(sequência daqui) O anátema de maléfica harpia japonesa responsável pela desagregação dos Beatles – depois bastamente desmontado – decorria, em parte, do currículo anterior de Yoko: filha de abastado banqueiro japonês que, após o pesadelo da 2ª Guerra Mundial, se havia mudado para Nova Iorque, inicialmente devota de Schoenberg e Alban Berg, rapidamente se envolveria com os neo-dadaístas do Fluxus, convertendo o seu loft no nº 112 de Chambers Street em espaço para concertos e performances (com Marcel Duchamp e Peggy Guggenheim entre os convidados) de La Monte Young, Joseph Byrd – posteriormente, motor criativo dos United States of America –, John Cage e Henry Flynt. O explosivo cocktail de arte conceptual, Dada, poesia concreta, arquitectura, performance e literatura assemelhava-se demasiado a uma ameaça ao equilíbrio colectivo dos, até aí, quatro despreocupados “mop tops” que, contudo, por essa época, com Revolver, até pareciam ter-se tornado particularmente permeáveis à sedução de todo o espectro de experimentalismos. Yoko, porém, em algum ponto, pisara uma linha vermelha. (segue para aqui)
(sequência daqui) Gravado no primeiro semestre deste ano, num estúdio montado em casa de Caetano, no Rio de Janeiro, com produção dele próprio e de Lucas Nunes (da banda Dônica), Meu Coco interrompe o silêncio de 9 anos após Abraçaço com 12 canções, pela primeira vez todas da sua autoria. Como se isso fosse necessário, à “Splash” faz questão de reafirmar “Sou tropicalista”. Mas, se dúvidas houvesse, bastaria escutar a lindíssima "Ciclâmen do Líbano" (que ele pediu a Morelenbaum que trajasse de “freaseado do Médio Oriente salpicado de Webern” – na verdade, mais médio-oriental do que Webern), a pulsação submersa de "Anjos Tronchos" (“Palhaços líderes brotaram macabros, no império e nos seus vastos quintais“), a provocação baiana de "Pardo" (“Nêgo, seu rosa é mais rosa que o rosa da mais rosa rosa”) ou "Você-Você", fado da “AmericÁfrica, entre miséria e mágica” (em dueto com Carminho e com o bandolim de Hamilton de Holanda travestido de guitarra portuguesa), para que a sua natureza profunda imediatamente se revelasse.
Em O Resto é Ruído, Alex Ross conta que, fugindo ao regime nazi (que considerava a sua música “degenerada”) e emigrado nos EUA desde 1934, Arnold Schoenberg, a partir de determinado momento, “passou por aquilo a que chamou um ‘arrebatamento do desejo da tonalidade’. (...) Como professor, manteve-se muito rigoroso e exigente, mas não impunha os seus métodos aos alunos da UCLA. Ao louvar a arte sinfónica tonal de Sibelius e Shostakovich, que poderia esperar-se que deplorasse, provocava dúvidas. Quando um dos alunos começou a atacar Shostakovich, Schoenberg mandou-o calar e disse: ‘Esse homem é um compositor nato’. Uma ou duas vezes apanhou a turma de surpresa ao anunciar que ‘ainda falta escrever muito boa música em Dó maior’”. Por outras palavras, o compositor que – com Alban Berg e Anton Webern – desarticulara o sistema das hierarquias tonais que caracterizava toda a música erudita europeia anterior e a conduzira pelas vias do atonalismo e do serialismo dodecafónico, não era, afinal, visceralmente avesso a uma linguagem sonora mais tradicional.
No último número da “Mojo”, o tema volta duas vezes â baila pelos mais improváveis atalhos. Em entrevista a Paddy McAloon (Prefab Sprout) a propósito da reedição de I Trawl The Megahertz (2003) – na qual este revela que Cinqué Lee, irmão de Spike Lee, pretende realizar um filme musical baseado nas canções dos Sprout –, a certa altura, McAloon explica que, desde o início, tinha gostos musicais muito amplos: “Recordo-me de comprar, aqui em Durham, o Pássaro de Fogo, de Stravinsky, que imaginava ser algo que os Television poderiam ter feito”. E associava isso a uma incapacidade natural para “escrever uma canção convincente utilizando ferramentas tão básicas como os acordes de Dó, Fá e Sol 7. Se escutarem ‘I Never Play Basketball Now’ (de Swoon, 1984), descobrem 50 ou 60 formas diferentes". Em síntese, “o mais difícil para mim sempre foi e continua a ser – embora já não tanto – repousar sobre um acorde de Dó maior”. Meia dúzia de páginas antes, num perfil de Trevor Horn – “the man who invented the eighties", fundador da ZTT Records, co-criador dos Art Of Noise, produtor de Malcolm McLaren e de Frankie Goes To Hollywood –, ele confessa que, quando morrer, embora não seja capaz de adivinhar como será o Além, “se tiver de ir para algum lado, gostaria de ficar a viver num acorde de Dó maior de sétima, algures. Parece-me um sítio agradável”. Que é como quem diz, um porto de abrigo seguro faz sempre falta.
15 May 2018
IMERSÃO
The Tortoise Recalling The Drone of The Holy Numbers as They Were Revealed in The Dreams of The Whirlwind and The Obsidian Gong and Illuminated by The Sawmill, The Green Sawtooth Ocelot and The High-Tension Line Stepdown Transformer é uma das peças que The Theatre of Eternal Music, durante os anos 60, apresentou na Costa Leste dos EUA e na Europa. Fundado por La Monte Young e de portas abertas a personagens de notabilidade futura variável (John Cale, Marian Zazeela, Angus MacLise, Rhys Chatham, Tony Conrad, Billy Name, Jon Hassell, Terry Riley), a extensão dos títulos das composições estava em directa relação com a sua duração: horas/dias de imersão sensorial num oceano de harmónicos e infinitos "drones" em lentíssimo processo de transformação que, a partir de 1966, teriam lugar na Dream House, uma instalação permanente de luz e som, “organismo vivo com vida e tradição próprias” no qual os músicos habitariam e produziriam som de acordo com um calendário de dias de 27 horas.
Primeiro explorador do minimalismo norte americano – com Philip Glass, Steve Reich e Terry Riley –, Young começou pelo jazz (saxofonista ao lado de Ornette Coleman e Don Cherry), aproximou-se da música contemporânea, em Darmstadt, com Stockhausen, e alimentou-se de Bartók, Stravinsky, Debussy, Pérotin, música clássica indiana, Schoenberg e Webern. Através de John Cage, conheceu o Fluxus, de George Maciunas, e dedicou-se às provocações neo-dadaístas: criar música a partir de sugestões tais que “acender uma fogueira”, “soltar borboletas na sala”, “atravessar uma parede com o piano” ou, em Composition 1960 #7, “sustentar um Si e um Fá sustenido durante muito tempo”, semente de tudo quanto viria a seguir. Sem grande surpresa, John Cale reconheceria quão decisiva fora a sua contribuição para a sonoridade dos Velvet Underground e declará-lo-ia “a melhor parte da minha educação e a introdução à disciplina em música”, Brian Eno classificaria X for Henry Flynt, de Young, como “a pedra angular de tudo aquilo que fiz”, e Lou Reed confessava a imensa dívida de Metal Machine Music para com La Monte. Outro devedor é Peter Kember, aliás, Sonic Boom, ex-elemento dos Spacemen 3, que, em Setembro do ano passado, juntamente com Etienne Jaumet (Zombie Zombie) e Celine Wadier, cantora e executante de tambura, na qualidade de Infinite Music, apresentaram no Teatro Maria Matos, A Tribute To La Monte Young, agora publicado pela Fire Records. Três peças, 46 minutos. Pelo padrão lamontiano, um "single".
David Bowie's graduation speech at Berklee College of Music: “What I really enjoyed the most, was the game of 'what if?' What if you combined Brecht-Weill musical drama with rhythm and blues? What happens if you transplant the French chanson with the Philly sound? Will Schoenberg lie comfortably with Little Richard? Can you put haggis and snails on the same plate? Well, no, but some of the ideas did work out very well.” (1999)
Leonard Rosenman até poderá ter ganhado dois Óscares atribuídos aos arranjos que compôs para Barry Lyndon (1975) e Bound For Glory (1976) mas nem assim o seu nome se converteu num daqueles que vêm imediatamente à memória (Bernard Herrmann, Miklos Rosza, Max Steiner) quando se pensa nos clássicos da "film music" dos anos de ouro de Hollywood. E, no entanto, ter sido responsável pela primeira partitura para uma longa-metragem que incluía linguagem serial dodecafónica – The Cobweb, de Vincente Minnelli, 1955 – não foi proeza menor. Um dos seus mestres, Arnold Schoenberg (Rosenman estudaria também com Luigi Dallapiccola e Roger Sessions), duas décadas antes, desperdiçaria essa oportunidade, quando, convidado a compor para The Good Earth (1937), exigiu ao produtor Irving Thalberg que nem uma única nota escrita por ele pudesse ser mudada. Pelo que, nesse particular marcador histórico, Rosenman apenas seria antecedido por Scott Bradley, com a "incidental music" que criou para The Cat That Hated People, um "cartoon" de 7 minutos realizado por Tex Avery em 1948.
Não é, por isso, de admirar que, ao aperceber-se que a sua jovem higienista oral, Linda Perhacs, era uma compositora de algum talento, Leonard Rosenman se tenha oferecido para lhe produzir o álbum de estreia – Parallelograms, 1970 – e, em particular na canção-título, haja desempenhado papel idêntico ao que Joseph Byrd (do efémero e nunca suficientemente louvado colectivo The United States Of America), três anos atrás, assumira para "Crucifixion", de Phil Ochs, em Pleasures Of The Harbor: transfigurar peças, originalmente de matriz folk, em assombrosas explosões contemporâneas de dissonância e electrónica. À época, Parallelograms foi tão mal tratado pela editora (promoção nula, mistura inqualificável, ordem das canções trocada na contracapa) que passou inteiramente despercebido, embora gerando o proverbial culto entre adeptos de obscuridades. Foram necessários, porém, 44 anos para que, redescoberta por Julia Holter, Perhacs dispusesse, por fim, de uma oportunidade para gravar o segundo disco, The Soul of All Natural Things. E uma inamovível evidência se impõe: a imensa falta que faz um Rosenman para converter uma sequência de doces afagos sonoros trasladados da inefável era de Aquário em algo mais substancial do que uma "new age" entradota.
Quando, no início da década de 70 do século passado, os dois primeiros álbuns de Bill Fay foram publicados, alguém terá dito, convictamente, ao seu manager da altura, Terry Noon, que era “apenas uma questão de tempo até que a música dele fosse reconhecida”. Não podia estar mais certo. Embora devesse ter acrescentado a medida exacta desse tempo: à volta de quarenta anos. Na realidade, entre o assombroso Bill Fay (1970) e o actual Life Is People, as quatro décadas que decorreram não foram integralmente vazias na biografia musical de Fay: no ano a seguir à estreia, gravou Time Of The Last Persecution e o seu reiterado insucesso comercial (“vendeu cerca de 2000 cópias”, confessa, hoje, Fay, provavelmente, desconhecendo que, no eBay, as prensagens originais oscilam entre os 400 e os 1000 e tal dólares) valeu-lhe o fim do contrato com a Deram/Decca. O rosto hirsuto de sonâmbulo profeta bíblico do fim dos tempos que exibia na fotografia da capa terá estado na origem da lenda menor que, a partir daí, emergiu: qual Syd Barrett ou Salinger britânico, Bill Fay teria desertado da sociedade e abraçado uma vida de eremita antisocial, curando males do corpo e da mente. Nada mais longe da verdade: pura e simplesmente, ele que nunca tinha autenticamente sonhado com uma carreira de popstar, limitou-se, pacatamente, a regressar a uma existência das 9 às 5, trabalhando como operário fabril, jardineiro ou trabalhador rural. E continuou a compor, procurando, como diz ainda agora, à beira dos 70 anos, “descobrir os mistérios daquela longa sequência de teclas brancas e pretas” que lhe pudessem revelar os motivos por que não conseguia largar os discos de Bob Dylan e de Schoenberg e lhe fizessem ser capaz de explicar a admiração que "See Emily Play", dos Pink Floyd, lhe provocava.
Entretanto, aqueles dois únicos álbuns gravados ambos em sessões únicas de estúdio, iam conquistando fãs. Tanto o primeiro – coisa da estatura de Goodbye And Hello, de Tim Buckley, ou de American Gothic, de David Ackles –, envolto nos vertiginosos arranjos orquestrais de Mike Gibbs (“quando cheguei ao estúdio imaginei que tinha entrado numa outra versão da 5ª do Beethoven”), como Last Persecution, dividido entre uma escrita mais convencional e as labaredas da guitarra "free" de Ray Russell, juntaram nos louvores Jim O’Rourke, Nick Cave, Marc Almond, Jeff Tweedy (Wilco) e David Tibet que, em mera genuflexão ou de forma mais expedita, cuidaram de, a conta gotas, ir retirando uma ou outra pérola do baú. Assim foram surgindo, em 2004, From the Bottom of an Old Grandfather Clock, uma óptima colecção de demos de entre 1966 e 1970 capaz de envergonhar Sgt. Peppers, Tomorrow, Tomorrow & Tomorrow (2005) e Still Some Light (2010) – no total, 63 canções oscilando entre registos artesanais e outros que poderiam figurar num "best of" de Robert Wyatt, Peter Hammil e Randy Newman, fossem eles como a Santíssima Trindade – e, desta vez, Life Is People. Mais dylaniano (e, talvez, também, mais newmaniano) do que antes, com um timbre de voz, aqui e ali, também próximo de Peter Gabriel, é um ciclo de canções apaziguadas e apaziguadoras que faz lembrar as daquela época em que Nick Cave se assumiu como “The Good Son”: o mundo pode ser um vale de lágrimas mas, algures, existe sempre uma "bridge over troubled water" (e o recorte de hino cristão comunitário atravessa, por vezes, excessivamente, todo o disco) através da qual se chega a mais verdes pastagens. Não será a obra-prima de Fay mas, ainda assim, é um belíssimo álbum.
19 August 2012
ÁGUA E AZEITE
Dirty Projectors - Swing
Lo Magellan
David Longstreth é o tipo que, como quem
fala do tempo, explica que a súbita aparição orquestral a meio de "Dance For
You" é apenas ele “a tentar compreender como raio o Ligeti, em Atmosphères,
conseguiu extrair aquelas texturas insanas e futuristas de uma orquestra
igualzinha às do século XIX”. E que, a seguir, revela que vêna ponte de "About To Die" “uma pobre filha
bastarda de Verklärte Nacht, do Schoenberg”, através da qual procurou atingir
a mesma sensação “macabra, mórbida e aterradora” para que também Monster, de
Kanye West, e Thriller, de Michael Jackson, contribuiram enquanto
catalizadores. Ah, e ainda em "Dance For You", a guitarra e as cordas têm uma
dívida a pagar a "Mambo Sun", dos T. Rex. Para não falar da conta calada que
deverão somar os empréstimos pedidos aos Run DMC, NWA ("Gun Has No Trigger"),
Nirvana e Lil Wayne ("Offspring Are Blank"), Peter, Paul & Mary ("Just From Chevron") e Neil Young ("Irresponsible Tune"). Estamos,
então, perante o quase perfeito protótipo de banda retromaníaca de que falava
Simon Reynolds?
Errado. Erradíssimo. Embora de forma
completamente diferente, poderá tratar-se, sim, de caso idêntico ao dos Field
Music: outro exemplo acabado de que a aventura prog não devia, inevitavelmente, ter acabado em tragédia. Só mais uma
espreitadela pelo buraco da fechadura do cérebro de Longstreth: em Abril
passado, na página online da Brown
University, de Providence, descobria-se que, a pedido de David Longstreth,
Willis Monroe e Zack Wainer, estudantes de Assiriologia, se haviam dedicado a
traduzir "Gun Has No Trigger" para acadiano, tendo Monroe gravado o texto em
escrita cuneiforme. Qual a razão? Exactamente a mesma que para o "cameo" de Ligeti em "Dance For You":
“Tenho uma enorme curiosidade em relação a imensas coisas. Sou um estudante. E
intriga-me o problema e a dificuldade da tradução para idiomas que não existiam
há milhares de anos”.
Chegámos ao ponto: aquilo de que a música
dos Dirty Projectors se ocupa é de, sob um ângulo que tem tanto de calculado
como de "stream of consciousness" – nas
melodias, nos textos, nos arranjos, na instrumentação –, traduzir para uma
linguagem ainda sem nome, inúmeros fragmentos da história sonora (mais ou
menos) recente, apostando tudo no que, por aí, se ganha e se perde, autorizando
e encorajando uma estratégia de construir edifícios aparentemente destinados ao
colapso. Como quem insiste em misturar água e azeite... e consegue. Poderia ser
outra qualquer mas a pérola "See What She Seeing" é assaz esclarecedora:
burburinho rítmico de "drum’n’bass" de
vão de escada (na verdade, caixa de guitarra acústica percutida) para um lado,
voz solista e coros daquele recorte “africano” que Paul Simon e os Vampire
Weekend preferem para outro, riff curvo para cima, secção de cordas para baixo,
e, algures, ninguém será capaz de garantir exactamente onde, aparece uma
canção. Sem esforço evidente, o fulano que escutava os álbuns dos Beatles,
primeiro, na coluna direita e, depois, na esquerda, e mais óbvio candidato a
Zappa contemporâneo com sensibilidade pop (não excluir, à cautela, a hipótese tUnE-yArDs),
salta do "high life" para o
psicadelismo à la Jefferson Airplane,
de "Strawberry Fields" para “the kind of silence that can swallow sound”, do
esgotamento nervoso sónico para erráticas canções-origami e, no processo
comandado por uma ideia – “You’d see a million colours if you really looked” –,
após o já magnífico Bitte Orca (2009), inventa
música como nunca antes a havíamos ouvido.
16 August 2012
Schoenberg - Verklärte Nacht
17 August 2011
MASSACRE
GNR - Vôos Domésticos
Não deveriam existir grandes preconceitos nem oposições de princípio perante a hipótese de versões do Pierrot Lunaire, de Schoenberg, para cavaquinho, gamelã balinês e "tin whistle", ou do reportório dos Led Zeppelin para "consort" de sopros renascentista. Em qualquer dos casos, em última análise, o resultado final do
empreendimento estético haveria de ser sempre decisivo e o excessivo respeitinho relativamente à hipotética degola das vacas sagradas nunca deveria ultrapassar a condição de mera nota de rodapé. Já se escutaram exercícios de violenta iconoclastia (cometidos, por exemplo, sobre Kurt Weill, Cole Porter ou Burt Bacharach) dos quais imenso bem veio ao mundo e muitos outros, carregados de cerimónia e infinita veneração, que a História da música, mui justamente, ignorou. Por maioria de razão, quando a iniciativa da profanação parte dos próprios autores, mais forte será a legitimidade.
Acontece que nada disto serve para absolver ou ser usado como atenuante relativamente ao massacre que, perante todos nós, e com o previsível sucesso comercial, os GNR acabam de perpetrar sobre catorze temas do seu património privado. Recorde-se: nos seus melhores momentos, a pop-rock portuguesa deve-lhes algumas das mais preciosas jóias da sua coroa numa quase perfeita síntese entre new wave, experimentalismo, engenho literário no formato-canção e insolência pop. Reencadernadas por eles mesmos, por ocasião do 30º aniversário da banda, exibem todos os sinais de uma cirurgia plástica que correu desastrosamente mal: as arestas e “imperfeições” lustrosa e arrepiantemente polidas, os arranjos vertidos para um idioma inexplicavelmente de bar de hotel, a pica original castrada e “sofisticadamente” amansada. Resta o consolo de que, pelo Outono, a discografia do grupo, tal como as muito boas memórias a recordam, será integralmente reeditada.
(2011)
28 October 2009
QUANDO A CRÍTICA DE MÚSICA RASTEJA
NAS "QUATRO LINHAS" DA FUTEBOLEIRICE
"Faltou a 'Três Cantos' * um Jorge Jesus. Alguém que conseguisse agarrar nas qualidades de três craques e os pusesse a jogar juntos, concentrados num único objectivo. Ora, as jogadas individuais (ou seja, os momentos em que eles actuaram a solo) foram sempre melhores do que o colectivo, onde falhou a táctica e faltaram os automatismos, com cada um a ler as letras dos outros, originando imprecisões constantes e interpretações mais frágeis do que os joelhos de Mantorras. Sonhava-se com um Barcelona. Tivemos de nos contentar com um Real Madrid". (João Miguel Tavares na "Time Out")
A seguir, virão, certamente, as dissertações sobre o futebol total em Wagner e o corte das linhas de passe em Schönberg.
(e, não, não é a degola das vacas sagradas que aborrece)
* concerto de José Mário Branco, Sérgio Godinho e Fausto, na semana passada, no Campo Pequeno
(2009)
13 June 2008
PISAR (OU NÃO PISAR) O RISCO
Pianista de jazz já com respeitabilíssimo currículo noutros empreendimentos de feição iconoclasta realizados sobre obras de Wagner, Mahler e Schumann, Uri Caine propõe agora um revolucionário álbum de variações contemporâneas sobre as Variações Goldberg, de Bach, com recurso a DJ e coros.
Nesta sua reinterpretação das Variações Goldberg, a palavra-chave é, evidentemente, «variações». Um género que está profundamente enraizado na história da música clássica ocidental e do próprio jazz, mas que obriga a colocar uma pergunta: até que ponto é legítimo chegar num exercício de variações sobre outras variações que, para além do mais, são um dos momentos máximos da tradição musical europeia?
A princípio, pensei-as como um projecto para piano solo. Agarrei-me a essa ideia durante algum tempo mas, à medida que fui tocando com o grupo do álbum sobre Wagner, apeteceu-me seguir por essa via e ver o que poderia resultar daí. Quando a WDR se envolveu neste projecto, compreendi que tudo era possível. Poderia utilizar um coro, orquestra, um grupo de música antiga, o que quisesse, e, se o gravasse na Alemanha, ficaria quase de graça. Comecei por ficar assustado com a dimensão que isso assumia, mas acabei por compreender: se posso fazê-lo, porque não? A certa altura, dei comigo a imaginar listas do que poderia fazer. Uma das primeiras ideias foi compor cânones meus. Outra foi sugerir uma história da evolução do jazz. À medida que as sessões de estúdio se sucediam, percebi que pode haver muito boas ideias que não funcionam. Mas, sempre que me colocava um limite dizia-me também: e se, mesmo assim, eu arriscasse? Foi um processo de tentativa e erro. O momento de viragem aconteceu quando me dei conta de que, mesmo antes das gravações, havia quem não entendesse a ideia e era necessário incluir mais material original de Bach. Ainda que fosse tocado em sintetizadores idiotas, tinha de ser o ponto de partida compreensível. Agora poderá parecer um ponto de vista demasiado conservador. Poderia ter sido muito mais radical. Mas era importante encontrar algum equilíbrio.
Todas as suas últimas reinterpretações - de Mahler, Wagner e Schumann - foram dedicadas a compositores da tradição germano-austríaca. Há alguma razão especial para isso?
Não. É apenas a música que eu conheço desde os meus 15 ou 16 anos. Por essa altura, toda a gente odiava Wagner e dizia que era música nazi. Mas, quando comecei a olhar para as partituras, reparei que ninguém escrevia acordes assim antes de 1850. E pensei: «Quero lá saber do que vocês dizem, tenho de estudar isto!...» De qualquer modo, tanto nesse disco como nos outros, essa escolha «germânica» não teve nada de premeditado, aconteceu apenas assim.
Quando pegou nas Variações Goldberg, como é que decidiu quais as que deveria tratar mais ou menos «respeitosamente» e aquelas que iria retrabalhar de um modo radical?
Em primeiro lugar, gravei muitas versões de cada variação com diversos DJ, com o coro ou o quarteto de violas de gamba, por exemplo. Na verdade, até poderia ter sido interessante incluir cinco ou seis versões de cada variação que, na realidade, gravámos. Mas, através de um progressivo processo de eliminação, que também foi determinado pelas possibilidades de cada grupo de músicos ou cantores, procurei encontrar um ponto de equilíbrio em torno daquelas que eu tocaria ou que seriam abordadas pelos DJ. Também queria incluir variações em que os músicos de jazz tocassem o material de Bach com solos improvisados sobrepostos. Mas, depois de gravadas, à excepção das partes improvisadas, não me pareceram tão boas como quando era o ensemble barroco a tocar. Por isso, tive de ir fazendo ajustamentos e correcções de momento a momento.
Neste disco, qual é, afinal, o elemento estrutural que estabelece a ligação entre as variações de Bach e a sua releitura? É a grelha harmónica da ária inicial?
Fundamentalmente, sim. Mas também convém encarar isso com uma pitada de sal... Numa variação mais minimalista, em vez de pegar nos 32 compassos, escolhi apenas as quatro funções tonais de cada frase de oito compassos. Noutra peça como «Contrapunto» que é uma canção de «salsa», enxertei esses acordes na estrutura da canção e escrevi uma introdução que não tem nada a ver com eles. Nesse sentido, não estamos, de facto, a ouvir uma canção de 32 compassos mas a estrutura da canção articulada com a da salsa. Por vezes, também alterei o ritmo harmónico, de modo a que, inicialmente, os acordes se sucedessem muito rapidamente e, na parte intermédia, o andamento fosse duas vezes mais lento. Mas, de um modo geral - para além dessas ou de outras abstracções -, diria que 70% ou 80% seguem de perto o original. Não só de um ponto de vista literalmente musical como também na relação entre música de dança da época e música de dança actual, o humor de Bach e o meu, a componente religiosa ou as referências de Bach a outros compositores.
E há ainda aquele outro aspecto que Joseph Lanza refere em Elevator Music: escritas para atenuar o problema de insónias do Conde Kaiserling, as Variações Goldberg terão sido um dos primeiros exemplos de «easy listening»...
Claro. E é divertido que me fale nisso, porque eu queria mesmo que existisse uma variação que soasse como «muzak»! Não que eu goste muito de «muzak», mas brinquei um pouco com a ideia de fazer qualquer coisa à maneira do Esquível, que é um dos protótipos do «easy listening». Mas isso, juntamente com a ideia de gravar algo «exótico» ou com uma atmosfera «árabe», remete para a sua primeira pergunta: até onde deveria ir? Não quis fazer nada só porque sim.
Todas as versões excluídas - que, no total, poderiam ter dado origem a cinco CD - têm a ver com essa ideia de «não pisar o risco»?
Algumas sim. Mas outras tiveram a ver com o meu desejo de estabelecer contrastes. Por exemplo, um DJ poderia ter feito um trabalho magnífico mas, se a variação anterior fosse também com outro DJ, via-me obrigado a dizer: é uma pena mas, a seguir, tem de ser o coro. Foram decisões muito difíceis em que eu pensava «quero aproveitar isto mas não posso...»
Pode sempre publicar a Part II ou as «remixes» das Variações Goldberg...
Toda a gente me diz que não deveria fazê-lo... E, no entanto, podia, tenho gravações que nunca mais acabam... Há muito material novo. Se calhar, deveria tentar fazê-lo.
Curiosamente, as últimas obras de Bach, como a Arte da Fuga, a Oferenda Musical ou as próprias Variações Goldberg, que os seus contemporâneos - e os próprios filhos - encaravam como esteticamente conservadoras, foram aquelas que, nas gerações musicais posteriores e, em especial, no século XX, despertaram o maior interesse. Será, mais uma vez, aquela ideia de que os jornais de ontem só vão interessar às pessoas de depois de amanhã?
Sempre que alguém leva alguma coisa ao limite do possível, a revolta natural - neste caso, dos filhos contra o pai - é dizer não somos capazes de ir tão longe, por isso vamos mudar de paradigma. Procurar uma outra forma de expressão que, provavelmente, o próprio Bach achava demasiado simplista e, contrapontisticamente, demasiado tímida, popular e pouco profunda. Mas ele continuou a trabalhar nessa direcção enquanto a música progredia no sentido inverso, até aquele ponto em que, no século XX, Schoenberg se viu obrigado a justificar o que fazia com um novo sistema. O que é particularmente verdadeiro hoje, quando toda a música que permaneceu na memória colectiva está acessível. Podemos chegar a uma loja de discos e comprar a integral de Bach - que o próprio Bach nunca ouviu -, de Miles Davis, dos Beatles ou toda a música indiana. Apesar de adorar a música que estudávamos na universidade de Filadélfia, detestava que a atitude em relação ao jazz que eu tocava fosse tão snob ao ponto de o relegarem para o Departamento de Folclore.
Quando foi isso?
1976, 1977, acredite que por essa altura ainda era assim. Havia professores que gostavam de mim e me diziam «estás a desperdiçar o teu talento nessa merda». E eu dizia-lhes «mas qual merda? vocês sabem do que estão a falar? eu toco jazz no gueto, só a quatro quarteirões daqui, se vos parece uma coisa tão primitiva talvez não fosse mau irem até lá para saber como é... Lá porque são capazes de analisar Webern ou Schoenberg, isso não quer dizer que eles vos pertençam». Claro que essa análise é importante quando a música nos atinge a um nível instintivo do tipo gosto/não gosto e, depois, queremos compreender como isso funciona.
Uri Caine com o Dave Douglas Quintet
De contrário, é só autópsia: primeiro mata-se e depois analisa-se...
É isso mesmo. Sempre pensei assim. Quando há uma coisa a que reajo instintivamente quero saber porquê. E acabo por descobrir que tem apenas a ver com aqueles dois compassos e com aquela nota particular, naquele momento. Se ouvirmos os dois primeiros compassos da Variação 25, entramos instantaneamente noutro mundo. E, se os ouvirmos tocados pelo Glenn Gould, então já não regressamos... Há quem tente analisar as coisas a esse nível, mas aí eu já não sou capaz.
Outro aspecto interessante da personalidade de Bach era ele ser um devorador ávido da música da sua época, que tanto o fazia copiar compulsivamente as partituras de outros compositores - o que, no final da vida, o conduziu à cegueira - como o obrigava a enormes viagens a pé para os escutar ao vivo. Há também uma reprodução contemporânea dessa atitude nas suas variações, não há?
Muito mesmo. Uma das coisas que mais me impressionaram em Bach foi que, se, por exemplo, ele ouvia falar da música italiana, não se limitava a dizer «então, mandem-ma», mas fazia os possíveis e os impossíveis para ele próprio a copiar e fazer os seus próprios arranjos, de modo a poder interiorizá-la. Quando era miúdo, um dos meus professores também me mandava fazer isso. As Variações Goldberg são como a sua enciclopédia de fim de vida, onde ele dizia «isto foi o que eu aprendi acerca da música». Hoje eu posso misturar todos estes elementos diferentes, mas, para nós, nas variações de Bach, tudo soa apenas como música barroca. Na época, escutar uma canção de taberna no final deve ter sido um choque. Pode haver quem pense que é uma atitude demasiado ligeira afirmar que ele compôs as suas danças e eu componho as minhas. Mas o essencial foi garantir que tudo se articulasse com aquela harmonia.
Nestas suas variações há diversas linhas de força que caminham paralelamente: os cânones, as paródias à maneira de outros compositores, as danças, as intervenções dos DJ, os corais, a tal revisão da história do jazz... De que forma procurou estruturar tudo isso de modo a que daí resultasse a sua visão contemporânea das Variações?
Tive de utilizar a estratégia dos «file cards» do John Zorn. Ele organiza aquilo que compõe nesses «file cards» e depois procura uma ordenação que faça sentido. Fi-lo literalmente porque sentia que estava a perder o controlo da peça. A princípio tentei reproduzir a ordenação-tipo do próprio Bach mas, depois, decidi intercalar as peças de Bach com as minhas. Noutras vezes, procurei introduzir contrastes mais brutais e tive de reorganizar os «file cards».
Tanto nos seus álbuns sobre Mahler, Schumann, Wagner e, agora, Bach, como na série de «homenagens» de Hal Willner, nos discos de Zorn ou na própria estética das «remixes», tem-se afirmado um género quase autónomo. Parece-lhe algo que, no fundo, não é nada de novo na história da música, ou não denunciará isso uma certa desistência dos compositores de criar a sua própria música?
Parece-me que são ambas as coisas. Na melhor das hipóteses, é um diálogo com a tradição. Definitivamente ao contrário de Hal Willner e um pouco diferentemente de Zorn, não procuro demonstrar que possuo uma enorme colecção de discos, que conheço muita música e que vou juntar todas as referências possíveis porque é muito divertido e ainda ninguém fez nada igual... É o tipo de piada que se esgota depressa. A primeira vez que escutei os Naked City achei graça mas, depois, toda a gente em Nova Iorque começou a fazer o mesmo e só apetecia dizer chega, já ouvimos!... Por isso, é certo que o verdadeiro desafio é criar música que valha por si mesma, como se não existissem quaisquer pontos de referência. De contrário corre-se, realmente, o risco de se cair num beco sem saída onde já não se cria mais do que pastiches irónicos e distanciados, o que não me agrada muito. Eu gosto de me comprometer com o que faço, de sentir que o que faço é natural e que tem uma razão de ser. A questão está em saber até que ponto nos alimentamos duma tradição ou a subvertemos. O Irving Berlin, por exemplo, não gostava da forma como a Billie Holiday cantava as canções dele e, no entanto, são essas as versões que recordamos.
Como é que tem sido a reacção do «establishment» crítico mais académico aos seus álbuns?
A pior recepção que tive foi dos críticos americanos de música clássica. Não aceito, mas compreendo a razão por que se ofendem. Por motivos diferentes - «porquê recorrer a esse universo musical para descobrir temas sobre os quais improvisar?» -, também há críticos de jazz que se incomodam. Mas, de um modo geral, eu próprio me tenho surpreendido com as reacções positivas que tenho tido. Se, a princípio, hesitei em me aventurar por aí (apesar de esta ser música que eu conheço e estudo desde miúdo), compreendi que o facto de vir da tradição jazz não me deveria impedir de o fazer. Apesar de, na América - que toda a gente imagina como a pátria do jazz -, os músicos de jazz continuarem a ser extraordinariamente ignorados. Se andar pelas ruas de Nova Iorque e perguntar ao acaso quem foi John Coltrane, vai ver quantas pessoas lhe sabem responder...
E como é que pensa que será a reacção do público que nunca escutou as Variações de Bach? Não poderá acontecer (tal como quando ouvimos música árabe ou indiana que não somos capazes de contextualizar) que grande parte das suas intenções lhe escapem?
Com a forma das variações, temos, pelo menos, a justificação de que é suposto ser assim mesmo: quanto mais deslocados melhor. Mas também poderíamos fazer a mesma pergunta («tem a certeza que compreende o que está a ouvir?») ao público de uma execução das Variações de Bach. Claro que, não apenas na música, quanto mais conhecemos de algo, melhor o poderemos apreciar.