31 March 2020

Parecendo que não, o corona coiso já tem 91 posts, agora com "label" próprio e tudo

Hieronymus Bosch - A Morte e o Avarento (c. 1494)

"Contestar o perigo do coronavírus é certamente algo absurdo. Por outro lado, não é também absurdo que uma interrupção do curso habitual das doenças esteja sujeita a tamanha exploração emocional e traga de volta aquela arrogante incompetência que outrora empurrou a nuvem de Chernobyl para fora da França? Certamente, sabemos com que facilidade o fantasma do apocalipse sai da sua caixa para se apossar do primeiro cataclismo vindouro, para consertar as imagens do dilúvio universal e fincar o arado da culpa no solo estéril de Sodoma e Gomorra. (...) O nosso presente não é o confinamento que a sobrevivência nos impõe, é a abertura para todos os possíveis. É sob o efeito do pânico que o Estado oligárquico é forçado a adoptar medidas que ainda ontem declarava impossíveis. É ao chamamento da vida e da terra a restaurar que queremos responder. A quarentena é boa para a reflexão. O confinamento não abole a presença da rua, reinventa-a. Deixai-me pensar, cum grano salis, que a insurreição da vida quotidiana tem virtudes terapêuticas inesperadas" (Raoul Vaneigem, aqui, por sugestão nesta caixa de comentários)
POEMA PARA BEATRIZ
 

Maria McKee? Não deve ser exactamente uma multidão o número daqueles a quem, por esta altura, esse nome fará tocar uma ou duas campainhas. Por motivos bastante concretos: da valquíria "cowpunk" que, desde 1982, aos 18 anos, à frente dos Lone Justice (e integrando o mesmo destacamento a que pertenciam Jason & The Scorchers, Beat Farmers, Long Ryders, Rank & File ou Meat Puppets), assinou o óptimo Lone Justice (1985) e o menos notável Shelter (1986) e, posteriormente, a solo, nos seduziu o ouvido com Maria McKee (1989), You Gotta Sin To Get Saved (1993), Life Is Sweet (1995) e High Dive (2003), não havia notícias há 13 anos. Pelo caminho, deixara o único tema original – "If Love Is A Red Dress (Hang Me In Rags)" – da banda sonora de Pulp Fiction e trepara até pelas tabelas de vendas com "Show Me Heaven", do trambolho cinematográfico Days of Thunder

 
Só por essa lomga ausência, a publicação de La Vita Nuova seria já um acontecimento assinalável. Mas é-o muito mais ainda na medida em que se trata, verdadeiramente, de uma segunda vida para Maria Luisa McKee: anunciando-se renascida como “a pansexual, polyamorous, gender-fluid dyke” e activista dos direitos LGBT, "a queer leftist witch” iniciada numa loja da Hermetic Order of the Golden Dawn de Yeats e Crowley, e – jura – em comunicação espiritual com Bryan MacLean (o irmão mais velho já falecido, fundador dos lendários Love), mudou-se dos EUA para Inglaterra e aí mergulhou na música de Scott Walker, Vaughan Williams, Bowie, John Cale e Sandy Denny, e nas obras de Keats, Swinburne, Dickens, Blake e Dante. Foi a este que tomou de empréstimo o título do álbum acerca do qual teríamos bastas justificações para recear o pior. Nada de mais errado: La Vita Nuova, gravado com uma orquestra de 19 elementos, é uma avassaladora obra-prima com aquela patine “antiga” que evoca a Sandy Denny mal-amada de Like an Old Fashioned Waltz e Rendez Vous, mas também, aqui e ali, Joni Mitchell, e toda a constelação de divindades tutelares que a si quis chamar para este imenso poema à sua Beatriz.
CITY GHOSTS (LIX)

Lisboa, Portugal, 2019


30 March 2020

Jack Kerouac's Road - A Franco-American Odyssey (real. Herménégilde Chiasson)
 

Michael Praetorius - Dances from Terpsichore (Voices of Music)

Uma "teoria da conspiração" menos amalucada? (ver 228 posts aqui)


O trabalhador ideal: não reivindica, não se sindicaliza, não faz greve, não engravida, não adoece, não tem estados de alma, não exige férias, não tem horário de trabalho
Maria McKee - "Ceann Bró"

28 March 2020

"(...) Como é que uma pandemia, com um vírus de uma família conhecida, altamente contagioso mas relativamente moderado nos seus efeitos, e com uma taxa de mortalidade baixa em geral, provoca este verdadeiro cataclismo social e económico, com o encerramento de quase todas as actividades produtivas, as cidades vazias, os transportes parados, milhões de pessoas confinadas em casa? A pergunta não serve para contrariar os esforços actuais para travar o contágio do vírus e a importância do distanciamento social (...). A pergunta não questiona a atitude dura das autoridades sanitárias e dos Estados para tratar o maior número de pessoas, aliviar as que sofrem e impedir um grande número de mortes nos grupos de risco. Acima de tudo, não questiona a salvaguarda do efeito de sobrecarga dos sistemas de saúde, talvez o mais perigoso efeito da disseminação da infecção. Mas tem sentido, até porque é legítimo colocar a questão de saber se não estamos a ter uma overdose de resposta, cujos efeitos perversos podem ser maiores, sem razão. (...)" (JPP)
VINTAGE (DXIII)

Malaria! - "Pernod"

Opá, Chico, estás farto de saber que o Gajo dorme como uma pedra...


... ou, então...

27 March 2020

Bob Dylan - "Murder Most Foul"

STREET ART, GRAFFITI & ETC (CCLV)

Nova Iorque, EUA, 2020






(TGL via DT)
É bom para a imunidade de grupo


Edit (14.00) - Reino Unido cada vez mais imune: "Ministro da Saúde britânico testa positivo para Covid-19"

Edit (20.30) - Uma imunidade de aço!: "Chief medical officer Chris Whitty self-isolates with symptoms"
Não há a menor dúvida de que a primeira sessão de beijinhos/abracinhos/selfies pós-Covid do ex-"sit-down comedian", estará já a ser convenientemente planeada e encenada: discurso épico acerca da valente e inigualável Lusitânia, chuva de condecorações sobre "os heróis", súplica pelos "mártires", vénia perante o Grande Manipanço Cósmico e comovente e abundante troca de saliva e hálitos, finalmente livres do "inimigo invisível" - vai ser coisa verdadeiramente memorável!

25 March 2020

Trabalhadores de todo o mundo: separai-vos!

Musica Reservata ‎– The Instruments 
of the Middle Ages and Renaissance

Babehoven - "Close Behind"

A JOKE A DAY KEEPS THE DOCTOR AWAY (LXX)

Estado? Vade retro!!!

Conselho dos psiquiatras: Neste período anormal de quarentena é considerado normal falar com flores e plantas. Procure-nos só se elas responderem.

The Everly Brothers - "Talking To The Flowers"

24 March 2020



"The Ticket That Exploded continues the adventures of Agent Lee in his mission to investigate and subvert the methods of mind control being used by The Nova Mob, a gang of intergalactic criminals intent on destroying Earth. From the book:

'The basic nova technique is very simple: Always create as many insoluble conflicts as possible and always aggravate existing conflicts—This is done by dumping on the same planet life forms with incompatible conditions of existence—There is of course nothing 'wrong' about any given life form since 'wrong' only has reference to conflicts with other life forms—The point is these life forms should not be on the same planet—Their conditions of life are basically incompatible in present time form and it is precisely the work of the nova mob to see that they remain in present time form, to create and aggravate the conflicts that lead to the explosion of a planet, that is to nova'"
LOCK HIM UP! (II)

 


Trampas, o filósofo de tasca inimputável

23 March 2020

É prá quarentena

Entre 2008 e 2011, a Islândia, como o resto do mundo, estava em crise profunda. E, como no resto do mundo – apesar de o país ter sido lesto a engaiolar cerca de duas dezenas de meliantes da alta finança –, algumas das 350 000 criaturas que povoam o grande rochedo de gelo e lava no Atlântico Norte começaram a alimentar ideias de privatização e venda de recursos naturais para acolchoar o desastre. Björk não apenas se manifestou, pública e veementemente, contra tais projectos mas tirou partido das circunstâncias para se lançar na concepção e criação de Biophilia, o género de peça conceptual multimédia que, tivesse Wagner à sua disposição toda a tecnologia contemporânea, bem poderia ter criado enquanto exemplo supremo da Gesamtkunstwerk (a obra de arte total). Imensa “meditação sobre a música, a natureza e a tecnologia” e “first app album”, por ocasião da estreia no Manchester Museum of Science and Industry, em Julho de 2011, Björk explicava-se: “Por questões de defesa ambiental, tinha-me envolvido bastante em iniciativas que procuravam encorajar as pessoas a pensar que existem coisas mais importantes do que construir mais umas quantas fábricas de alumínio. É impossível viver em sociedades totalmente separadas da natureza, cortar esse cordão. Pude conceber um programa diferente para cada canção, baseando cada uma num elemento diferente da natureza, abordando-o, ao mesmo tempo, sob um ângulo emocional e musicológico. Era como se estivesse a elaborar um projecto sobre o Universo e tudo à volta!”



E, para dez canções estruturadas a partir dos movimentos celestes ou do pêndulo de Foucault, acerca de planetas, relâmpagos, vírus, estruturas de cristais, solstícios, matéria negra e placas tectónicas, não se limitou a recorrer a uma instrumentação invulgar e deliberadamente desenhada para elas (gameleste – um híbrido de gamelãs e celeste –, bobina de Tesla, órgão digital de tubos, harpas pendulares, "sharpsicord"): explorando as possibilidades do suporte iPad para o qual foi pensado, Biophilia incluía igualmente um potencial virtualmente inesgotável de jogos, animações, alegorias visuais, partituras (convencionais e contemporâneas) e aplicações que permitiam ao utilizador modificar os próprios temas. Uma riquíssima ocupação de tempos livres – voluntária ou forçada – com bónus filosófico de especial pertinência actual em “Virus” (“Like a virus needs a body, as soft tissue feeds on blood, some day I'll find you, the urge is here, the perfect match, I adapt, contagious, you open up, say welcome, you fail to resist my crystalline charm, like a virus, patient hunter, I'm waiting for you”), uma metáfora para “relações fatais”: “Algo como ter um novo vizinho com o qual temos de aprender a viver”.


William S Burroughs, em The Ticket That Exploded (1962), anunciara que “language is a virus from outer space”. Um virus em tão perfeita e oculta simbiose com o hospedeiro que este deixara de o identificar como tal, utilizando inconscientemente essa infecção como meio de comunicação e controlo. Burroughs optou por “recortar” a linguagem. Laurie Anderson pegou na ideia e transformou-a em canção - "Language Is a Virus" - que incluiria no magnífico filme/concerto Home Of The Brave (1986) e no CD homónimo.
Howard Zinn - A People's History Of The United States (IX)

Cap. 25: The 2000 Election And The "War On Terrorism" 

Voices of a People’s History of the United States

PDF
VINTAGE (DXII)

Lone Justice - Full Concert - 09/18/85 - Ritz

Confirma-se: a poluição 
tem vindo a diminuir

20 March 2020

Plague Songs (daqui)


Stephin Merritt - "The Meaning of Lice"
 
está viva em todo o lado

O biltre
 

+ a aconcorrência...


Já tarda uma declaração do PAN em defesa do Coronavírus, essa pobre criatura da Natureza tão universalmente vilipendiada 

Distanciamento social, proximidade felina (uma boa receita para todas épocas)

19 March 2020

Hermeneutizando o papagaio-mor


"Esta guerra – porque de uma verdadeira guerra se trata – dura há um mês" (ou a invencível tendência infanto-juvenil para converter coisas sérias em sagas heróicas de BD, filmes-catástrofe e refregas medievais lendárias)

"Digo-vos, por testemunho próprio, é nosso dever acatar as orientações genéricas e, por maioria de razão, as recomendações específicas das autoridades sanitárias" (isto é, não façam como eu que, até ao último segundo, não parei com os beijinhos e as selfies senão quando me obrigaram a fazer os testes e me enxotaram para a gaiola de Cascais)

"Na nossa História, vencemos sempre os desafios cruciais. Por isso temos quase novecentos anos de vida. Nascemos antes de muitos outros. Existiremos ainda, quando eles já tiverem deixado de ser o que eram e como eram. (...) Somos assim. Porque somos Portugal" (um intenso fedor a populismo nacionalista e a xenofobia rasca e idiotamente gabarola se solta desta ideia de que, porque somos portugueses, poderão extinguir-se todos os outros que nós, rijos e valorosos guerreiros lusos, não há vírus nem Adamastor que nos assuste)
Thomas Feiner - "Guide for the Perplexed"



"Duas palavras gregas (com roupagem latina) dominam a actualidade mundial. Se, por um lado, a formulação que ouvimos todos os dias («coronavírus») fere os meus ouvidos de helenista/latinista – pois como é que um substantivo («corōna») pode qualificar outro substantivo («vīrus»)? -, por outro lado tenho-me entretido com os pensamentos ziguezagueantes sobre estas duas palavras, suscitados pela sua repetição permanente. Sentado ontem ao balcão de um pequeno restaurante de Coimbra, enquanto o noticiário televisivo repetia em tons histéricos o nome «coronavírus», dei por mim a pensar como as palavras têm a sua história; e como as pessoas a quem o ensino actual nega a possibilidade de estudar Grego e Latim passam ao lado dessa história. Por via da herança grega e latina, palavras como «corōna» e «vīrus» têm uma história milenar, cuja viagem (pelo menos a reconstruível) começa com Homero e tem ponto de passagem no Novo Testamento (...)"

18 March 2020


John Renbourn - The Lady and the Unicorn

(álbum integral aqui)
Nota mental para quando regressarem as polémicas sobre sector público/sector privado no SNS: quando a coisa é séria, os "chairmen" da banca não brincam e recorrem ao público

A secção portuguesa da "Malucagem à Solta" torna público "O que não nos contam sobre o Covid 19", documento crucial (embora baseado em estudos anteriores) para compreender a crise actual

Já não ponho as mãos no fogo por matemático nenhum (o que me custa mais do que tudo); mas, quando o J. Buescu escreve que "[Em Itália] É a primeira vez desde o início do surto na Europa que se registam 2 dias consecutivos (ou 3, se incluirmos o dia 15, em que o factor de crescimento foi de 1,02) de quase estacionaridade do factor de crescimento", será um disparate recordar que, em Portugal, de sexta para sábado, o aumento de novos infectados foi de 51%; de sábado para domingo, 45%; de domingo para 2ª, 35%, e de 2ª para 3ª, 35%? (se calhar é mesmo um disparate)

17 March 2020

Qualquer coisinha de português (LXXV)

O Nunes, cão-de-trela do Trampas, tanto quer agradar ao dono que faz ainda mais merda do que ele



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Ao menos, que se aprenda isto

(daqui)
“A EVA SOU EU”


Segundo informa o site “Ancestry” – dedicado ao estudo das genealogias – a família Haussman é de origem judia (Ashkenazi)-alemã e fixou-se nos EUA, em particular, na Pensilvânia. Os homens eram, essencialmente, comerciantes e as mulheres bibliotecárias. Mas não foi isso que atraiu a artista anteriormente conhecida como Cristina Branco para a criação de Eva Haussman, alter-ego e figura central de Eva, o belíssimo álbum em que propôs a Filipe Sambado, Márcia, Kalaf, Francisca Cortesão, Pedro da Silva Martins e Luís José Martins que narrassem a sua história. 

    Andei a investigar a Eva Haussman e descobri que ela tem 48 anos...

Faz este ano 48 anos...

    E, aparentemente, a família Haussman, por volta de 2004, tinha uma esperança média de vida de 80 anos. A Eva nasceu no dia 2 de Março de 2006, na Dinamarca, no Museu de Arte Moderna da Louisiana, em Øresund. E, coisa extraordinária, nasceu já adulta, com 34 anos! 

É incrível, não é?... (risos) A Eva é um alter ego...

    Alter ego ou heterónimo?

Alter ego. Porque, no fundo, ela é alguém que eu também sou, se calhar, de uma forma mais empolada. Nasceu num momento de cisão com uma série de coisas na minha vida que tive de reequacionar e resolvi parar para pôr tudo em perspectiva. Não para partir do zero – porque tens toda uma bagagem, toda uma herança – mas para pensar o que queres dali para a frente, o que esteve mal, o que vamos mudar. Fui para o Museu de Arte Moderna da Louisiana, na Dinamarca (sou muito amiga do director artístico) e lá têm residências artísticas em que recebem muitos convidados. Perguntei se poderia lá ficar cinco dias, absolutamente sozinha, só para me repensar. Gostava muito do nome Eva e comecei a construir um perfil. Ela nasce com essa idade mas é fotógrafa, tem um guarda-roupa, fuma com boquilhas todas compradas em leilões e com uma particularidade: todas pertenceram a cantoras negras americanas. Tem assim uns fetiches... É filha de uma mulher da Martinica e de um francês.

    Mas tem um apelido alemão... 

Sim, mas é um lado da família que tem a ver com a primeira Guerra Mundial... o barão Haussmann, do Boulevard Hausmann, tem a ver com isso, são alemães mas também franceses. Nesses cinco dias, foi surgindo tudo aquilo que tinha para me agarrar. Escrevo todos os dias mas, desta vez fi-lo de uma forma ainda mais intensa. Fui construindo esta personagem – na altura, achava que era uma personagem –, ela foi ganhando forma. E, de repente, fiz aquela pergunta básica quando se chega aquele ponto da vida, aos 34 anos: o que é para ti a liberdade? O que queres a partir daqui? E comecei a construir meia dúzia de premissas que eram importantes para a Cristina e que faziam parte da personalidade da Eva. Fiz um retrato do que achava importante para mim a partir daquele instante.

    Esses cinco dias foram, então, o trabalho de parto da Eva?

(risos) Cinco dias a nascer, imagina!...

    

    Mas porque foi necessário criar essa personagem?

Não foi necessário, foi uma casualidade, aconteceu assim. Comecei a escrever e surgiu a parte mais material da Eva, as características físicas. E, de repente, ela já era eu, já éramos as duas a mesma coisa. Eu queria ser aquela mulher, aquela vontade de ser livre tinha de me pertencer.

    Portanto, pode dizer-se que essa construção foi um gesto muito mais terapêutico do que teatral...

Absolutamente terapêutico.

    Não foi uma coisa tipo David Bowie e Ziggy Stardust?...

Não, não. Nada disso. Isto tudo aconteceu e, de repente, já era o meu endereço de email, o meu perfil de Facebook, este nome aparece na minha vida hoje em dia. Perguntam-me se, quando me tratam por Eva, não é uma coisa estranha? Não, ela faz parte da minha vida há 13 anos. Já não é uma personagem.

    Nem um pseudónimo, nem um heterónimo, é mesmo um alter ego...

Claro.

    Chamar-se Eva também não terá sido um acaso... 

Por acaso, foi! Não tem nada de personagem mitológica, não está envolta em religiosidades nem em conotações católicas, não tem nada a ver com o Génesis, é a antítese da "femme fatale", aquela coisa da maçã, da árvore e do Adão, nunca pensei sequer nisso. É um nome de que sempre gostei muito. Claro que apetece ir por esse lado. Mas ela desconstrói tudo isso.


    Poderemos estar perto do momento em que deixam de existir discos assinados pela Cristina Branco e passam a existir discos assinados pela Eva Haussman?

(risos) Tipo Muhammad Ali?... Não!... Serei sempre eu. A Eva estará sempre lá. Para quem segue o que faço, vai ser óbvio que a Eva não é uma brincadeira.

    Mas não será perigoso levar isto demasiado a sério? Haver uma personagem de ficção que, subitamente, se apossa de nós?

Não, divirto-me imenso com isto. O condutor do Uber, esta manhã, perguntou-me “Eva?...” e eu “Claro!” O senhor do Nespresso também chega lá a casa e chama-me “menina Eva”. De repente, ela ganhou vida até nestas pequenas coisas. Mas a Eva é completamente eu. Só não fumo (e muito menos de boquilha) e jamais gastaria dinheiro em leilões.

    É curioso que, sendo algo tão profundamente auto-biográfico, isso surja através das palavras dos autores a quem te dirigiste... como foi possível isso?

Mostrando-lhes tudo aquilo que escrevi sobre a Eva e, mais do que isso, mostrando excertos do meu diário entre Janeiro de 2018 e Janeiro de 2019. Não a todos porque não tenho o mesmo nível de intimidade com todos eles, mas houve uma conversa com todos os que estão no disco. Recebi 23 canções de 12 autores e acabaram por ficar apenas 10. Queria exactamente a súmula do que acho que era importante dizer sobre a Eva. Sobre mim. Alguns autores com quem tenho uma relação mais próxima como o André Henriques, o Pedro Silva Martins ou a Francisca Cortesão que é um amor mais recente, senti que havia confiança suficiente para mostrar um lado muito íntimo que acho difícil mostrar aos outros. É preciso escolher as pessoas que não fazem juízos de valor. Há muitas referências a mim, por exemplo, no texto do Kalaf.

    Para além desse critério, houve outros para a escolha dos autores? São todos bastante diferentes...

Aproximam-se uns pelo género de música que fazem, outros pela geração a que pertencem... mas a ideia vem de dois discos atrás, o Menina, em que senti uma necessidade grande de trabalhar com pessoas mais jovens do que eu e que estão a construir de uma forma mais realista a história da música do nosso país.

    Mais realista?

Sim, são pessoas que observam a realidade, têm uma perspectiva quase rude das coisas. São desprendidos. É uma geração que está ligada a tudo o que são redes sociais, virada para fora, e isso dá-lhes uma perspectiva de vida completamente diferente da minha. E isso é muito interessante de trabalhar, sobretudo ao nível da música.

    Nunca te passou pela cabeça gravar um disco só com canções (pelo menos, textos) escritos por ti?

Eu escrevo muito e todos os dias. Preciso de escrever, é uma espécie de arrumação...

    Desfragmentação do disco...

Sim, é mesmo isso. Mas nunca o faço de uma forma mais poética. Mesmo quando escrevi o texto de "Contas de Multiplicar" não tive segurança suficiente para achar que tinha qualidade. O esforço que eu faço para escrever um texto como esse é gigantesco. Não tenho essa ambição. Não sei se, um dia, irá acontecer, se vou conseguir ser assim escorreita. Uma canção tem de bater imediatamente na outra pessoa.

    Por outro lado, a Cristina Branco que afirmava veementemente não ser fadista mas cantava fado, essa, desapareceu?

Não, eu continuo a cantar fado. Eu preciso de cantar fado. Até, se calhar, de uma forma mais depurada. Em concerto, gosto de pegar nos fados tradicionais e não os desconstruir, abordá-los exactamente como são. Gosto da forma como a minha voz chega aquele texto. Mas o fado, comigo, é uma coisa transversal, por onde passo e nunca fico muito tempo. Um dia, até pode dar-me na gana de fazer um disco só de fados... nunca nada está fechado.

16 March 2020

Por favor, não usar o alibi de ser 
"uma causa fracturante"

Fé, fé verdadeira, fé a sério, fé impenetravelmente bronca, é assim mesmo! * (não é como a dos xoninhas da Vaticano S.A.) 

   
* "Um carro conduzido por uma freira pára no princípio de uma subida, por falta de gasolina. A freira vai à bomba mais próxima, mas o funcionário diz que não tem vasilha que lhe empreste para levar a gasolina até ao carro, e sugere-lhe que vá a um ferro-velho, ali perto. A freira vai; a única vasilha que arranja é um penico. Compra o penico, compra a gasolina, volta para o carro e começa a deitar cuidadosamente a gasolina no depósito. Nesta altura aproxima-se outro carro. O condutor olha, pára, vê o líquido amarelado a correr do penico para o depósito e não se contem: — Eh, irmã, isso é o que se chama ter fé em Deus!" (A joke a day keeps the doctor away - LXIX)