ENCONTROS FORTUITOS
(os primeiros 3'37" são em silêncio)
The Cinematic Orchestra/Dziga Vertov - The Man With A Movie Camera
Em Unheard Melodies - Narrative Film Music — o incontornável clássico de Claudia Gorbman acerca das relações entre imagem e música no cinema —, logo no primeiro capítulo, é colocada uma interrogação crucial: "Não será qualquer música suficiente para acompanhar um determinado segmento de filme? De facto, a resposta é sim. Seja qual for a música que se aplique a um segmento de filme, ela produzirá um efeito sobre ele, tal como quaisquer duas palavras que se juntem produzirão um sentido diferente do que cada uma possuia separadamente pois o leitor/espectador automaticamente impõe um sentido a tais combinações".
E, após recordar o jogo dos "encontros fortuitos" da estética surrealista, exemplifica com a forma como Jean Cocteau sonorizou alguns dos seus filmes segundo o princípio da "sincronização acidental": "pegava na música de George Auric cuidadosamente escrita para cenas específicas do filme e, deliberadamente, aplicava a música errada às cenas erradas".
Emancipada assim a questão do aparente "sentido único" que uma determinada sobreposição de imagens e sons haveria de fazer para todo o sempre — nenhumas imagens nasceram para se articularem inevitavelmente com estes ou aqueles sons —, não só se abre um infinito universo de possibilidades de estética combinatória como a prática crescente de sonorização contemporânea de filmes clássicos ou da época do "mudo" ganha uma legitimidade acrescida, independente de quaisquer considerações de ordem historicista ou autenticista.
Poderão resultar desastradamente mal (como as partituras em piloto automático de Philip Glass para Dracula ou La Belle Et La Bête) mas também podem sair-se assombrosamente bem como é agora o caso de The Man With The Movie Camera (1929), de Dziga Vertov, que, a convite do "Porto-2001", a Cinematic Orchestra reencenou musicalmente.
Se o filme se apresentava como "um trabalho experimental que pretende criar uma verdadeira e absoluta linguagem internacional do cinema baseada na total separação das linguagens da literatura e do teatro" e, ao fazê-lo, não só escancarou as portas de toda a modernidade cinematográfica posterior enquanto arte suprema da montagem como inaugurou o género do "kino pravda/cinema verité", a banda sonora de Jason Swinscoe e cúmplices optou inteligentemente por não se limitar a mimetizar a dinâmica das imagens mas apreender-lhes sim a matriz mais profunda.
O que no ecrã era uma fabulosa investigação acerca da realidade — um dia na vida da paisagem humana de Moscovo — como exercício radicalmente subjectivo de construção por "assemblage" errática e aleatória do olho humano ou do "kino glaz" (o olho do cinema) e não como mero efeito de reprodução mecanicamente "realista", a Cinematic Orchestra traduz isso para o espaço sonoro em dois planos: horizontalmente, de modo cíclicamente repetitivo, assegurando a continuidade narrativa assente numa estabilidade harmónica e rítmica; verticalmente, através da acumulação de factores de surpresa melódica, momentos de improvisação e rotura, explosões de percussão e estridência tímbrica.
Não existe uma verdade única do "real", a verdade do cinema é só mais uma possibilidade de interpretação e, no limite, de edificação de um mundo, explicava Vertov neste filme. A Cinematic Orchestra acrescenta: a modernidade de Vertov, Léger, Stella, Joris Ivens, Álvaro de Campos ou Dos Passos é tão verdadeira e urgente como a de uma música acabada de compôr para dialogar no idioma contemporâneo com um filme rodado há quase um século. (2003)
2 comments:
olá, joão. é a filipa da marta. fui a 2 das 4 sessões daquele mini-curso da gulbenkian sobre música nos filmes. qlqr um dos últimos 3 posts põem aquelas sessões num chinelo. um abraço.
... foi assim tão mau?!...
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