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14 September 2022

LIMAR AS ARESTAS
 

Quando alguém se lembrou de chamar a Elizabeth Fraser “a voz de deus”, poderemos ter, enfim, ficado a conhecer o género do poder supremo mas isso nunca seria atenuante suficiente para um insulto que ela, de todo, não merecia. Porém, repetindo talvez a certidão de óbito nietzschiana de 1882, em 1997, os Cocteau Twins imobilizaram-se para sempre e “a voz de deus” calou-se. Não de forma realmente total mas apenas os de muita fé terão reparado nas meteóricas aparições – à boleia dos Massive Attack, Peter Gabriel, Sam Lee, Oneohtrix Point Never, duas ou três bandas sonoras, um ou dois singles quase confidenciais e outro realmente confidencial (e inédito: “All Flowers in Time Bend Towards the Sun”, com Jeff Buckley) – que, em 2012, passariam pelo palco do London Meltdown Festival. Com o companheiro e co-conspirador Damon Reece (Massive Attack, Spiritualized, Echo & the Bunnymen, Lupine Howl) aí apresentaria quatro quintos do que, três anos antes, ao “Guardian”, havia revelado “poder vir a ser um álbum”, embora a precisar ainda de “ser muito polido”. (daqui; segue para aqui)

"Underwater"

19 August 2022

Jeff Buckley & Elizabeth Fraser - "All Flowers In Time Bend Towards The Sun"

"After parting from (Robin) Guthrie, but still in the same band (Cocteau Twins), Fraser struck up an intense relationship with Jeff Buckley after they became infatuated with each other's voices. Again, emotion produced music. A sublime duet they recorded called 'All Flowers in Time Bend Towards the Sun' is floating around the internet, to her irritation. 'Why do people have to hear everything?' she complains. I tell her it's wonderful. 'But it's unfinished, you see. I don't want it to be heard'. There's a pause. 'Maybe I won't always think that" (Elizabeth Fraser, "Guardian", 2009)

24 February 2021

(sequência daqui) Tinha-a entrevisto num álbum dos Watersons mas encontrou-a junto do mestre Stanley Robertson – cigano de Aberdeen, sobrinho da lendária Jeannie Robertson de quem herdou o reportório tradicional – e da também cigana Freda Black (não espanta, pois, que, num episódio da extraordinária série Peaky Blinders, tenha aparecido como cantor num casamento cigano). De ambos, aprendeu “o que realmente significa habitar uma canção e como permitir que a música nos guie”. Exactamente o que acontece quando "Turtle Dove" e "Soul Cake" se deixam exaltar nas vagas orquestrais buckmasterianas do ex-Suede, Bernard Butler, quando Liz Fraser (Cocteau Twins), furtivamente, com "Wild Mountain Thyme", alimenta o crescendo de "The Moon Shines Bright", e quando, em todas, a voz de Sam Lee – algures entre os dois Buckley, Tim e Jeff, com Christy Moore na memória –, altiva mas reverente, declama o passado como quem inventa o futuro.
 

30 November 2019

AMOR, SEXO, CULPA, REDENÇÃO E ÊXTASE (IV)


De facto, a roupa demorou bastante tempo até lhe secar no corpo. Embora o momento em que decidiu começar a escrever e a cantar as suas canções, seja impreciso, Sylvie Simmons confia em Barbara Amiel que jura que isso terá ocorrido no verão de 1965, em Toronto, numa suite do hotel King Edward, quando interpretou como um sinal positivo o facto de, ao som dos seus poemas e das melodias que ia improvisando numa harmónica, noutro ponto da sala, um casal ter-se envolvido de forma assaz íntima. Mas, entre o instante em que, em 1967, John Hammond – o tipo que tinha lançado as carreiras de Billie Holiday, Bob Dylan, Aretha Franklin e, daí a uns anos, Bruce Springsteen – propôs assinar contrato com Leonard Cohen a um executivo da Columbia, e este vociferou “Um poeta de 32 anos? Estás doido?” e o definitivo reconhecimento global em diferido de "Hallelujah" (extraído de Various Positions, de 1984, que, inicialmente, nem teria distribuição nos EUA) através das versões de Jeff Buckley e John Cale, e, I’m Your Man (1988), decorreriam duas longuíssimas décadas em que o sucesso europeu não tinha correspondência do outro lado do Atlântico.


Pelo meio, houvera o pesadelo das gravações de Death Of A Ladies Man com um tresloucado Phil Spector, armado e rodeado de seguranças igualmente armados no estúdio, o desorientado envolvimento com o charlatanismo da Cientologia (onde conheceu Suzanne Elrod), os concertos para as tropas israelitas, durante a guerra do Yom Kippur (“A guerra é maravilhosa. É absolutamente económica nos gestos e nos movimentos. Cada gesto é preciso, cada esforço dá o máximo. Ninguém brinca em serviço”, observaria, qual coreógrafo ou treinador desportivo), os concertos em hospitais psiquiátricos e o comboio fantasma das digressões encharcadas em todas as variedades de estimulantes e tranquilizantes sob o comando titubeante do “Captain Mandrax”. Em I’m Your Man, Cohen conduzia a voz até profundidades literalmente subterrâneas - “I was born like this, I had no choice, I was born with the gift of a golden voice", ironizava em "Tower of Song" – e justificava-se alegando que “Não é uma estratégia, acho que é dos cigarros e do whisky”, enquanto, às portas do Apocalipse iminente, trovejava: “Everybody knows that the dice are loaded, everybody rolls with their fingers crossed, everybody knows the war is over, everybody knows the good guys lost, everybody knows the fight was fixed, the poor stay poor, the rich get rich, that's how it goes, everybody knows”. E, ao “LA Weekly” anunciava “A catástrofe já aconteceu e a questão que agora encaramos é: qual é o comportamento adequado numa catástrofe?


Entre 1994 e 1999, fez-se acolher no mosteiro zen de Mt. Baldy, o lugar onde habitavam "os fuzileiros do mundo espiritual", e que, desde 1973, episodicamente frequentava como terapia alternativa. O judeu canadiano, Cohen, ordenado monge como Jikan, o Pouco Convincente, mas também o fundador da Ordem do Coração Unificado, era, agora, motorista e cozinheiro de Kyozan Joshu Sasaki Roshi, o velho japonês nonagenário que fundara o centro e que, confessaria, o ensinara a distinguir correctamente um Rémy Martin de um Courvoisier. “Se o Roshi fosse professor de Física na Universidade de Heidelberg, eu teria aprendido alemão e teria ido até Heidelberg para estudar Física. O Roshi não debate seja o que for. Não está interessado em confrontar pontos de vista nem em tagarelar. Uma pessoa entende ou não entende, ponto final. Ele não nos transmite o género de verdades assombrosas que esperamos da parte dos mestres espirituais, porque ele é um mecânico – não fala acerca da filosofia da locomoção, fala acerca da reparação do motor. Em grande medida, ele fala com um motor avariado. O Roshi é a transmissão directa”. Quando saiu, em 1999, ao seu CV de operador de torno mecânico hidráulico vertical, operador de máquina de fundição em molde e assistente de analista de tempo e movimento, podia, agora, acrescentar um certificado do San Bernadino County que o habilitava a trabalhar como empregado de mesa e cozinheiro. E a depressão tinha-se evaporado.


Tinha jurado nunca mais regressar às digressões mas o tremendo desfalque nas suas finanças perpetrado pela contabilista que, desde sempre o acompanhara, obrigou-o a fazê-lo, sem demasiada amargura nem esforço excessivamente visível. Ao catálogo adicionaria Ten New Songs (2001), Dear Heather (2004), Old Ideas (2012) e Popular Problems (2014) e, duas semanas antes de morrer, You Want It Darker. Se, em Old Ideas falava da missão de escrever “a manual for living with defeat”, na apresentação de Popular Problems, em Londres, advertia: “Se soubesse de onde vêm as boas canções, ia até lá muito mais vezes. Pedem-me, frequentemente, conselhos. É um engano porque o meu método é obscuro e não pode ser replicado. Escrever canções é semelhante a ser uma freira: é o matrimónio com um mistério. Procuro sempre descobrir o caminho para o centro de uma canção. Tal e qual como no resto da vida. E o resultado não é muito melhor… o único conselho que posso dar é que, se não desistirmos dela, uma canção acabará sempre por ceder. Mas não me perguntem quanto tempo poderá isso levar…” Em "Morning Glory" , de Dear Heather, balbuciou: "No words this time? No words. No, there are times when nothing can be done, not this time. Is it censorship? No, it's evaporation". Porém, quando poucas semanas antes dele, Marianne morreu, conseguiu ainda que ela escutasse o que lhe escrevera: “Chegou aquela altura em que estamos tão velhos que os nossos corpos começam a desfazer-se e acho que vou seguir-te muito em breve. Quero que saibas que estou tão próximo de ti que se estenderes a mão talvez consigas tocar na minha. Sabes que sempre amei a tua beleza e a tua sabedoria. Por agora, quero desejar-te apenas uma boa viagem. Adeus velha amiga e amor eterno. Encontramo-nos ao fundo da estrada”.

04 December 2018

VENTO, TERRA, FOGO, ÁGUA


Em Double Trouble: Bill Clinton and Elvis Presley In a Land of No Alternatives (2001), Greil Marcus conta como o plano inicial de David Thomas para os Pere Ubu era ’gravar um artefacto’ que ‘lhes desse acesso à Fraternidade dos Desconhecidos que se ia constituindo por todo o lado, nas lojas de discos em segunda mão’. A ideia era actuar e depois desaparecer, ser esquecido, e, algures no futuro, talvez mesmo depois de morto, ser descoberto e, só então, começar a transformar o mundo”. Praticamente as mesmas palavras poderiam ser aplicadas a um outro “artefacto” gravado em 2001: The Opiates, assinado Anywhen, na realidade, apenas um "nom de plume" para o sueco Thomas Feiner acompanhado pela Orquestra Sinfónica de Varsóvia. Literalmente esmagado e não poupando as palavras, na altura, descrevi-o como “O melhor disco de Jeff Buckley. O melhor disco de David Sylvian. O melhor disco de John Cale. O melhor disco dos Tindersticks. O melhor disco de Scott Walker. O melhor disco dos Blue Nile. O melhor disco dos Divine Comedy”. Não me arrependo de nenhuma dessas comparações (arrependo-me só de não lhes ter acrescentado os Triffids).



Simplesmente, enquanto imaginava que, inevitavelmente, pelo menos uma parcela do mundo civilizado iria ajoelhar perante tanta grandeza... nada aconteceu. Intimidadas pelas implacáveis proclamações (“Here come greetings from the fires of dusk, from all the places you never dared to walk, you never saw the silent battle zones beneath your towers and beneath your gardens") as gentes passaram de lado e Feiner, sem o saber, acabara de ser iniciado na Brotherhood of the Unknown. Em 2008, The Opiates seria remasterizado para a Samadhisound, de David Sylvian (Thomas Feiner & Anywhen: The Opiates – Revised), houve notícias avulsas de publicações em mp3, um website lacónico que, relutantemente, deixava escapar parca informação sobre colaborações com Steve Jansen e vagas bandas sonoras. Na Wikipedia, uma única página. Em português. Até que, de súbito, há semanas, sob a designação Exit North (Feiner, Jansen, Charles Storm e Ulf Jansson), surge Book Of Romance And Dust. Apetece repetir, sílaba por sílaba, tudo o que foi dito sobre The Opiates. Podendo talvez acrescentar-se – errando – que, agora, Ryuichi Sakamoto teria sido convocado para o deslumbre onde um translúcido impressionismo electrónico se infiltra por entre as palavras e as dissolve, “to hear the world, the void, the sound it makes, the wind, the earth, the fire, high water”.

23 October 2018

ATRAVESSAR A PONTE

  
Louis Forster jura que não é utilizador da Go-Between Bridge, a ponte que, em Setembro de 2009, numa votação online proposta pelo City Council de Brisbane, na Austrália, foi assim baptizada em homenagem à banda de Grant McLennan e Robert Forster: “É preciso pagar uma portagem de 6 dólares, não tenho dinheiro para isso”. Aliás, Louis, filho de Robert, garante também que nunca ouviu a música dos Go-Betweens: “Às vezes, vêm ter comigo e fazem-me perguntas sobre um disco ou sobre uma determinada canção e chega a ser embaraçoso porque, de facto, nunca os escutei. Tenho sempre de pedir imensa desculpa e dizer que não faço ideia do que estão a falar”. Não é fácil acreditar: quem, sem qualquer informação sobre os autores, escutasse Up For Anything (2016) – o álbum de estreia dos Goon Sax, banda de Louis Forster, James Harrison e Riley Jones – não hesitaria em dizer que, muito provavelmente, tratar-se-ia de uma preciosa colecção de inéditos dos Go-Betweens. E se, continuando a não revelar nomes, se adiantasse tratar-se de um trio de Brisbane constituído por dois guitarristas/compositores e uma miúda baterista, as últimas dúvidas desapareceriam. 



Não sendo, aparentemente, um caso de disputa familiar – Robert Forster, há 2 anos, abençoou publicamente a obra da descendência –, só uma tentativa de esquivar-se à maldição dos "sons of" (numa já razoável lista de crias de famosos, apenas Jeff Buckley se mostrou à altura da ilustre paternidade) poderia explicar a recusa da óbvia linhagem. Ou, então, teremos entre mãos uma extraordinária prova da existência de ADN musical que caberá à ciência investigar. Agora que We’re Not Talking, o segundo álbum, é publicado, apetece dizer que aquilo que a Forster e McLennan levou quatro gravações para atingir – o esplendorosamente orquestral Liberty Belle And The Black Diamond Express (1986) –, os Goon Sax realizaram em duas: o díptico de abertura "Make Time 4 Love" (“Let's feel nervous in your room again”) e "Love Lost" (“So I look through film stores wondering what I should read, so I forget what movie I originally wanted to see”) passaria sem suspeitas por "bonus tracks" de Liberty Belle e as restantes dez, em diversos graus de parentesco – eles, agora, erigem altares às Raincoats, aos Orange Juice ou aos Love mas, se acrescentássemos Young Marble Giants, a genealogia ficaria mais completa –, não desmentem a filiação. Um dia destes, Louis Forster ainda há-de atravessar a Go-Between Bridge.

23 August 2016

AINDA MAIS


Tenha sido o poeta Robert Browning, o pintor Ad Reinhardt, ou o arquitecto Mies Van der Rohe a criar o conceito “less is more”, a verdade é que, por muita selva – estética, política, filosófica – que o minimalismo tenha desbravado, persiste um considerável número de fortalezas que essa ideia nunca conseguiu assaltar. Uma das mais inexpugnáveis praças-fortes é, sem dúvida, a indústria discográfica. Só um exemplo: Jeff Buckley que, em vida, gravou um único álbum (Grace, 1994), entre compilações e registos ao vivo, possui, actualmente, uma discografia póstuma com dez títulos, um box-set de cinco CD e cinco DVD. Mais é sempre mais e nunca é suficiente. Exactamente aquilo que, no "booklet" indesculpavelmente... err... minimal (quinze curtas linhas laconicamente informativas) de .. It’s Too Late To Stop Now... Volumes II, III, IV & DVD, fica absolutamente explícito quando afirma que oferece “even more of Van Morrison and The Caledonia Soul Orchestra”


Para que conste, o volume I (intitulado apenas It’s Too Late To Stop Now e publicado em Fevereiro de 1974) é consensualmente considerado um dos mais memoráveis álbuns "live" de sempre: incluindo gravações de concertos do ano anterior, no Troubadour, de Los Angeles, no Santa Monica Civic Auditorium e no Rainbow, em Londres – nos quais Morrison se fez acompanhar da Caledonia Soul Orchestra, uma sobrenatural máquina de fazer música (rock, jazz, folk, blues, soul) de onze elementos –, apanha-o naquele instante supremo como intérprete de palco que o transformaria numa “religião” para Springsteen e a E-Street Band. Para trás, estavam Astral Weeks (1968), Moondance (1970), His Band and the Street Choir (1970) Tupelo Honey (1971) Saint Dominic's Preview (1972) e Hard Nose the Highway (1973) e seria daí (e do reportório dos mestres Sam Cooke, Willie Dixon, Ray Charles ou Muddy Waters) que extrairia o combustível para esta avassaladora demonstração do “inarticulate speech of the heart”. O “even more” anunciado (à excepção do DVD registado no Rainbow), consiste, então, de um eleborado jogo de tabuleiro em que os temas, todos, alegadamente, “previously unissued”, são, inevitavelmente, os mesmos embora retirados de concertos diferentes. Mas, tratando-se de Van Morrison, quem ousaria queixar-se da pequena trafulhice?

07 March 2013

AMARGA VITÓRIA


É verdade que, nos EUA, Leonard Cohen nunca fora venerado como na Europa. Songs Of Leonard Cohen (1967) entrara, a custo, no top 100, Songs From A Room (1969) fizera pouco melhor, e Songs Of Love And Hate (1971), New Skin For The Old Ceremony (1974), Death Of A Ladies Man (1977) e Recent Songs (1979) nem a barreira dos 100 mais vendidos haviam conseguido franquear. O facto de este último, mesmo no Reino Unido, se ter ficado pela posição mais modesta até aí (53º) deveria ter feito tocar algumas campainhas. Mas nem isso terá preparado Cohen para o que, quando, em 1984, deu a ouvir as misturas finais do que viria a ser Various Positions, a Walter Yetnikoff, executivo da Columbia, ele lhe diria: “Leonard, we know you’re great, we just don’t know if you’re any good”. Compreenderia, pouco depois, que, num ano em que a editora andava demasiado empenhada na missão de disparar Born In The USA, de Springsteen, para a estratosfera, aquela frase significava, tão só, que o seu álbum não iria ser publicado. Acabaria por sair, no resto do mundo, em Janeiro de 1985, e, na América, através da minúscula Passport, um ano mais tarde. Por todo o lado, venderia miseravelmente. 




Uma das canções do disco, "Hallelujah", surgiria, entretanto, em 1991, num álbum de homenagem a Leonard Cohen (I’m Your Fan), organizado pela revista francesa “Les Inrockuptibles”, interpretada por John Cale. Este pedira que Cohen lhe mandasse a totalidade dos versos originais (eram 80, tinham sido necessários cinco anos para Cohen se decidir sobre a versão final – Cale recebeu 15). Seria neste "Hallelujah" que, por acaso, Jeff Buckley (ignorando o autor), tropeçaria e incluiria em Grace (1994), oferecendo uma segunda existência mais alargada à peça de Cohen. A terceira aconteceria (de novo, através da versão-Cale) pela inclusão na banda sonora do primeiro Shrek. A quarta e definitivo ponto de viragem ocorreu logo a seguir ao atentado de 11 de Setembro de 2001, quando, o canal de TV, VH1, escolheu a interpretação de Buckley para ilustração de um memorial pelas vítimas de Nova Iorque que exibia, de hora a hora. 




A canção em que o traiçoeiro rei David (reivindicado como antepassado de Cristo para legitimar a condição de Messias) revelava a paixão por Betsabé cujo marido, Urias, enviaria, deliberadamente, para a morte, o uivo de desespero de “maybe there’s a God above, but all I’ve ever learned from love was how to shoot at someone who outdrew you”, o “cold and broken hallelujah”, irremediavelmente treslido, atingira a glória (mais de 300 versões) convertido em cântico de louvor, exaltação e elevação espiritual, pronto-a-usar em situações de catástrofe, filmes, séries de televisão e "tour de force" indispensável em concursos “de talentos” como American Idol ou X-Factor. A amarga vitória de Various Positions chegaria ainda por outro lado: "Dance Me To The End Of Love", inspirada na terrível história dos quintetos de cordas forçados a tocar nos campos de concentração nazis enquanto outros prisioneiros eram encaminhados para as câmaras de gás, transformar-se-ia em número obrigatório de inúmeras e festivas cerimónias de casamento.

08 March 2012

ANNA CALVI - MY LIFE IN MUSIC (V)


Dr John - Gris-Gris

"My dad had this on vinyl. I used to lie on my floor when I was 16 and get lost in it. I love the way he uses space".



Jeff Buckley - Grace

"It's very much of its time and I never play it now, but his talent was incredible, and I found him very inspiring when I was younger".

(número de Dezembro/2011 da "Uncut")

(2012)

09 December 2010

UNIVERSOS PARALELOS
 

O planeta arregalou os olhos de estupefacção quando, em 1984, após ter adquirido a cidadania americana, John Lennon apelou ao voto em Ronald Reagan, alegando que havia “governo a mais” na vida e nos negócios e “demasiada gente a viver à custa de subsídios”. Jann Wenner, o histórico fundador da “Rolling Stone, erigindo-se em porta-voz dos fãs indignados e ofendidos, chegaria mesmo a publicar na capa da revista uma carta aberta, acusando-o de trair “um legado de paz e música em troca da descida dos impostos” e garantindo-lhe que nunca mais o seu nome seria impresso nas páginas daquela publicação. As coisas acabariam por se apaziguar pouco depois, quando Lennon redigiu o seu mea culpa intitulado “What Was I Thinking?”, justificando-se com o facto de sofrer de PODS – Post-Ono Disorder Syndrome – em consequência do divórcio de Yoko Ono, no ano anterior, do qual também resultaria a interrupção do tríptico de álbuns doméstico-fofinhos iniciado com Double Fantasy e Milk And Honey a que deveria ter-se seguido Grow Old With Me.

Mas, daí em diante, as coisas nunca mais foram iguais: Everest, o álbum de reunião dos Beatles, de 1987,não foi o sucesso que se previa e John Lennon (entretanto, retirado para uma quinta em Delaware County, a noroeste de Nova Iorque – Yoko ficou com o apartamento do edifício Dakota, em Manhattan) pouco mais fez para além da participação num filme de Jim Jarmusch (Fish Tanque, em que desempenhava o papel de dono de uma loja de aquários) e da colaboração com Lee Ranaldo, dos Sonic Youth, num álbum de noise-rock (Coarse Salt, 2007, 4º melhor do ano para a “Pitchfork”).


Sim, neste universo alternativo inventado por David Kamp no número de 24 de Setembro da “Vanity Fair”, John Lennon não sucumbiu às balas de Mark David Chapman, a 8 de Dezembro de 1980: a equipa de médicos do Roosevelt Hospital, chefiada pelo Dr. Stephan Lynn concretizou o prodígio de o manter vivo. E, quando por ocasião do seu iminente 70º aniversário, Kamp foi visitá-lo ao refúgio rural, o pretexto foi também as seis noites de concertos da Plastic Ono Band (com John, Yoko, Ringo, Sean Lennon e Klaus Voorman) na Brooklyn Academy Of Music, onde seria interpretado, na íntegra, o álbum John Lennon/Plastic Ono Band.

Encontrava-se em óptima forma física e, inquirido acerca da mega-campanha de reedições da sua discografia agora em curso, não mediu as palavras: “Repare: todos os meses acontece o aniversário de qualquer coisa que as companhias discográficas reembalam e voltam a vender em formato redigitalizado-nano-retromasterizado, por um preço de luxo: ‘Aqui está a edição do 47º aniversário da take alternativa de ‘From Me To You’, com o John na guitarra principal porque o George tinha ido verter águas. Pré-encomendem já no iTunes!’. É uma vigarice. Mas uma vigarice genial que me permite continuar a viver que nem um lorde”.
















Não podia ter mais razão, este Lennon ficcionalmente ressuscitado. Se é possível que ninguém tenha roído mais até ao osso um património musical mínimo do que Mary Guibert, mãe de Jeff Buckley (a partir de um único álbum editado, em vida, por Buckley, entre compilações (?), lives, EP e box sets, executou o milagre da multiplicação de quase mais uma dúzia... e nada garante que se vá ficar por aí), a verdade é que a indústria da reciclagem musical não desperdiça a menor hipótese de rentabilizar qualquer efeméride, de rapar o último compasso agarrado ao fundo do tacho dos catálogos, de canonizar mais um ilustre defunto e, de caminho, reeditar-lhe a discografia completa (repleta de “raridades”, “pérolas perdidas”, outtakes e outros bombons, evidentemente, inéditos), como os exemplos de Jimi Hendrix, Kurt Cobain ou Ian Curtis exuberantemente testemunham. Nem todas radicarão no mero instinto de sobrevivência de um sector industrial/comercial acossado – mesmo circulando há muito nos labirintos da Net em roupagens corsárias, aguarda-se o melhor de The Promise, 22 inéditos das sessões de Darkness On The Edge Of Town, de Bruce Springsteen – mas, na imensa maioria dos casos, é apenas disso que se trata. Os Beatles, em particular, só por si, constituiriam um "case study": dissolvidos em 1970, com 12 álbuns de estúdio publicados, desde o falecimento, procriaram três vezes mais do que em vida! John Lennon, pelo seu lado, em edições póstumas (10 álbuns de estúdio, em vida), já contabiliza uns respeitáveis dezoito títulos.
 

Não seria muito difícil prever que a passagem dos 70 anos (com a vantagem adicional de se colocar em boa posição na recta de partida para as compras de Natal) iria constituir mais uma boa oportunidade de negócio, amplificada pelo relevo que as celebrações, um pouco por todo o mundo, lhe atribuirão: concertos pela paz, na Islândia, junto à Peace Tower, com a participação de Yoko, e na City Winery, de Nova Iorque; tributos, exposições, cerimónias comemorativas e inaugurações de estátuas de Liverpool a Seattle e à Hungria; um documentário da BBC4 (Lennon Naked) e um possível segundo fôlego para o filme Nowhere Boy, de Sam Taylor-Wood, sobre os verdes anos de John. A personagem de ficção de David Kamp é que – apesar dos simpáticos milhões que não recusará – é capaz de não ficar muito feliz com tudo isto. Quando este lhe perguntou qual era a sensação de fazer 70 anos, o Lennon-da-twilight-zone respondeu-lhe: “Tal e qual como fazer sete anos! Mas também estou espantado por ter conseguido chegar até aqui. Se eu tivesse morrido, que susto! Vigílias em Central Park e Liverpool, freaks, à janela da Yoko, a cantar 'Strawberry Fields Forever'... consegue imaginar coisa mais aterradora do que isso?...”

30 June 2010

A SAIR DO VIVEIRO



Johnny Flynn - Been Listening

E, pela terceira vez este ano, tropeçamos naquilo que, de agora em diante, só poderá ser designado como o efeito-Laura Marling. Mas, antes de aí chegarmos, permitam-me um ligeiro recuo histórico e a indispensável contextualização. Londres, 2007: no já desaparecido Bosun’s Locker, de Fulham, e na Big Chill House, um bar de King’s Cross, encontrava-se, regularmente, um grupo de gente francamente imberbe mas perdidamente apaixonada pela mitologia folk, que incluía Emma-Lee Moss (futura Emmy the Great), Marcus Mumford, Laura Marling, integrantes avulsos dos Noah & The Whale, Johnny Flynn, Eugene McGuinness... aquele exacto tipo de genealogia intrincada e arriscadamente incestuosa que – por mais do que uma boa razão –, apesar de ainda em estado embrionário, ameaça poder vir a ser a única competição à altura para a que descobrimos (e nos obriga a profunda concentração) sempre que procuramos as relações “familiares” dos clãs Fairport Convention/Steeleye Span.



Caso vos interesse investigar o assunto, no “Independent” de 6 de Fevereiro do ano passado, Tim Walker ensaiava uma primeira "rota das pedrinhas" do que já é conhecido como a "nu-folk scene", viveiro de diversas notabilidades indie em ascensão (conferir acima) e de outras na rampa de lançamento. "Scene" que os respectivos protagonistas, obviamente, se apressam a negar que exista (“É o tipo de caracterização que me dá arrepios: parece uma história elitista de candidatos a figuras 'cool'. Somos uma comunidade musical aberta”, rosna Johnny Flynn) e perante a qual os inevitáveis defensores da “autenticidade” se irritam, não levando a bem que putos de sotaque "posh" se atrevam a reinvindicar como sua a sacrossanta tradição.



Laura Marling, então. A mesma ninfeta que – em modo coração-despedaçado – inspirou The First Days Of Spring, dos Noah & The Whale, a musa de Marcus Mumford em Sigh No More, dos Mumford & Sons, a autora dos óptimos Alas I Cannot Swim (2007) e I Speak Because I Can (2010) e motivo para alusão, sob forma de anagrama, no título da estreia de há dois anos, de Johnny Flynn, A Larum (aliás, Laura M). E, ainda que apenas numa única canção ("The Water"), ei-la também presente em Been Listening, a simultânea confirmação de que a "nu-folk scene" londrina é algo de bem mais promissor que o "free-folk" transatlântico e de que Johnny Flynn – sul-africano de nascimento, actor shakespeareano, poeta, 27 anos – é, com toda a certeza, um dos "nu-folkers" a que vai ser obrigatório prestar atenção. Porque o que “ele tem andado a ouvir” e transparece, já muito satisfatoriamente digerido, é tanto a riquíssima herança dos Thompsons, Hutchings e Carthys como, naturalmente, aquela mais recente de Morrissey ou Jeff Buckley, rasgadas por uma ou duas labaredas da guitarra de Anna Calvi. Milagrosamente, sem qualquer sombra de atrito, incompatibilidade ou razão para suspeita de manobra calculada, num magnífico álbum que contém onze das mais perfeitas canções que, este ano, iremos poder escutar.

(2010)

16 December 2007

THE BROTHERHOOD OF THE UNKNOWN * (III)
(* segundo David Thomas: "The first Pere Ubu record was meant to be something that would gain us entry into the Brotherhood of the Unknown that was gathering in used record bins everywhere")


Anywhen - The Opiates

O melhor disco de Jeff Buckley. O melhor disco de David Sylvian. O melhor disco de John Cale. O melhor disco dos Tindersticks. O melhor disco de Scott Walker. O melhor disco dos Blue Nile. O melhor disco dos Divine Comedy. Sim, esses todos são apenas um só, chama-se The Opiates e a entidade colectiva na qual as outras, individuais, se materializam dá pelo nome apropriadamente vago de Anywhen e provém de Gotemburgo, na Suécia. É, aliás, para música como esta que deveria ter sido expressamente inventado o termo "fusão" mas nunca naquele sentido em que nos habituámos a empregá-lo. Porque o que neste álbum se passa é verdadadeiramente uma assombrosa fusão, dir-se-ia, espiritual, de personalidades musicais que nada tem rigorosamente a ver com o habitual jogo de referências cruzadas, de citações e pequenos furtos estéticos em que se transformou considerável parte da frivolidade "pós-moderna" (muitas vezes paradoxalmente interessante) da música actual. Aqui convém dizer que, na realidade, a "entidade colectiva" é, afinal, ela própria, quase individual. A saber, o sociofóbico Thomas Feiner (esporadicamente acompanhado pelo que resta dos Anywhen originais, músicos dispersos e, essencialmente, a orquestra sinfónica de Varsóvia), polo magnético de atracção para o qual converge uma espécie de campo de forças estético múltiplo que dá origem a uma variedade de esquizofrenia ou "split personality" musical onde, e é isso mesmo o mais impressionante, a psicopatologia adquire uma coerência, lógica e método absolutamente convincentes.


Numa única canção (transportada por avassaladoras orquestrações sinfónicas, assente unicamente sobre dispersos arpejos de piano ou guitarra ou recorrendo a secções de sopros sobre fundo subliminar de "bruitage" indistinto) e em todas elas, de um momento para outro, perplexos, ficamos sem ser capazes de dizer se são Stuart Staples ou Sylvian que cantam, se estamos a escutar Paul Buchanan ou John Cale (o de Music For A New Society ou o de Paris 1919?), se foi a alma de Jeff (ou Tim?) Buckley que, sob o efeito de qualquer "opiate", desceu sobre esta música e, irremediavelmente, se apossou dela, transformando-a num campo de batalha entre sombras e espectros. Pelo meio, segundo Feiner, há algo como um programa de vida retirado da compreensão do sentido de uma linha de diálogo de "Fight Club": "Doing a job we hate to buy things we don't need". Dito apenas assim, parece (parece?) demasiado prosaico para a transcendência de The Opiates. Mas, lá dentro, em pronunciamentos como "Here come greetings from the fires of dusk, from all the places you never dared to walk, you never saw the silent battle zones beneath your towers and beneath your gardens", há muito mais substancial matéria de reflexão. Vivam sem este disco, se forem capazes. (2001)