21 October 2024

vhm numa casca de noz

"As portas que abriam os romances mudaram de sítio, recuando hoje para lugares suspeitos ao serviço de uma ficção muitas vezes retumbante, autocomplacente e viscosa. As tramas avançam voltadas para dentro, sonham-se a si próprias, semeando aqui e ali pequenos costumes narcísicos e novelos biográficos suficientemente dissimulados para consolar as massas mais acríticas. (...) Perdem-se, assim, entre frases delicodoces, pequenas genuflexões e motivos que menorizam qualquer leitor, oferecendo um ardil xaroposo em contínua decomposição de açúcares, que nada mais provoca do que o enfileirado movimento de moscas e formigas". (Valter Hugo Mãe - O literato como pastor evangélico; sugerido nesta caixa de comentários)


(sequência daqui) JL - O seu interesse pelo uso da tecnologia como ferramenta indispensável no trabalho de criação foi sempre muito evidente. Actualmente, com os mais recentes desenvolvimentos no campo da Inteligência Artificial, continua a pensar do mesmo modo em relação a ela? 

    LA - Adoro a IA, usei-a imenso em Amelia. Particularmente, os modelos de linguagem do Machine Learning Institute, em Adelaide, na Austrália, onde sou artista residente. Tudo o que eu, desde sempre, escrevi, gravei ou disse foi alojado num supercomputador. O que me permitiu, de certo modo, colaborar comigo mesma. É uma ideia muito interessante, com imenso potencial para dilatar os limites da actividade artística. Por outro lado, deixei de ser tão optimista quando me apercebi que a realidade começou a transformar-se em algo bizarro, opcional. A IA pode ser-nos muito útil mas teremos de estar muito atentos ao caminho por onde nos irá conduzir e aquilo que, por aí, poderemos ir perdendo. E também me arrepia o facto de ela fazer parte da enorme e aterradora cultura da vigilância que rasteja atrás de nós e do elevadíssimo e perigosíssimo potencial para gerar desinformação que contém. 

    JL - A "sua" IA foi utilizada recentemente para a escrita dos textos de canções do último álbum dos Loma, How Will I Live Without A Body?, a partir de imagens fotográficas. De quem é, então, a autoria destes textos? 

    LA - Os algoritmos que participaram na criação desses textos foram treinados na minha escrita. Trata-se, portanto, da minha personagem IA. Tanto pode resultar muito bem como assemelhar-se ao que escreveria um chimpanzé agarrado a um teclado. No fundo, nem é muito diferente da minha própria escrita: a maior parte vai parar ao lixo e há uma coisa aqui, outra ali, que merece ser salva. (segue)

18 October 2024

Parece que isto era uma cena católica


Edit (18:50) - novos contributos para a hagiografia

(sequência daqui) JL - Por outro lado, a história trágica de Amelia Earhart, contém uma série de elementos quintessencialmente americanos, não é verdade?

 
     LA - Absolutamente! Ela era apaixonada pela velocidade e pela tecnologia. A ideia de poder estar a falar com as mulheres americanas motivava-a também muito. E casou com o assessor de imprensa: em cada pausa da viagem, falava com jornalistas contava-lhes detalhes, telefonava, enviava telegramas, escrevia o diário de bordo. Deixou um enorme registo da viagem! Mas tudo isto é o que nós fazemos: tecnologia, velocidade e guerra. Vendemos armas ao mundo. A II Guerra Mundial realmente acabou? Olhamos à volta - Israel, Rússia, Ucrânia - e pensamos que, provavelmente, durante algum tempo terá arrefecido um bocadinho mas agora parece estar a aquecer outra vez. (segue para aqui)

17 October 2024

Portanto, ainda que só temporariamente, a seita neo-facha (e tudo o que, entretanto, fez e disse) não existe?

14 October 2024

A "auto-ajuda" psicocoisa 

(via OMQ)

Andreas Gundlach - Semiconductor’s Masterpiece


(sequência daqui) JL - Trabalhar com uma orquestra transformou de alguma forma o seu modo habitual de encarar a música, o spoken word e a relação entre ambos? A fronteira entre a fala e o canto manteve-se mas, aqui, permitindo que, como nunca antes, este fosse invadido pela orquestra...
 

    LA - Trabalhar com orquestras é fascinante porque damos connosco a ter de lidar com aquele imenso corpo sonoro orgânico. É como uma espécie de paisagem. Se lhe acrescentarmos a dimensão tecnológica, abre-se um universo de possibilidades ainda maior: tanto permite concentrar-nos em detalhes ínfimos como alargar o ângulo sobre vastos espaços abertos. Além disso, também cometemos algumas heresias como, por exemplo, gravar baixo e bateria em último lugar, ao contrário do que é habitual. Usei a história de Amelia Earhart como estrutura narrativa, incorporando simultaneamente referências ao voo, ao desaparecimento e à comunicação.

    JL - Amelia reflecte, mais uma vez, o seu interesse na combinação de elementos pessoais, históricos e míticos na criação de peças totalmente contemporâneas mas de modo algum prisioneiras do seu tempo...  

  
     LA - A Amelia Earhart é, simultaneamente, uma heroína e um mito. Uma figura de exploradora corajosa que pretendeu romper limites mas que, ao mesmo tempo, se deixou capturar no espaço entre o sucesso e a extinção. Há qualquer coisa de muito perturbador nas últimas transmissões de rádio dela (um motivo que pontua todo o álbum), enviadas para o vazio, fragmentos de som que ficaram perdidos no ar, à deriva na vastidão. A voz dela estava lá mas inatingível. E falava-nos do medo de se sentir irremediavelmente perdida, de, pela quebra de comunicação, desaparecer sem deixar rasto. (segue para aqui)