(sequência daqui) O método anterior de criação a partir de "samples" de documentários do British Film Institute e materiais educacionais e de propaganda que tinham sido a coluna vertebral de Inform-Educate-Entertain (2013), The Race For Space (2015) e do óptimo Every Valley (2017) foi, agora, substituído por jornadas de captura de sonoridades de rua, destinadas a serem articuladas em modo Bowie/Eno/Krautrock com as contribuições de Blixa Bargeld, Andreya Casablanca e da norueguesa EERA, no lendário Hansa Tonstudio. Todos os anjos e demónios que habitam a Meistersaal desceram sobre Bright Magic.
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17 November 2021
15 October 2019
HUMANO, DEMASIADO HUMANO
Façamos o esforço de acreditar que tudo se passou realmente assim, tudo foi espontâneo, nada foi encenado nem planeado: a 23 de Setembro, no blog “The Red Hand Files” – criado por Nick Cave há um ano para, sob o lema “You can ask me anything. This will be between you and me. Let’s see what happens”, estabelecer uma relação mais íntima e directa com os seus seguidores –, o Joe, de Bexhill-on-Sea (a uma hora de comboio de Brighton, onde Cave habita), casualmente, perguntou-lhe quando poderíamos esperar um novo álbum. E a resposta veio rápida e precisa, como um “press release”: “Caro Joe, pode contar com ele na próxima semana. Chama-se Ghosteen. É um álbum duplo. A primeira parte inclui oito canções. A segunda consiste de duas canções longas articuladas por uma peça de spoken word. As canções do primeiro álbum são os filhos. As do segundo são os pais. Ghosteen é um espírito migrante”. O Joe terá sufocado de felicidade mas ainda não suspeitava que, para além desse anúncio surpresa, contra todas as regras, não haveria singles prévios nem cópias enviadas antecipadamente para os media: o álbum iria ter uma estreia global, em directo, via YouTube, na noite de quinta-feira, 3 de Setembro.
Durante todo esse dia, até às 22 horas, apenas a imagem muda da capa: uma representação "kitsch" do Jardim do Éden, do “gospel artist”, Tom DuBois (“O artista visual não tem desculpa para não ser um crente convicto. (...) É simplesmente impossível não estar apaixonadamente inspirado na criação de obras que exaltem a glória de Deus em nome de Jesus Cristo”, escreve ele no seu site). Horas antes, a caixa de comentários/chat começava a fervilhar de actividade. Expectativa, ansiedade, veneração, e os inevitáveis "trolls", num "scroll" ininterrupto, que iria acelerar vertiginosamente a partir do instante em que os sintetizadores de Warren Ellis levantam voo e, pouco depois, abrem espaço para a voz de Nick Cave – muito mais "sprechgesang" do que verdadeiro canto – nos narrar uma parábola, algures entre o Génesis e Graceland (“Once there was a song, the song yearned to be sung, it was a spinning song about the king of rock’n’roll, the king was first a young prince, the prince was the best, with his black jelly hair he crashed onto a stage in Vegas, the king had a queen, the queen's hair was a stairway, she tended the castle garden, and in the garden planted a tree”), que se conclui com um lancinante apelo: “Peace will come, a peace will come, a peace will come in time, a time will come, a time will come, a time will come for us”.
Não poderíamos, então, ainda adivinhar mas tivera início uma longuíssima canção de 68 minutos em que cada um dos 11 pontos de paragem não chegariam a ser sequer diferentes andamentos – o tom, a atmosfera, a dinâmica, permaneceriam praticamente inalteradas até ao fim – mas apenas pausas de respiração, mudanças de página, numa espécie de sonho febril, que, qual monumental sequela de Skeleton Tree (2016), vive assombrada pela devastadora morte do filho adolescente (“ghost teen”), Arthur, em 2015, cuja imagem e memória reaparecem a todo o momento, mesmo quando, aparentemente, ausentes. Já há três anos, com esse álbum mas também com One More Time With Feeling, o documentário de Andrew Dominik que o acompanhava, tínhamos reparado: o Nick Cave que, por altura de Nocturama (2003) declarava “Os sentimentos estão muito sobrevalorizados e preocupamo-nos demais com a forma como nos sentimos. Os sentimentos são um conceito do final do século XX. E suspeito que, à medida que o século XXI for avançando, os sentimentos irão ter muito pouco a ver com tudo. Os sentimentos são um luxo dos ociosos”, já não existe. Aquele que sobreviveu à arrasadora tempestade emocional é o que confessa que “aprendeu a ver as pessoas de uma forma diferente e a ter uma total e absoluta compreensão acerca do que sentem”,
Aqui, como em Ghosteen, cresce, no entanto, um feixe de contradições ainda mais evidentes na “troca de correspondência” de “The Red Hand Files”: se, em Outubro de 2018, à Cynthia, de Shelburne Falls, na Virginia, que lhe perguntava se ele não sentia o mesmo tipo de comunicação com Arthur que ela acreditava ter com os familiares que perdera, responde que “No interior dessa vertigem, nasce todo o tipo de loucuras, fantasmas, espíritos e visitações em sonhos, tudo o que, na nossa angústia, tornamos realidade. (...) São dádivas preciosas, tão válidas e autênticas quanto precisamos que sejam. São os espíritos guia que nos conduzem para fora das trevas”, em Agosto passado, à Aylyn, de Bruxelas (que lhe dirigia interrogação idêntica) – embora admitindo que “o desejo de acreditar em algo para além de nós é uma função humana básica” –, citando Richard Dawkins, Sam Harris e Bertrand Russell, sublinhava que “crer em espíritos” é “delirante”,“intelectualmente desonesto”, “irracional”, “cobarde” e “estúpido”.
Humano, demasiado humano, é com este novelo de fragilidades que tem de lidar em Ghosteen. Excessivamente próximo e vivido para – como
era o caso de Murder Ballads (1996) – não ser levado totalmente a sério (mas aquela capa de Tom DuBois...), não é tarefa fácil digerir este denso concentrado de alusões bíblicas (“I can hear the whistle blowing, I can hear the mighty roar, I can hear the horses prancing in the pastures of the Lord”; “It isn’t any fun to be standing here alone with nowhere to be, with a man mad with grief and on each side a thief, and everybody hanging from a tree”; “Jesus lying in his mother’s arms is a photon released from a dying star”; “A man called Jesus promised he would leave us with a word that would light up the night”), aqui e ali, pontuado por platitudes embaraçosas (“Everything is distant as the stars, and I am here, and you are where you are”; “I love my baby and my baby loves me”; “This world is beautiful, the stars are your eyes, I loved them right from the start”; “You were a runaway flake of snow, you were skinny and white as a wafer, yeah, I know“) onde nem sequer faltam os três ursinhos da Goldilocks (“Mama bear holds the remote, papa bear, he just floats, and baby bear he has gone to the moon in a boat”), e sempre, sempre, envolvido pelos corais digitais e pela gaze sonora, quase "new age", de Warren Ellis.
Na caixa de comentários do YouTube, os fãs dividiam-se entre tratar-se de uma “ethereal masterpiece”, matéria de transcendência, uma herança tardia de Vangelis, Pink Floyd, Badalamenti ou dos Sigur Rós ou, simplesmente, cansativo, aborrecido e decepcionante. É bem capaz de ser um pouco de tudo isso. Mas Nick Cave merece, pelo menos, que deixemos o pó assentar antes de proferirmos um juízo definitivo.
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24 October 2017
REQUIEM
David Lynch sabe do que fala quando, sobre as particularidades da banda sonora no cinema, afirma: “Há efeitos sonoros e efeitos sonoros abstractos; há música e há música abstracta. E, algures por aí, a música converte-se em efeito sonoro e os efeitos sonoros em música. É uma área um pouco estranha”. Se, evidentemente, isso se aplica a toda a obra de Lynch, Blade Runner, de Ridley Scott (1982), transformou-se num caso particularmente exemplar de como essa “área estranha” pode assumir um papel determinante na definição profunda da natureza de um filme. Vencedor, no ano anterior, do primeiro Oscar para uma BSO maioritariamente executada em sintetizadores (Chariots of Fire), seria Vangelis o autor da partitura – a ilustração de uma densa e húmida atmosfera de pesadelo urbano neo-noir, feita de despojos do romantismo, farrapos de jazz e electrónica ambiental – que vivia tanto da música como convencionalmente a entendemos quanto da constante polifonia de computadores, néons, zumbidos de electricidade estática e de todo o tipo de ruídos de uma metrópole sci-fi pós-apocalíptica, tal como Philip K. Dick e Scott imaginaram que ela seria em 2019.
Em Blade Runner 2049, Dennis Villeneuve, Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch, não fizeram tábua rasa do riquíssimo legado do capítulo inicial mas – ainda que de modo imperfeito – amplificaram-no desmedidamente: K, aliás, Joe K (um Josef K desqualificado?), deambula por um mundo de (raras) árvores petrificadas, de desertos calcinados côr de fogo habitados pelos destroços das estátuas do “Ozymandias”, de Shelley, durante um teste psicológico recita um poema extraído de Pale Fire, de Nabokov, voluntariamente ou não invoca e materializa os espectros de Marilyn Monroe, Elvis Presley e Frank Sinatra (que, em "One For My Baby", lhe canta “Set 'em' up Joe, I got a little story I think you oughtta know”), e, quando activa Joi, a namorada virtual, faz soar os dois primeiros compassos de Pedro e o Lobo, de Prokofiev. Mesmo quando não é inteiramente aparente, já há aqui muita música. Mas Zimmer e Wallfisch, ultrapassando a sua condição de pistoleiros a soldo da indústria dos "blockbusters" – assim acontecera também com o Vangelis pomposamente "new age" –, oferecem-lhe uma moldura sonora implacável, sinistra e descarnada, um uivo mecanicamente sufocado, qual requiem agreste, por vezes quase ligetiano, por uma civilização dizimada e já incapaz de identificar a linha que distingue o humano do não humano.
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13 March 2008
AS MINHAS ENTRADAS PARA A LISTA DAS "25 MELHORES BANDAS SONORAS ORIGINAIS" DO ACTUAL/EXPRESSO DE 1 DE MARÇO DE 2008
Psycho (1960) – música de Bernard Herrmann/realização de Alfred Hitchcock
Violinos em glissandi ascendentes curtos e rápidos, gravados muito próximo do microfone, golpes sonoros perfurantes, estridentes e fisicamente dolorosos, sobrepostos às imagens do apunhalamento no chuveiro e aos gritos aterrorizados da Marion Crane/Janet Leigh.
(sem)
Mil vezes citada, a música de Herrmann (que se iniciou na “film music” com O Mundo A Seus Pés, de Welles) para o clássico de Hitchcock não se resume apenas a isto: desde o genérico inicial – quando, após uma vista panorâmica sobre Phoenix, a câmara penetra na janela aberta do quarto onde Marion e o namorado estão juntos, na cama, e uma morosa sequência orquestral de acordes agudos anuncia já algo que, então, ainda não podemos adivinhar –, à partitura ritmada pelo movimento dos limpa para-brisas que acompanha a viagem de automóvel debaixo do temporal para o Bates Motel (confrontar com a abertura de Sangue Por Sangue, dos Coen) ou aquela outra que faz contraponto ao diálogo friamente arrepiante com Norman/Anthony Perkins acerca da sua obsessão por pássaros, a música de Bernard Herrmann é o verdadeiro sistema (tremendamente) nervoso de Psycho.
(com)
Para o arquivo da “petite histoire” do cinema deverá, entretanto, seguir a anotação de que a intenção original de um teimosíssimo Hitchcock era filmar a “cena do chuveiro” sem qualquer música, só se deixando convencer quando o resultado não o satisfez e a opinião de Herrmann acabou por prevalecer.
Ascenseur Pour L’Échafaud (1958) – música de Miles Davis/realização de Louis Malle
Quando Elmer Bernstein se dispôs a escrever a magnífica banda sonora para The Man With The Golden Arm, de Preminger (1959), o seu raciocínio foi linear: “No argumento havia uma rua mal frequentada de Chicago, heroína, histeria, desespero, melancolia e frustração, algo de muito contemporâneo e americano. Precisava de um elemento que situasse todas essas emoções no nosso país, se possível, numa grande cidade. Ergo, jazz!”.
Um ano antes, na sua estreia como realizador, Louis Malle tinha pensado de forma idêntica para o estabelecimento do “mood” desta declinação europeia do “film-noir” que consagraria Jeanne Moreau. E fê-lo em grande: Miles Davis à frente de um combo europeu, improvisando (em tempo real sobre a projecção do filme) fragmentos melódicos de trompete em surdina à beira do silêncio, “walking-bass” ágil, sinuoso e minimal, bateria transparentemente metronómica. Raras vezes o próprio “noir” americano tinha encontrado um contraponto musical tão sublimemente exacto para o seu universo noturno, acossado e a um passo do abismo.
Once Upon a Time in The West (1968) – música de Ennio Morricone/realização de Sergio Leone
Exemplo singularíssimo de filme cuja banda sonora não apenas foi escrita antes do início da rodagem como serviu também de pano de fundo presente no “set” das filmagens, em Once Upon a Time in The West, Morricone tanto abdicou da música, recorrendo à estética cageana do silêncio como atractor da sonoridade “ambiente”, (toda a sequência inicial da espera na estação de comboios) como compôs operática e exuberantemente (o tema de Jill/Claudia Cardinale), utilizou guitarras eléctricas distorcidas (no épico tema principal) ou optou por procedimentos da vanguarda europeia da época (a exploração tímbrica de percussões durante o tiroteio em Flagstone). A cada personagem e cada situação é, desde a sua primeira aparição, associado um “leitmotiv” e, durante todo o filme, a narrativa é tão visual quanto (senão mais) musical: em pleno coração do “plot”, o detonador de toda a acção é uma harmónica. O que começou por ser depreciativamente designado como “western spaghetti” transformou-se em ícone do “western” autêntico.
Laura (1944) – música de David Raksin/realização de Otto Preminger
Tal como acontecia em The Third Man (de Carol Reed, com música de Anton Karas), durante cerca de metade do filme, a supostamente morta Laura/Gene Tierney (no filme de Reed, Harry Lime/Orson Welles) é quase só a assombração de uma melodia (banda sonora deliberadamente monotemática) obsessivamente repetida. Quando as imagens se apagam no ecrã, Laura permanece-nos no ouvido.
Blade Runner (1982) – música de Vangelis/realização de Ridley Scott
Se, em Playtime, de Jacques Tati, o mundo “moderno” era uma fonte permanente de surpresas sonoras, o mundo pós-apocalítico e vertiginosamente multicultural de Blade Runner é o imenso eco de um pesadelo. A meio caminho entre a estética musical do “noir” e da “sci-fi”, Vangelis inventou a atmosfera de um futuro sufocante.
A Clockwork Orange (1971) – música de Walter/Wendy Carlos/realização de Stanley Kubrick
Beethoven, Elgar e Rossini, traduzidos para um universo distópico de “ultraviolência”, num dos primeiros modelos de sintetizador desenvolvidos por Carlos em colaboração com o pioneiro Robert Moog. Se o velho Ludwig Van se tivesse escutado em tal contexto, teria tido poucos motivos para compor odes à alegria.
Rumble Fish (1983) – música de Stewart Copeland/ realização de Francis Ford Coppola
A imagem em cima, os diálogos no meio e a música por baixo, registados por Stewart Copeland (baterista dos Police) no, então inovador, Musync. Coppola pretendia uma banda sonora predominantemente percussiva, Copeland ofereceu-lhe outra onde combinava percussões com sons de rua, de Tulsa.
Alexandre Nevski (1938) – música de Sergei Prokofiev/realização de Sergei Eisenstein
Objectivo de Eisenstein: “Encontrar a completa correspondência entre o movimento da música e o movimento do olho sobre as linhas da composição plástica” de modo a concretizar uma “partitura audiovisual” perfeita. Prokofiev, compasso a compasso, concretizou esse electrocardiograma de Alexandre Nevski.
King Kong (1933) – música de Max Steiner/realização de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack
A banda sonora que inaugurou o segundo período na música para cinema, seis anos depois do início do "sonoro”, em 1927. Em vez de reutilizar música previamente existente, Max Steiner convenceu a RKO a deixá-lo compôr uma partitura original e, a partir dela, definiu o conceito moderno de um filme completo com música sincronizada.
(votei ainda em Forbidden Planet, West Side Story, Touch Of Evil e 2001 - A Space Odissey que figuraram nas 25 e em The Third Man, Magnolia, The Man With The Movie Camera/Cinematic Orchestra, The Day The Earth Stood Still, Fantastic Voyage, The House Of Usher, The Proposition, Crash, Playtime, The Birds, Rizzo Amaro, Blood Simple, Punch-Drunk Love, The Man With The Golden Arm, Enter The Dragon, Eternal Sunshine Of The Spotless Mind e Kill Bill (vol. I e II) que ficaram de fora)
(2008)
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