25 April 2007

CORAÇÃO INDEPENDENTE



Vários (BSO) - Lulu On The Bridge

A poucos minutos do final de Lulu On The Bridge, ouve-se a voz de Amália Rodrigues que, em "Estranha Forma de Vida", canta "foi por vontade de Deus". É, talvez, esse o momento crucial do filme onde imagens e banda sonora conspiram para, subliminarmente, revelar a chave desta parábola sobre a possibilidade do milagre (e a improbabilidade de ele ocorrer), os universos perpendiculares, o corpo das mulheres, a luz dos pirilampos na noite, Deus como "trickster" imprevisível e a inexorabilidade do destino, isto é, o fado.


Paul Auster

Não haverá muitas dúvidas de que Paul Auster desejou que essa chave permanecesse semi-oculta. É preciso escutar com muita atenção a voz de Amália (em fundo, sob o diálogo), é necessário compreender o que ela canta (e o idioma português não é propriamente um esperanto universal) tal como é indispensável conhecer o que o fado significa. Mas esse indício — tal como aquele outro fugaz plano em que Harvey Keitel passa junto a uma parede onde, num graffito, se lê "Beware of God" — é apenas um dos vários que Paul Auster dissemina pelo filme para que, quem os souber interpretar, se vá aproximando, a pouco e pouco, dessa modalidade de leitura do mundo como um jogo de acasos irremediavelmente (des)comandado por uma absurda força maior. É nessa exacta medida que Lulu On The Bridge pode ser considerado um filme-musical: o seu segredo dissimula-se sob o disfarce cifrado de uma "mera" música incidental.



Mas não só. Antes, durante e depois, todo o filme e respectiva banda sonora são um prelúdio e fuga para a polifonia das "voices from the box", essa metafórica caixa dos milagres da qual se libertam as forças luminosas capazes de bifurcar a realidade e suspender o tempo. Até que, sobre a Halfpenny Bridge que, em Dublin, se ergue em arco sobre o rio Liffey, Lulu/Celia a lança (e se lança) para as águas e, assim, interrompe o curso desse desesperado romantismo virtual e autoriza que o primeiro universo prossiga um outro destino.



Como o filme, a banda sonora é o guia de viagem para um sonho. Abre com a voz "a cappela" de Mira Sorvino que canta "dreams can be reality, if you live your dream with me, wave goodbye to what you are, what you want is not so far" e encerra-se com esse símbolo de uma outra realidade que é "Singin' In The Rain", por Lena Horne. Entre ambos, sucedem-se Holly Cole, Don Byron, Edith Piaf, o "Stabat Mater" de Pergolesi, Cassandra Wilson, Jacky Terrasson e as paisagens sonoras de Graeme Revell. E, claro, Amália que antecipa dramaticamente o final com as palavras "coração independente, eu não te acompanho mais, pára, deixa de bater, se não sabes onde vais, porque teimas em bater? eu não te acompanho mais". (1999)

No comments: