen, he was our most important spy, wounded in the line of duty, parachuting acid into diplomatic cocktail parties, urging Fidel Castro to abandon fields and castles. I never asked but I heard you cast your lot along with the poor, but then I overheard your prayer, that you be this and nothing more than just some grateful faithful woman's favourite singing millionaire, the patron saint of envy and the grocer of despair, working for the Yankee Dollar”. E, em "The Last Tourist in Havana Turns His Thoughts Homeward", de Flowers for Hitler (terceira colecção de poemas, 1964), exortava: “Come, my brothers, let us govern Canada, let us find our serious heads, let us dump asbestos on the White House, let us make the French talk English, not only here but everywhere, let us torture the Senate individually until they confess, let us purge the New Party, let us encourage the dark races, so they'll be lenient when they take over”.
Caminhando perigosamente na corda bamba, em Paris, acrescentava: “Adoro política, as políticas extremistas. Posições políticas extremistas enquanto narrativa. Espero nunca viver sob tais regimes, mas sempre me atraíram naquilo que representam de um certo apetite humano pela ordem. Escutar pessoas que articulam visões da perfeição é sempre muito interessante. A maioria das pessoas é obrigada a negociar uma ambiguidade aterradora nas suas vidas. E, de súbito, alguém se ergue e afirma ‘Eu sou sérvio’". Ou sou isto ou aquilo. E tudo flui a partir daí. É a descoberta e o estabelecimento de uma identidade exclusiva. A maioria das políticas extremistas decorre desta posição. Todos os países possuem este elemento que deseja definir a totalidade da aventura nacional em termos de uma identidade muito específica”. E, de um modo mais geral, o homem que, em The Future (1992), cantaria “Give me crack and anal sex, take the only tree that's left and stuff it up the hole in your culture, give me back the Berlin wall, give me Stalin and St. Paul, I've seen the future, brother, it is murder”, explicaria: “Não me considero um pessimista. Um pessimista é alguém que está sempre à espera que chova. Eu estou encharcado até aos ossos”. (continua)
26 December 2013
28 August 2011
A ETIQUETA
Kate & Anna McGarrigle - Tell My Sister
Paira sobre a folk uma espécie de aura de santidade que, desde sempre, tem muito a ver com um rosário de “bons valores” partilhados – com óptimas e péssimas razões – por um considerável número de almas no mundo inteiro: o regresso à “essencialidade” e à “pureza” mais ou menos rurais que, supostamente, as gigantescas metrópoles esqueceram e aniquilaram; a expressão verdadeiramente “autêntica” do espírito de povos e grupos sociais, esmagada pelos demónios do cosmopolitismo; e, em particular na música anglo-americana, a intervenção político-social que, desde o "folk-revival" dos anos 50/60 do século passado, na oposição à guerra do Vietname e através da participação nos movimentos dos direitos cívicos, lhe ofereceu a medalha de respeitabilidade que se conquista na luta pelas causas justas.
Significa isto que, independentemente da muita e excelente música (acústica e eléctrica) que, das diversas vagas folk, emergiu, foi sempre muito mais fácil dispor, à partida, de pontos-extra de credibilidade se a etiqueta folk viesse associada (de que o "hype" ainda recente do "free-folk" é esclarecedor exemplo). O que, como o caso das irmãs canadianas, Kate e Anna McGarrigle, demonstra, não é, necessariamente, sinónimo de sucesso comercial nem de relevância artística. Pequeno culto de alguns (posteriormente, algo reavivado pelo facto de Kate – falecida no ano passado – ser mãe de Rufus e Martha Wainwright) e com venerandos padrinhos e fãs da estirpe de Joe Boyd, Judy Collins, Nick Cave ou Lou Reed, a verdade é que a música das manas McGarrigle (de que, agora, se reeditam os dois primeiros álbuns - Kate & Anna McGarrigle, 1975, e Dancer With Bruised Knees, 1977 - acompanhados dos proverbiais bónus) raramente foi mais do que uma amável destilação pop/folk/country em registo de harmonias vocais de catequese, límpidas, cristalinas e, na maioria das vezes, sumamente banais e repetitivas.
(2011)
Kate & Anna McGarrigle - Tell My Sister
Paira sobre a folk uma espécie de aura de santidade que, desde sempre, tem muito a ver com um rosário de “bons valores” partilhados – com óptimas e péssimas razões – por um considerável número de almas no mundo inteiro: o regresso à “essencialidade” e à “pureza” mais ou menos rurais que, supostamente, as gigantescas metrópoles esqueceram e aniquilaram; a expressão verdadeiramente “autêntica” do espírito de povos e grupos sociais, esmagada pelos demónios do cosmopolitismo; e, em particular na música anglo-americana, a intervenção político-social que, desde o "folk-revival" dos anos 50/60 do século passado, na oposição à guerra do Vietname e através da participação nos movimentos dos direitos cívicos, lhe ofereceu a medalha de respeitabilidade que se conquista na luta pelas causas justas.
Significa isto que, independentemente da muita e excelente música (acústica e eléctrica) que, das diversas vagas folk, emergiu, foi sempre muito mais fácil dispor, à partida, de pontos-extra de credibilidade se a etiqueta folk viesse associada (de que o "hype" ainda recente do "free-folk" é esclarecedor exemplo). O que, como o caso das irmãs canadianas, Kate e Anna McGarrigle, demonstra, não é, necessariamente, sinónimo de sucesso comercial nem de relevância artística. Pequeno culto de alguns (posteriormente, algo reavivado pelo facto de Kate – falecida no ano passado – ser mãe de Rufus e Martha Wainwright) e com venerandos padrinhos e fãs da estirpe de Joe Boyd, Judy Collins, Nick Cave ou Lou Reed, a verdade é que a música das manas McGarrigle (de que, agora, se reeditam os dois primeiros álbuns - Kate & Anna McGarrigle, 1975, e Dancer With Bruised Knees, 1977 - acompanhados dos proverbiais bónus) raramente foi mais do que uma amável destilação pop/folk/country em registo de harmonias vocais de catequese, límpidas, cristalinas e, na maioria das vezes, sumamente banais e repetitivas.
(2011)
24 January 2010
COISAS POUCAS E BOAS
The Magnetic Fields - Realism
Não tínhamos reparado mas, aparentemente, nos domínios da canção tal como Stephin Merritt a pratica, estava em curso uma trilogia. Mais exactamente, uma "no synth trilogy". Após o trimonumental 69 Love Songs (1999), ter-se-á alojado na cabeça do diminuto génio uma ideia de – com modulações diversas – declinar a antiquíssima pequena forma de "words & music" sem recorrer às maquinetas de teclados portáteis, das quais, tanto nos Magnetic Fields como nos Gothic Archies, Future Bible Heroes ou The 6ths, ele fizera generoso uso. Tudo terá começado, sorrateiramente, com i (2004), um belo tomo do cânone-Merritt que, não anunciando a coisa como bíblica separação de águas, varria os sintetizadores para baixo do tapete. Distortion, de 2008, passou só como exercício de estilo dedicado a submeter o requintado songwriting à trituradora sonora que os Jesus & Mary Chain haviam convertido ao dogma-pop em Psychocandy. É, agora, com Realism, que ele revela o objectivo último da conspiração estética:
"Pensei em Distortion e Realism como um par de álbuns complementares. Quis que um se chamasse 'True' e, o outro, 'False'. Mas nunca consegui decidir qual seria o verdadeiro e o falso. Ambos têm a ver com a noção de verdade e falsidade no que respeita à gravação e à música. Não particularmente no que se relaciona com os textos mas com a produção. Distortion foi tão longe quanto era possível na direcção de um noise-pop estilizado, o que é, possivelmente, o limite da estilização do rock, antes de se transformar em outra coisa qualquer. Realism é folk, apesar de nunca ter tido muita paciência para o folk. Não aturo o som de uma guitarra acústica mais do que três minutos de cada vez”. Os modelos foram, então, o "variety folk", mais ou menos psicadélico, de Judy Collins e Judy Henske, "sem nenhuma ideia do que virá a seguir, como eu gosto numa programação de rádio. Sem grandes proclamações. Tenho dificuldade em ouvir Beethoven. Prefiro coisas pequenas, subtis, nada de épicos e obras-primas". Realism, então, é isso mesmo: ínfimos momentos de magnífica maldade ("I want you crawling back to me, down on your knees, like an appendectomy sans anaesthesia" ou "I could say I want you, that would be a bore, maybe in a font you've never seen before") colados a miniaturas esqueleticamente acústicas de ukulele, guitarra harpa, tuba, dulcimers, piano de brinquedo, banjo, bandolim, cordas de câmara e outras falsas ingenuidades avulsas, de salão de baile pobre e, educada e perversamente, à beira do abimo. Coisas poucas e boas.
(2010)
The Magnetic Fields - Realism
Não tínhamos reparado mas, aparentemente, nos domínios da canção tal como Stephin Merritt a pratica, estava em curso uma trilogia. Mais exactamente, uma "no synth trilogy". Após o trimonumental 69 Love Songs (1999), ter-se-á alojado na cabeça do diminuto génio uma ideia de – com modulações diversas – declinar a antiquíssima pequena forma de "words & music" sem recorrer às maquinetas de teclados portáteis, das quais, tanto nos Magnetic Fields como nos Gothic Archies, Future Bible Heroes ou The 6ths, ele fizera generoso uso. Tudo terá começado, sorrateiramente, com i (2004), um belo tomo do cânone-Merritt que, não anunciando a coisa como bíblica separação de águas, varria os sintetizadores para baixo do tapete. Distortion, de 2008, passou só como exercício de estilo dedicado a submeter o requintado songwriting à trituradora sonora que os Jesus & Mary Chain haviam convertido ao dogma-pop em Psychocandy. É, agora, com Realism, que ele revela o objectivo último da conspiração estética:
"Pensei em Distortion e Realism como um par de álbuns complementares. Quis que um se chamasse 'True' e, o outro, 'False'. Mas nunca consegui decidir qual seria o verdadeiro e o falso. Ambos têm a ver com a noção de verdade e falsidade no que respeita à gravação e à música. Não particularmente no que se relaciona com os textos mas com a produção. Distortion foi tão longe quanto era possível na direcção de um noise-pop estilizado, o que é, possivelmente, o limite da estilização do rock, antes de se transformar em outra coisa qualquer. Realism é folk, apesar de nunca ter tido muita paciência para o folk. Não aturo o som de uma guitarra acústica mais do que três minutos de cada vez”. Os modelos foram, então, o "variety folk", mais ou menos psicadélico, de Judy Collins e Judy Henske, "sem nenhuma ideia do que virá a seguir, como eu gosto numa programação de rádio. Sem grandes proclamações. Tenho dificuldade em ouvir Beethoven. Prefiro coisas pequenas, subtis, nada de épicos e obras-primas". Realism, então, é isso mesmo: ínfimos momentos de magnífica maldade ("I want you crawling back to me, down on your knees, like an appendectomy sans anaesthesia" ou "I could say I want you, that would be a bore, maybe in a font you've never seen before") colados a miniaturas esqueleticamente acústicas de ukulele, guitarra harpa, tuba, dulcimers, piano de brinquedo, banjo, bandolim, cordas de câmara e outras falsas ingenuidades avulsas, de salão de baile pobre e, educada e perversamente, à beira do abimo. Coisas poucas e boas.
(2010)
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