31 August 2007

CRÓNICA DOS DANADOS POP



Richard Thompson - 1000 Years Of Popular Music




Grinderman - Grinderman




Nick Cave & The Bad Seeds - The Abattoir Blues Tour




Lou Reed - Rock And Roll Heart




John Cale - John Cale




The Pogues - Poguevision

Anda tudo, quase sempre, à volta do mesmo: às tantas, pelo meio de “Love Bomb”, Nick Cave – na sua nova encarnação colectiva, Grinderman – expele este mimo: “Two thousand years of Christian history, baby, and you ain’t learned to love me yet”; a Richard Thompson, bastaram mil anos para compreender como, entre “Summer Is Icumen In” (de W. De Wycombe, 1260) e “Oops!... I Did It Again” (“uma canção pop clássica que, se for retirada das mãos de quem, originalmente, a cantou, poderá revelar algum do seu esplendor”, Thompson dixit), vai só um pulinho, da imaginária inocência “primordial” à sua mera existência vestigial contemporânea (“you think I’m in love, that I’m sent from above, I’m not that innocent”); Shane MacGowan esvazia mais duas ou trinta garrafas e, entaremeladamente, rosna “We watched our friends grow up together, and we saw them as they fell, some of them fell into Heaven, some of them fell into Hell”; e, algures por entre uma biografia bipartida dos Velvet Underground, John Cale sintetiza telegraficamente a tempestuosa aventura do grupo em seis palavras: “misfits get together and create art”. Não é certo que todos acreditem que Deus morreu mas não restam muitas dúvidas que nenhum deles se sente lá muito bem... e tudo isso – em formato DVD ou CD – cabe integralmente nas inúmeras configurações dessa extraordinariamente maleável criação do século XX, a canção pop.



Por acaso, Richard Thompson não é exactamente dessa opinião: em 1000 Years Of Popular Music (o DVD e duplo CD que regista um dos seus concertos, em S. Francisco, da digressão que deu origem ao álbum homónimo de 2003), empenha-se na demonstração de como “a música popular, através dos tempos, se apresenta sob as mais variadas formas e, à medida que as formas antigas vão sendo ultrapassadas, por vezes o bebé é atirado fora com a água do banho – grandes ideias, melodias, ritmos e estilos ficam esquecidos por entre o pó da história; vamos, então, procurar o que ficou lá para trás e ver se ainda funciona”. Isto é (de acordo com o alinhamento do DVD), existe tanto espírito pop nos séculos XIII, XV, XVI, XVII ou XIX (de De Wycombe e Orazio Vecchi a Thomas Morley e tradicionais vários) como nas operetas de Gilbert & Sullivan, na folk, nos clássicos de Cole Porter, no honky-tonk mais encardido ou na pop propriamente dita dos Easybeats, Kinks ou... Britney Spears. Estávamos fartos de saber que Thompson é um enorme guitarrista e um autor de canções superlativo. Aprendemos também, a partir de agora, que todo o seu “doom and gloom” esconde, afinal, uma faceta de divertidíssimo “entertainer” com costela de pedagogo que (acompanhado por Judith Owen – voz e teclados – e Debra Dobkin – voz e percussões) levou à letra da melhor forma o desafio que, em 1999, a “Playboy” lhe dirigiu para compilar uma lista das “dez canções do milénio”.

A veia milenarista de Nick Cave é, igualmente, lendária: um sanguinário Jeová espreitava através das trevas de todas as assombrações, meio-Faulkner, meio-Flannery O’ Connor, dos Birthday Party e Bad Seeds iniciais e deveríamos ter suspeitado que o apaziguamento neo-cristão inaugurado com The Good Son (1990) não haveria de durar sempre.



Se Nocturama (2003) e o duplo Abattoir Blues/The Lyre Of Orpheus (2004) – até pela mais acentuada partilha com os Bad Seeds do trabalho de composição – já davam a entender que o fel voltara a borbulhar, a entidade (semi)anónima Grinderman não se entretém com ambiguidades: Cave, Warren Ellis, Martin Casey e Jim Sclavunos, barbados e desmazeladamente rústicos como profetas bíblicos (ou colando-se à pele de qualquer uma das aterradoras personagens de The Proposition – o assombroso filme de John Hillcoat para que Nick Cave escreveu o argumento e, com Ellis, a música), entregam-se a uma recuperação do ruído como matéria-prima, da alma danada dos blues como essência e do desbragamento enquanto princípio estético e, num novelo de “loops” ásperos de violino e coices eléctricos de guitarra (o próprio Cave), vomitam enormidades do jaez de “a little consensual rape in the afternoon and maybe a little more in the evening” ou “We are artists, we’re mathematicians, some of us hold extremely high positions, but we are tired, we’re hardly breathing and we’re free, go tell the women that we’re leaving”. O elo de ligação com as etapas anteriores, esse, encontra-se disponível nos concertos dos dois magníficos DVD de The Abattoir Blues Tour (com extras de documentário e videoclips promocionais).

Membros fundadores da confraria dos danados, Lou Reed e John Cale partilham, em Rock And Roll Heart e John Cale, a história da banda por influência da qual milhares de outras surgiram.



As sequências que documentam a história dos Velvets, em ambos os DVD, complementam-se mais do que se repetem (da pop “de linha de montagem” dos Primitives e da coabitação com a vanguarda de La Monte Young ao esquálido Café Bizarre, à Factory de Warhol, ao Exploding Plastic Inevitable e ao pesadelo hippie de S. Francisco, até à separação definitiva) mas é no que respeita ao percurso posterior de cada um que o documentário acerca de Reed se revela incomparavelmente mais rico que o de Cale: onde, num, a linha biográfica é perseguida quase ano a ano – e esclarecida pelos múltiplos depoimentos de David Byrne, Thurston Moore, Billy Name, Jonas Mekas, Jim Carroll, Patti Smith, Nan Goldin, Lee Ranaldo, Suzanne Vega ou David Fricke –, no outro, há omissões, saltos temporais e ausências inexplicáveis: é admissível uma biografia de John Cale na qual não figura sequer uma vaga alusão a Music For a New Society?...

Poguevision recolhe, enfim, a totalidade dos videoclips dos Pogues que, sem excepção, mereceriam muito mais o título daquele por que o desfile começa, “Streams Of Whiskey”. Maioritariamente toscos e notoriamente produzidos com um orçamento inversamente proporcional ao normal grau de embriaguês de Shane MacGowan, acabam, no entanto, por reflectir com apreciável fidelidade a atmosfera mental de um formidável “songwriter” e de uma banda que fizeram da dissipação e do excesso um modo de vida regular.



Os adeptos do videoclip como subcategoria da “curta” audiovisual deverão, contudo, contentar-se com “Miss Otis Regrets”/”Just One Of Those Things”, “Summer In Siam”, “Fairytale Of New York” ou – de longe, o melhor – “Yeah, Yeah, Yeah, Yeah, Yeah”, uma delirante e vertiginosa viagem entre a pop-a-preto-e-branco dos “early sixties” e o seu lisérgico desfecho final em arco-íris. (2007)

29 August 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (X)



"O que eu faço é escrever canções com três patas que conseguem ter-se de pé sozinhas. Desenvolver uma canção em estúdio é como cortar um dedo para o fazer entrar numa luva. Corre-se sempre o risco de ficar com mais luva do que dedo. Em Bone Machine, o que quis foi criar esqueletos de canções, não sei se cheguei lá ou não. Gosto de lengalengas simples e directas. Escrever uma canção é como talhar um pau em bico. Gosto de canções escritas em hora e meia, gosto do trabalho que isso implica. Algumas canções são feitas de madeira, outras de vidro e outras de papel. Essas, quando o vento pára, deixam de voar, termina a sua existência.

(...)

"O rock é interminavelmente obrigado a corrigir-se a si próprio como acontece com todas as músicas vivas. É como uma parede que é sucessivamente coberta de cartazes, cobertos por graffiti e recobertos por outros cartazes. Mas o rock tornou-se um enorme cartel, um grande negócio, uma feira.

(...)

"Quando se faz uma digressão, é necessário inventar todas as noites novas circunstâncias. Gosto de me transformar: em animais, em insectos diferentes, gosto de uivar, de gritar... Numa sala silenciosa, tem-se demasiada consciência da própria voz. Gosto da minha voz, posso fazê-la pequenina ou enorme. E, se tiver uma laringite ou ficar afónico durante uma digressão, ninguém repara... Cantar uma canção em palco é como tentar beber um copo de água com uma mão artificial. Gostava de descobrir um processo que, para mim, fosse simples. Sete músicos, luzes, todo esse ritual é demasiado esgotante. Apetecia-me acabar com isso tudo. Só precisava de uma máquina de fumos, um megafone e um palco do tamanho de uma mesa. Actuava em parques de estacionamento diante de pessoas que tivessem pago mil dólares sob a garantia de que a sua vida iria ser mudada para sempre.

(...)


"As canções são grandes viajantes e vêm de sítios muito distantes e diversos. Umas vezes, somos nós que as encontramos, outras, são elas que dão connosco. Às vezes, quando chegam, andamos em viagem. Outras, já somos demasiado velhos. Muitas passam tão depressa que nem tempo temos de as ver. Só as sentimos passar por nós como uma rabanada de vento. O importante é apanhá-las em voo, fabricá-las rapidamente e guardá-las bem. Senão, fogem para sempre.

(...)




"Durante as gravações de Bone Machine, apercebi-me de coisas que antes já entendia mas não era capaz de definir: tocar num estúdio é um sofrimento, uma tortura absolutamente antinatural e frustrante. E, no entanto, toda a gente paga para lá estar! Além disso, os músicos parecem-me estátuas de sal, seres fantásticos de uma outra dimensão. São como aquelas cabeças de animais nos salões das casas dos grandes caçadores. É necessário que tudo isso mude. É imprescindível humanizar a música gravada.

(...)

"Nas minhas canções, não procuro o lado triste e sombrio da vida mas também não sou insensível ao ponto de fechar os olhos e fingir que nada de mau sucede à minha volta. O meu trabalho é claro: contar histórias. E, de quando em quando, algo me murmura ao ouvido coisas bonitas e tristes, dramas sangrentos e histórias de veludo. Escuto-as todas e depois escolho. Em geral, prefiro as mais reais, aquelas que me fazem cravar as unhas no tampo da mesa sem dar por isso. Quando dou pelo sangue, sei que a canção é boa.

(...)

"Em Bone Machine, a morte é o único tema. Em última análise, é um assunto com que temos de lidar. Pode-se lidar com ele mais cedo ou mais tarde mas isso acabará inevitavelmente por acontecer. Algum dia lá iremos fazer bicha para beijar o cú ao diabo. É evidente que teremos lugares diferentes na fila e o número da senha de alguns será mais alto. E também há-de haver uns espertalhões a querer passar à frente...

(...)

"Tenho andado a folhear a Bíblia mas só quando ando à procura de qualquer coisa. Recordei-me de como o Apocalipse é particularmente dramático. Por outro lado, aqui onde vivo há imensos abutres. Tenho andado a observá-los. Está a ver ali aqueles sete postes? Em cima de cada um há um abutre. Estão todos a observar um coelho no meio da estrada, à espera que os carros abrandem ou parem. Atiram-se sempre primeiro aos olhos. É como um pequeno 'hors d'oeuvre'... Se nos deitamos meia hora debaixo de uma árvore, começam logo a sobrevoar-nos em círculos, a notícia espalha-se depressa...

(...)

1992

(2007)

28 August 2007

CANÇÕES DE AMOR E ÓDIO



Richard Thompson - RT: The Life And Music Of Richard Thompson

Ambrose Bierce bem se poderá ter divertido a amarrotar o ego de muito e bom músico (no Dicionário do Diabo, entre vários outros amáveis exemplos, definia "acordeão" como "instrumento que está em harmonia com os sentimentos de um assassino" e explicava que "piano" era um "utensílio de salão que serve para subjugar o visitante impenitente; para o pôr a funcionar, primem-se as teclas e deprimem-se os ouvintes") que não foi isso que impediu Richard Thompson de, na contracapa do seu primeiro álbum a solo (Henry The Human Fly, de 1972), citar a sua definição de "mosca": "um monstro do ar que presta obediência a Belzebu. (...) Ela é o Rei, o Chefe, o Patrão! Saúdo-a". Nada de surpreendente em Thompson.



Quando o interrogaram acerca do significado do título de Mirror Blue (1994), referiu o poema de Tennyson, "The Lady Of Shalott" ("And sometimes thro' the mirror blue, the knights come riding two and two, she had no loyal knight and true, The Lady Of Shalott") e esclareceu que "a Senhora é uma figura amaldiçoada, apenas vê a realidade como um reflexo. Se olhar directamente para o mundo, morre. O mesmo se poderia dizer da música. Não que, por causa dela, possamos morrer, mas porque se trata apenas um reflexo da realidade".



Richard Thompson, nada de confusões, é o exacto contrário do "name dropper". Mas, a um dos seus biógrafos, Patrick Humphries (Richard Thompson: Strange Affair, The Biography), chegou a confessar que não seria uma ideia completamente idiota incluir uma bibliografia nas capas dos seus discos. Dave Smith (em The Great Valerio - A Study Of The Songs Of Richard Thompson), por outro lado, raia o absurdo na tentativa de demonstrar como praticamente tudo o que ele compôs se inscreve na directíssima descendência de T.S. Eliot, Yeats, Blake, Shakespeare, Robert Graves, a Bíblia e o Corão (para ficarmos por uma síntese moderada).



Ainda que, de caminho, se tenha dado ao trabalho de — nas trezentas e tal páginas da exegese — demonstrar como, nas canções de Thompson (ou como ele postula: "numa típica canção de Richard Thompson"), estão invariavelmente presentes, pelo menos, oito "clusters" temáticos, de que os mais frequentes são "violência/armas/sangue/guerra/tortura" (64%), "amor/ódio/coração" (56%), "riqueza/pobreza/roubo" (50%), "morte/sepultura/fantasmas" (40%) e "luz/trevas/dia/noite/sol/lua" (36%). Adicione-se a isto a afirmação de Greil Marcus que garante que "muitas vezes, Richard Thompson parece cantar os anos da peste, caminhando atrás de uma carroça cheia de cadáveres", recupere-se o que Thackeray dizia do mesmo Tennyson mencionado umas boas linhas atrás ("ele lê todo o tipo de coisas, engole-as e digere-as como uma gigantesca boa-constrictor poética") e teremos o retrato acabado de Richard Thompson "songwriter" erudito, gótico e infernal, profeta de todas as abominações e apocalipses.



É uma boa parte da verdade mas está bastante longe de ser a verdade toda. Porque esse é precisamente o mesmo Richard Thompson que, em 1000 Years Of Popular Music (2003), acha perfeitamente razoável incluir nos "all time classics" do milénio, "Oops! I Did It Again", de Britney Spears (é verdade, ele até tem um bem avinagrado sentido de humor). E que, a Paul Zollo (Songwriters On Songwriting), indica como modelos Buddy Holly, The Shadows, Scotty Moore, Les Paul, Django Reinhardt e, sobre todos, Bob Dylan. E Phil Ochs. Do qual, fez questão de actualizar, em contexto pós-Iraque, o militante "I Ain't Marching Anymore". Mas também aquele outro que, por ocasião do nascimento da filha, Muna, escreveu a "lullabye" — "The End Of The Rainbow" — definitivamente suicidária ("I feel for you, you little horror, safe at your mother's breast, no lucky break for you around the corner, 'cos your father is a bully and he thinks that you're a pest, and your sister, she's no better than a whore"), o mesmo que suplicou que, no dia em que alinhasse na peganhenta tradição confessionalista dos "singer-songwriters", lhe dessem um tiro na testa, e o que (mas, façam um esforço, compreendam a crucial diferença) desde há mais de trinta anos, aderiu ao sufismo islâmico.



São todos estes Richard Thompsons que se podem encontrar nesta sua "arca da vida" tematicamente organizada. Nem uma só gravação foi antes publicada. Ninguém também sonhe — entre incontáveis "bootlegs", inúmeras colaborações, obscuridades avulsas, versões alternativas, reeencontros, bandas paralelas, amabilidades várias e gravações oficiais — possuir-lhe, alguma vez, a interminável discografia exaustiva. Mesmo no que respeita a clássicos miseravelmente ignorados como os magníficos Industry (1997) ou o renascentista, escatológica e exuberantemente radical, The Bones of All Men (1998). Mas, desta vez (na compilação, até aqui, indiscutível, do que nunca antes ouvimos), há cinco CD — as marcas urbanas de Londres, as escolhas dos fâs, a guitarra além-estrelas, as versões e os inéditos absolutos —, onde, dos Fairport Convention ao estado de graça com Linda Thompson e a tudo o que veio a seguir, se pode ganhar infinitamente mais do que muitas vidas a abocanhar sofregamente música e palavras. (2006)

27 August 2007

PEQUENOS MONSTROS



Richard Thompson - Front Parlour Ballads

No excelente site de Richard Thompson, existe uma secção — "Viewpoint" — onde se reúne um conjunto de declarações e citações suas. E, aí, se podem descobrir duas capazes de iluminar bastante não apenas o conjunto da sua obra como, em particular, este novo Front Parlour Ballads: 1) "Na situação de 'songwriter', estamos sempre presentes no interior da canção. Se nos aproximarmos daquilo que os seres humanos são, estamos a escrever sobre experiências comuns. Fazemos todos as mesmas coisas, por isso, se compreendermos alguém, compreendemo-nos também a nós mesmos"; 2) "É de desejar que o público não se sinta confortável". Ficamos, então, autorizados a pensar que, em qualquer uma das diversas personagens que povoam estas treze novas canções — interpretadas em quase solo absoluto e formato austeramente acústico — existe pelo menos um átomo da experiência, da memória ou dos amores e ódios de Thompson (sem que isso obrigue a classificá-las de autobiográficas) e, após as escutarmos, não nos resta senão confirmar uma vez mais que elas nos deixam tudo menos confortáveis.



A espécie humana não é coisa bonita de se ver e o espelho que Richard Thompson repetidamente lhe coloca à frente devolve uma imagem ainda menos lisongeadora: do "socialite" de papelão ("A life of volcanic activity left him nothing to spout but hot air"), ao "lumpen" de subúrbio ("We were armed right to the teeth, we fired a friendly volley and we only maimed a few") ou ao sórdido "pato bravo" ("She thought the leopard's spots were paint, she thought she'd turn you to a saint, kept hoping, though the hope grew faint, that you were better bred"), desfila uma colecção de pequenos monstros e aleijões ontológicos ("Sometimes I long for the solitary life, parents long gone, no kids, no wife, sister somewhere in Australia, never did kep in touch, sex no more than a how-do-ye-do with a copy of Tit-Bits in the loo") em instantâneos de sombrias (e magníficas) melodias e arranjos severos. Outro grande e amargo álbum de Richard Thompson. (2005)

24 August 2007

ESPREITANDO AS ARCAS DO TESOURO

Aos Fairport Convention, deve-se muito mais do que à maioria das bandas de qualquer género: a fundação do folk-rock britânico (alegadamente, à maneira de Cristovão Colombo: pretendiam emular os Jefferson Airplane e foram ter a outro lugar muito diferente); uma discografia portentosa e interminável com What We Did On Our Holidays, Unhalfbricking e Liege And Lief à cabeça; uma cantora e "songwriter", Sandy Denny, sobrenaturalmente excepcional; uma ilustríssima descendência (Steeleye Span, The Bunch, Fotheringay, a série Morris On, as várias Albion Bands, Home Service, Carnival Band e é melhor ficarmos por aqui...); e um gigantesco guitarrista e autor-compositor, Richard Thompson.
Foi o próprio Thompson que, no prefácio de uma biografia ainda por publicar de Sandy Denny, da autoria de Pamela Murray Winter —, escreveu: "Por estes dias, não ouvimos Sandy Denny na rádio. Os seus discos, apesar de poucos, não se ajustam aos formatos correntes, não provocam paroxismos aos programadores, não põem os ouvintes a votar. Nunca se pensa nela a propósito da nostalgia dos êxitos dos anos 60 e 70: ela nunca teve êxitos. Estações de rádio de rock? Nunca vendeu álbuns em número suficiente. Até Nick Drake se consegue insinuar num ou noutro programa de 'easy listening', com a sua música embaladora dissimulando a dor que a habita através de uma superfície atraente, algo de romântico a que um culto se pode agarrar. Mas onde está o culto de Sandy? Onde estão os vigilantes da sepultura à maneira de Jim Morrison? As dissertações culturais dos suplementos? Os epitáfios do South Bank Show e os maus 'biopics' que nos informam acerca de quem deverá ser importante para as nossas vidas? Algures pelo caminho, os gurus do gosto falharam na sua missão junto do rebanho, não conseguiram dizer-nos, após vinte anos de oportunidades para isso, que Sandy Denny foi a maior artista britânica da sua geração". E, depois de caracterizar o encontro entre os Fairport Convention ("um grupo de tímidos e reservados intelectuais do Norte de Londres") e Denny em 1968 — altura em que esta se juntaria ao grupo substituindo a anterior cantora Judy Dyble — como "uma colisão entre um Mini e um camião carregado de tijolos", Thompson confessa: "Ela ensinou-nos a exprimir as nossas paixões musicais, deu-nos uma voz autêntica no limite mais agudo da nossa criatividade e fez-nos deitar cá para fora tudo o que tínhamos sem nos preocuparmos com mais nada. (...) Talvez seja preciso uma campanha concertada para colocar Sandy no mapa, no lugar que merece. É tempo para uma justa avaliação de Sandy e talvez seja apenas uma questão de clima: agora que a poeira assentou acerca dos excessos hippies dos anos 60, podemos perceber melhor quem era verdadeiramente criativo e quem era apenas perturbado".

(som periclitante...)
É este o texto que também abre o indispensável "booklet" biográfico que se inclui naquela que poderá ser a última peça essencial para essa urgente reavaliação de Sandy Denny: a sumptuosa caixa de cinco CD, A Boxful Of Treasures — aliás, o título original da canção (que aqui se escuta na primitiva versão) que acabaria por se chamar "Fotheringay" —, viagem diagonal através da preciosa discografia de Alexandra Elene MacLean Denny, nascida a 6 de Janeiro de 1947 numa pacata família da classe média de Wimbledon e desaparecida 31 anos depois, vítima de hemorragia cerebral, em consequência de um absurdo acidente doméstico.


(imagem e som... é o que há)
Aqui, em 90 faixas (das quais, mais de um quarto inéditas), tanto das gravações "oficiais" com os Strawbs, Fairport, Fotheringay, The Bunch, Ian Matthews ou a solo, como de "home tapes", registos ao vivo ou sessões de rádio, fica absolutamente patente o desmedido talento de alguém que, da folk, ao rock ou à canção de veia mais tradicionalmente clássica, desenhou um percurso absolutamente singular como cantora (só Linda Thompson e June Tabor se arriscariam a ser comparadas com ela) e "songwriter" de melodias enganadoramente serenas e textos de uma melancolia perturbada que, ainda assim, não deixavam verdadeiramente adivinhar uma real personalidade terminalmente excessiva, desequilibrada, insegura e, ano após ano, crescentemente alcoólica. Foi a 27 de Novembro de 1977, em Londres, no Royalty Theatre de Portugal Street, que Sandy Denny deu o seu ultimo concerto. Encerrou-o com "Who Knows Where The Time Goes?". Uma das suas mais belas canções para que ela não teve (e nós continuamos a não ter) resposta.

Sobre Richard Thompson, entretanto, o momento também é favorável para que definitivamente fique clara a invulgar dimensão (como autor-compositor e guitarrista) daquele sobre quem Greil Marcus escreveu "tudo estava lá desde o início - ou, pelo menos, desde aquele dia em 1968, quando, como elemento dos Fairport Convention, escreveu as linhas impossivelmente duras e impiedosas de 'Tale In A Hard Time': 'Take the sun from my heart, let me learn to despise'". Ou que, enquanto objecto de estudo e de análise nas monumentais 330 páginas que lhe dedica Dave Smith em The Great Valerio - A Study Of The Songs Of Richard Thompson, não apenas o coloca na descendência directa de Yeats, Blake ou Eliot como — citando o que este último afirmou sobre John Webster — o descreve "much obsessed with death, he saw the skull beneath the skin". Identificar "o melhor de Richard Thompson" (em duo com Linda Thompson ou a solo) é tarefa de catalogador psicótico. O melhor é praticamente tudo. Mas e recente reedição ("digitally remastered" e com faixas-extra) dos três primeiros álbuns com Linda, I Want To See The Bright Lights Tonight (1974), Hokey Pokey (1975) e Pour Down Like Silver (1975) bem como do DVD The Richard Thompson Band/Live In Providence pode abrir, sem dúvida, duas ou três portas bem iluminadas sobre uma das mais impressionantes discografias de sempre. Porque, se Hokey Pokey e Pour Down (coincidentes com o momento de conversão de Thompson ao gnosticismo sufi islâmico) são indispensáveis colecções de canções em absoluto estado de graça, é francamente difícil encontrar um disco mais perfeito e inesgotável do que I Want To See The Bright Lights Tonight: "When I Get To The Border" é a exacta metáfora-Houdini para a fuga à desgraçada realidade, continuada pelo polaroide de desesperado hedonismo proletário da faixa-título e pela vingança "lumpen" de "Poor Little Beggar Girl"; "The Calvary Cross", "Withered And Died", "The Great Valerio" e "Down Where The Drunkards Roll" são quase puro Fellini; "Has He Got A Friend For Me" é "pathos" terminal e a devastadora "The End Of The Rainbow" é a canção de embalar ("Life seems so rosy in the cradle, but I'll be a friend, I'll tell you what's in store, there's nothing at the end of the rainbow, there's nothing to grow up for anymore") que reduz os Joy Division à dimensão de felizes e despreocupados escuteiros. Gravado a 23 de Julho de 2003, em Providence, Rhode Island, o DVD, em treze canções (e oito extras repescando aparições de televisão passadas), faz o ponto acerca do Richard Thompson actual e revisita alguns dos santuários do seu "songbook". Mas, acima de tudo — particularmente numa versão arrasadoramente incandescente de "Shoot Out The Lights" —, faz entrar pelos ouvidos dentro a evidência de Thompson ser o mais assombroso guitarrista que o mundo faz questão de não reconhecer. (2005)

23 August 2007

INTERNATIONAL RUMI YEAR (IV)
"Only the holder the flag fits into and wind. No flag"



Who makes these changes?
I shoot an arrow right.
It lands left.
I ride after a deer and I find myself
chased by a hog.
I plot to get what I want
and end up in prison.
I dig pits to trap others
and fall in.
I should be suspicious
of what I want.



Out beyond ideas of wrongdoing and rightdoing,
there is a field. I'll meet you there.
When the soul lies down in that grass,
the world is too full to talk about.
Ideas, language, even the phrase each other
doesn't make any sense.

(trad. Coleman Barks e John Moyne)

(2007)

21 August 2007

1 000 YEARS GREATEST HITS



Richard Thompson - 1000 Years Of Popular Music

A culpa é da "Playboy". Porque foi em resposta a uma solicitação dessa revista para fazer uma lista das melhores canções do milénio (subentendendo-se "do século") que Richard Thompson levou a sugestão à letra e não só a organizou a começar mesmo em 1056 (a "Playboy" acabaria por nunca a publicar) como, a partir daí, concebeu um espectáculo ao vivo e, agora, este álbum. O que inclui, então, a história privada dos "greatest hits" da música ocidental segundo Thompson? Bom, o disco, começa no sec. XIII com "Sumer Is Icumen In", de John Farnsette, monge da abadia de Reading e chega até "Oops!... I Did It Again", de Britney Spears. Exactamente, leram bem. E, na opinião (que não me atreverei a contrariar) de Richard Thompson, são todas magníficas canções que, num caso ou noutro, apenas sofrerão de imerecida má reputação.


Depois, num total de vinte e três temas (que se concluem, fechando o círculo, com "Marry, Ageyn Hic Hev Donne Yt", fragmento anónimo bretão do sec. XIII... na verdade, uma versão faux-medieval de "Oops!... I Did It Again"), passeia-se por "Cry Me A River", jazz via-Nat King Cole e rockabilly via-Jerry Lee Lewis, "When I'm Laid In Earth" do "Dido And Aeneas" de Purcell, blues, Who, "chart hits" de 1500 como o delicioso "So Ben Mi Ca Bon Tempo", de Orazio Vecchi, "labor songs", ABBA, Gilbert & Sullivan, Beatles, Hoagy Carmichael, folk, Squeeze, números de "music hall", Prince, Stephen Foster ou o magnífico "Shenandoah" e lança-lhe um pouco de vários outros saborosos temperos com que confecciona um opíparo divertimento erudito transformado em concerto integralmente acústico (com as percussões de Michael Jerome e a óptima voz de Judith Owen) repleto de surpresas, subtis virtuosismos de guitarra e excelente humôr. O mundo seria bem melhor se houvesse mais dois ou três Richard Thompsons. (2003)

20 August 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (IX)



"As canções dependem do humor. Algumas levam tempo a encontrar-nos, outras escrevem-se muito rapidamente, outras ainda são como sonhos... Quando se escreve uma canção nova nunca se sabe durante quanto tempo ela nos vai agradar ou mesmo se vai agradar. Algumas assemelham-se a machados, outras a canivetes. Umas são como fósforos ou preservativos: usamo-las uma vez e depois deitamo-las fora.

(...)

"Gosto de canções meteorológicas. Gosto quando alguém fala do tempo numa canção. Gosto das canções que se parecem com postais: está muito frio, cortei um dedo, dei um passeio pelo jardim, vi três cães pretos... Adoro isso, os pormenores da existência.

(...)

"Não sou muito organizado. Não faço parte de nenhum movimento nem de nenhum grupo. E depois, ninguém sabe o que é correcto e o que não é. A única coisa de que estou certo é que viemos todos de Marte. E que estamos aqui para deitar fogo à Terra e reduzi-la a cinzas. Foi por isso que os homens se lançaram na corrida espacial, para voltar ao sítio de onde vieram. Todos os programas espaciais têm um único fim: partir. Já fizemos demasiada merda na Terra e já não podemos aqui viver. Morreram os animais todos, morreram as árvores, o céu está a rasgar-se: é preciso encontrar outro lugar para viver. Não sei porque estamos aqui na Terra. Ninguém o sabe e muito menos eu.

(...)



"Escrevi 'Earth Died Screaming' apenas para dizer que a Terra está a morrer, é verdade, enquanto eu estou deitado na cama a pensar numa rapariga. É politicamente incorrecto! Estar-se nas tintas para a terra e a pensar numa rapariga! É uma canção que fala do fim do mundo. Mas o fim do mundo acontece todos os dias em qualquer lado, para toda a gente, até para mim e para a rapariga com quem sonho. Temos de enfrentar o fim do nosso mundo. Os nossos ossos transformar-se-ão em pó e hão-de vir pessoas caminhar em cima deles. E o pó dos nossos ossos vai acumular-se até recobrir a Terra de areia humana e as serpentes vão poder finalmente rastejar sobre nós em paz.

(...)

"Os homens são as únicas criaturas terrestres que usam sapatos. É certamente o que eu prefiro na 'civilização'. A primeira vez que um homem construiu uma roda, serviu-se dela como ornamento e pô-la ao pescoço. Foi só depois disso que se deu conta que ela podia servir para outras coisas...

(...)

"O nosso gosto acerca do que é uma 'bela música' ou uma 'bela canção' pode mudar. A música é geralmente mais bela antes de ser gravada. Quando gravamos, na maior parte do tempo, pegamos numa música, torcemos-lhe o pescoço, esfolamo-la e esprememo-la como um limão. Por acaso, adoro o som que isso faz! Mas não gosto de gravar, de fazer discos. Não me parece que a música goste de ser gravada. Mas gosto de trabalhar a música, tomar decisões acerca dela: esta canção devia ser mais estranha, aquela ali mais violenta, aquela outra não tem a côr certa. Detesto que outra pessoa tome esse género de decisões sobre a minha música. Afastem a merda desses instrumentos para longe de mim! Arranquem-lhes a puta da cabeça! Mijem-lhes dentro! Quando nos batemos por coisas desse género, quando a porra duma canção nos dá realmente a volta ao juízo, quando nos apetece que ela estique o pernil e nos dá gozo vê-la ali a sangrar no chão e dizer-lhe:'Tu, minha badalhoca, nunca hás-de entrar no meu álbum!' Estou sempre pronto a morrer por uma canção assim e pronto a matar por causa dela... Gosto de fazer coisas dessas, arrancar um olho a uma canção porque não presta e enxertá-lo noutra. Esta tem um olho como deve ser, a outra tem a pele bonita... Gosto de canibalizar a música. Quando fazemos um álbum, escrevem-se cinquenta canções e, inevitavelmente, algumas ficam inacabadas. São apenas o pâncreas, o estômago ou os lábios que utilizaremos noutra.

(...)



"Todas as pessoas que tocam piano não têm senão um desejo que é vê-lo cair do décimo sétimo andar de um prédio! E a razão disso é ele ser tão pesado, estorvar tanto... Nunca podemos levá-lo connosco, é sempre um problema, acaba por nos devorar as tripas.

(...)

"Quando estou a trabalhar na minha música não sou preguiçoso. Noutras coisas sou: nos negócios, na amizade... Mas, quando estou a tocar, não sou preguiçoso, sou mais do género AAARGHH! Fico doido! Detesto fazer digressões, andar na estrada, detesto mesmo. Porque todas as noites há problemas diferentes para resolver... Preferia ser operado de coração aberto com um canivete suiço por alguém que não fosse médico a ter de voltar a partir em digressão e tocar todas as noites.

(...)

"Queixar-me! É o que eu gosto de fazer: cagar no mundo e queixar-me!

1992

(2007)

15 August 2007

SEVERAL REMARKABLE CURIOSITIES



Philip Pickett & Richard Thompson - The Bones Of All Men

Em primeiro lugar, convém dizer que o título completo do álbum, tal como vem na capa, é The Bones Of All Men and of several remarkable curiosities therein ocurring, being a compendium of Dances, Pavannes, Steps and such, played this time by Mr Philip Pickett with Mr Richard Thompson & The Fairport Rhythm Section. Depois, é útil esclarecer que "Mr Philip Pickett" é um daqueles músicos gloriosamente ecléticos como nós apreciamos, que não só é o responsável pelo departamento de "música antiga" do Shakespeare's Globe Theatre como dirige o New London Consort, foi membro da celebérrima Albion Band nos anos setenta e participou em diversos registos do não menos importante "Mr Richard Thompson", guitarrista e compositor emérito. Por fim, acrescente-se que The Bones Of All Men nasceu de uma sugestão de Joe Boyd (o lendário produtor dos Fairports) para um disco que combinasse instrumentos e reportório "antigo" com a estética do folk-rock electrico que os Fairport Convention, Steeleye Span e vários outros haviam inventado no final dos anos sessenta.



A escolha acabou por recair num conjunto de danças do século XVI e, para o interpretar, além dos notáveis já referidos, foram recrutados Paulo Beznosiuk ("o Heifetz do violino medieval"), Sharona Joshua (virginal, clavicórdio, orgão e piano renascentista), acompanhados da restante seita Fairport/Albion constituida por Simon Nicol (guitarra electrica), Dave Pegg (baixo) e Dave Mattacks (bateria). A referência subliminar é uma gravura em madeira de Holbein de onde resultam os "bones" do nome bem como a totalidade dos instrumentos de sopro executados por Pickett. E, para o que verdadeiramente interessa, The Bones Of All Men é mais outro título obrigatório (onde apenas, por vezes, se desejaria uma presença algo menos evidente de Dave Mattacks) a acrescentar àquela lista onde já se contavam necessidades básicas como Morris On ou The Compleat Dancing Master, preciosidades históricas de uma linhagem musical ilustre. (1998)

14 August 2007

O HORROR ECONÓMICO



Richard Thompson & Danny Thompson - Industry

Richard Thompson é o mestre eternamente ignorado da canção britânica. Já passou há muito o tempo em que era ainda possível imaginar que, mais tarde ou mais cedo, acabaria por aceder ao estatuto público de alguém como, por exemplo, Elvis Costello. Desde a época dos Fairport Convention até à actualidade, Thompson (além do mais, também um excelente guitarrista) habitou-se e habituou-nos à ideia de que a condição de "músico de culto" tinha sido criada a pensar exclusivamente nele e a verdade é que isso é quanto basta. Os discos vão sendo publicados regularmente, nunca trepam pelas tabelas de vendas, mas o seu nome circula de boca em boca, meia dúzia de iluminados cita-o como referência ou faz versões das suas canções e, pelo menos, I Want To See The Bright Lights Tonight (da indispensável série de álbuns que, entre 74 e 82, gravou com Linda Thompson) já deve ter garantido o lugar como um dos indiscutíveis a incluir nos referendos de Dezembro de 1999.
Industry, dividido a meias com o contrabaixista Danny Thompson (outro lendário "de culto" - será "a maldição dos Thompsons"? - originário dos Pentangle, banda "rival" dos Fairports nos primórdios do folk-rock britânico) é outra peça que se vai tornar, inevitavelmente, obrigatória.


Concebido como uma sequência de canções (de R. Thompson) e instrumentais (de D. Thompson) alusivas ao nascimento, ascensão e morte da indústria tradicional, do século XVIII à era pós-industrial, prolonga, de certo modo, um outro álbum (Hard Cash, de 1990) onde Thompson também participou e que se inspirava do mesmo universo social-realista enraízado na cultura proletária britânica.
O "horror económico" poderá ter-se tornado tema de "best sellers" mas é preciso reconhecer que em poucas circunstâncias ele foi retratado de forma mais gráfica e precisa do que em algumas canções de Richard Thompson : "Poor Little Beggar Girl" e "The End Of The Rainbow", de I Want To See The Bright Lights Tonight, 23 anos depois, continuam a fazer gelar o sangue...Industry oferece o pretexto concreto para Thompson dar livre curso ao desespero dos que ainda se recordam dos tempos "when a job was there for the steady and strong", para evocar os heróis anónimos dos piquetes de greve e do esplendor da modernidade industrial quando a máquina era um prodigioso Deus de aço, chegando, por fim, aos dias do encerramento em massa das fábricas e das minas onde a única esperança que resta é apenas um sucesso improvável na lotaria ("We don't care who runs the shop, left wing, right wing, curse the lot, a million quid talks sense to me, lotteryland's the place to be").
Como quase sempre acontece com Richard Thompson, as canções são portentosamente duras e amargas, geradas a partir do antiquíssimo veio da tradição folk mas enriquecidas de todos os experimentalismos e correntes paralelas com que ele, entretanto, se foi cruzando. A ligação "cenográfica" é estabelecida pelos temas de Danny Thompson, espécie de "knee plays" instrumentais (situados algures entre Kurt Weill, o jazz e uma estética "industrial" elaborada) escritos como um requiem para uma idade que, se era devastadoramente cruel, hoje já há quem a evoque como um paraíso perdido... (1997)

13 August 2007

THE BROTHERHOOD OF THE UNKNOWN * (I)

(* segundo David Thomas: "The first Pere Ubu record was meant to be something that would gain us entry into the Brotherhood of the Unknown that was gathering in used record bins everywhere")




Minotaur Shock - Chiff-Chaffs & Willow-Warblers

Tudo começou quando David Edwards decidiu apropriar-se do computador Atari de um budista de partida para o Tibete em demanda espiritual. Em lógica sequência, vendeu-o a um hippy e comprou um PC. O resultado foi a transformação de Edwards em Minotaur Shock, dois EP iniciais — Bagatelle e Motoring Britain — e, agora, este primeiro CD de longa duração. Tal como aos igualmente óptimos Manitoba e Boards Of Canada (ou aos bem mais antigos Ultramarine), foi-lhe colado o rótulo de "folk-tinged electronica" ou "futuristic fractured folk-music". A preguiça catalogadora é o que é mas até nem tem mal. Embora Chiff-Chaffs & Willow-Warblers seja consideravelmente mais do que isso.



O quê, então? Talvez a banda sonora para uma narrativa serenamente esquizóide realizada a partir de vertiginosas flutuações de "pitch" como ondulações de maré, interferências de rádio sobre extáticas transcrições sonoras do momento da aura epiléptica, obstinações de micro-melodias justapostas a frenesins de arritmia caótica, aguarelas bucólicas para rebanho, jardim zen e estenografia dadaísta, polaróides do luar nos Alpes de Urano, estilhaços microscópicos de ornamentos barrocos enxertados num monólogo de insectos, exercícios de aquecimento para os primeiros três segundos de uma cerimónia de defuntos, divertimentos para caixa de música e pianola num circo de gnomos, "rêveries" de absinto vertido a conta-gotas sobre uma paisagem de Legos, coreografias mecânicas para um exército liliputiano no palco de um clube de jazz. Provavelmente, a música que se escutará quando ao engenho do universo começar a faltar a corda. (2002)
WE'VE. ALL. DONE. IT.



"(...) Reviews are supposed to be part of a dialogue, even if the 'facilitator' isn’t part of the ongoing discussion. I’ve never written a review that I didn’t wish I could write again a month, or six, or twelve further on. I’ve even asked editors to allow me to 'revisit' books or discs I felt had received short or misleading shrift. Some think its quaint or something out of a Pol Pot self-criticism session. Most just point sadly to the pile of new stuff waiting to go out. So, onward, with teeth gritted against undue certainty.

With Against Interpretation always on my reference shelf in front of me, I vow every time I write a review header to concentrate on the thing itself, what it is in itself, how it makes me feel in a non-incidental way (...) and don’t, don’t, don’t treat a record like a lock that needs picking. And just about every time, the resolution doesn’t survive the first paragraph. Sorry, but we’ve all done it." Brian Morton


(obrigado ao Rui Tentúgal que me fez chegar o texto)

(2007)
IR À RAIZ



Nina Nastasia & Jim White - You Follow Me

Voz, guitarra acústica e bateria. Nina Nastasia nunca terá sido exactamente uma adepta da sobrecarga sonora no que aos chamados “valores de produção” diz respeito – ter Steve Albini como produtor único e constante já deverá significar alguma coisa – mas, nunca como agora, neste You Follow Me, terá optado de modo tão radical (no exacto sentido de “ir à raiz” última da música) por gravar canções como quem ergue uma casa apenas com pranchas de madeira e tijolo tosco. Escritas deliberadamente para este formato exíguo constituído exclusivamente por ela e Jim White (esteio dos Dirty Three e acólito de Nick Cave, PJ Harvey, Bonnie 'Prince' Billy e Smog), as canções, de que já aspiráramos a atmosfera seca e calcinada em Dogs (1999), The Blackened Air (2002), Run To Ruin (2003) e On Leaving (2006), ficam, aqui, como que reduzidas a espasmos emocionais, confrontos primordiais entre farrapos de melodia e convulsões rítmicas, qualquer coisa fundamente visceral e quase instintiva que, inicialmente, aparenta ser pouco mais do que o esboço para uma maquete mas que, repetidamente escutada, revela ser tão só aquilo que You Follow Me verdadeiramente exigia. (2007)

11 August 2007

UM AR MENOS NEGRO



Não se imagina que a autora de três álbuns — Dogs, The Blackened Air e Run To Ruin — onde tão pouca luz penetra ria tão frequente e espontaneamente como acontece quando entrevistada. Nina Nastasia faz enormes pausas para pensar, deixa imensas interrogações em suspenso, semeia as respostas de "I don't know" e confessa que, embora ainda sem grande êxito, gostava de ser capaz de "aligeirar" a atmosfera das suas futuras canções. Desde que não desça a (bem elevada) fasquia dos três primeiros discos, esteja à vontade.

Suponho que, como a maioria das pessoas, conheci a sua discografia de trás para a frente: primeiro The Blackened Air e Run To Ruin e, só depois, o primeiro, Dogs, reeditado o ano passado. E pareceu-me muito invulgar alguém iniciar o seu álbum de estreia com uma canção que é apenas uma única frase "Dear Rose, I do apologize, I hope you'll think of me as someone who would do anything for you"...
Como é que isso me surgiu... (risos) soa um pouco como a abertura de uma carta, não é? Pareceu-me uma boa forma de começar. Deve ter sido isso... Mas as outras canções não seguem de todo essa lógica. Já foi há tempo demais para que me recorde, de facto, qual era a ideia... Para Dogs, gravámos uma série de canções, das quais, houve várias que nem chegaram a ser incluídas no disco. Escolhemo-las como se estivéssemos a estabelecer o alinhamento de um concerto. Não obedeceu, realmente, a nenhum conceito.

Vê-o como um álbum muito diferente dos outros dois que se seguiram?
Todos os álbuns foram escritos no mesmo período de tempo. Há diversas canções antigas em Road To Ruin. Por isso, no que à escrita das canções diz respeito, não me consigo aperceber de uma grande diferença entre eles. Embora, decerto, deva haver. Não estudei assim muito o assunto... Mas, quanto aos arranjos das canções de Dogs, como já interpretava ao vivo aquele reportório com a mesma banda há bastante tempo, quando chegámos ao estúdio, estava tudo praticamente definido. Em The Blackened Air e Run To Ruin, quando começámos a gravar, ainda estávamos a trabalhar os arranjos. O que lhes terá dado um ar um pouco mais improvisado.



Porque se decidiu por Steve Albini como produtor?
Um amigo tinha trabalhado com ele e disse-me coisas muito simpáticas sobre o Steve. Também gostava muito da sonoridade de vários álbuns que ele tinha produzido. E queríamos gravar tudo ao vivo em estúdio que é como ele prefere trabalhar.

Quando começou a escrever canções?
Há cerca de catorze anos, quando vim para Nova Iorque. Desde miúda gostava de escrever poemas, contos. Tinha um amigo "songwriter" que, de certa maneira, me inspirou a fazê-lo.



Para além do seu amigo, houve outros autores que a inspirassem?Sempre ouvi muita música diferente mas não sou uma grande coleccionadora de discos nem presto muita atenção a nomes e detalhes. Em casa, os meus pais ouviam muito os Beatles. Também estudei piano clássico. Pode parecer um bocado estúpido mas não me recordo de nomes nenhuns...

Então chame-me estúpido agora a mim: quando escrevi sobre os seus discos, disse como, neles, várias coisas me recordavam gente tão diversa como Sandy Denny, Nico, PJ Harvey, Velvet Underground, Cowboy Junkies, Tom Waits, Mary Margaret O'Hara, Kristin Hersh... Isto faz algum sentido?
(risos) Bom, gosto da maioria deles, aí tem. Acertou. Gosto muito da Sandy Denny, por exemplo. Mas nem conheço grande parte da obra dela. E adorei os concertos da PJ Harvey a que assisti. Mas não diria que algum deles foi uma enorme influência que eu me tenha dedicado a analisar e estudar. Inconscientemente, no entanto, devo ter interiorizado uma ou outra coisa de vários deles... provavelmente.



Pura curiosidade: o seu nome, Nina Nastasia, tem uma certa sonoridade de Europa de Leste...
Tem, não tem? (risos) Toda a gente diz isso. Mas não é, é italiano. A família do meu pai veio da Calábria.

Está a trabalhar num novo álbum?
Estou. Na verdade, estou a pensar publicar dois ao mesmo tempo. Tenho um conjunto de canções suficientes para isso mas ainda não me decidi definitivamente se o quero fazer ou não. Estou a tentar escrever canções que sejam um pouco mais "leves" do que me é habitual. Começa a aborrecer-me ser vista sempre como autora de canções graves o obscuras. Não que me esteja a sair lá muito bem disso mas estou a tentar... (2005)

10 August 2007

A QUADRATURA E O CAOS



Nina Nastasia - Dogs

A primeira canção é só uma linha: "Dear Rose, I do apologize. I hope you'll think of me as someone who would do anything for you". A melodia é também só uma linha. Ninguém abre assim um álbum. Muito menos se for o primeiro ábum. A não ser que todas as canções sejam também de uma linha única. E as de Nina Nastasia são. Mesmo quando (e são as outras todas) o texto é mais extenso. Linhas soltas, dispersas, reunidas por acaso no corpo de uma canção. Ali, a fazer o(s) sentido(s) que podem fazer. Um fio de palavras, um fio de voz, um mobiliário instrumental de cabana de lenhador no centro urbano de Nova Iorque. "Parachute me down to your cold, cold underground, save me", a vírgula do contrabaixo, a luz da guitarra, um círculo fechado.



Coisas ínfimas. "Go get the dog out on the hill, he wants to lick the moon", Chagall na Brooklyn Bridge. PJ Harvey em sombras chinesas. Suzanne Vega em pose marcial com zigue-zagues de violoncelo. Cobain se fosse inteligente. Folk em pose junkie-de-câmara. Rock seco como um rescaldo de incêndio. Quase nada e um uivo de serra friccionada. Música de salão em cenário de tempestade. Correcção: não-rock; não-country (nunca alt.); não-folk. Palavras. Fragmentos. Explosões ocultas. Estilhaços de vidro no chão de um labirinto. Espirais. "Oh my! my security is running circles over me". A quadratura e o caos. "Let yourself go, I hear them say it's beautiful, I'm not afraid, this is happy ever after". Em 1999, Nina Nastasia (no "lost album" de estreia agora reeditado) era assim. Depois, em The Blackened Air e Run To Ruin, foi quase melhor. O que não era nada fácil. (2004)

09 August 2007

INTERNATIONAL RUMI YEAR (III)
"Only the holder the flag fits into and wind. No flag"



This poetry. I never know what I'm going to say.
I don't plan it.
When I'm outside the saying of it,
I get very quiet and rarely speak at all.

We have a huge barrel of wine, but no cups.
That's fine with us. Every morning
we glow and in the evening we glow again.
They say there's no future for us. They're right.
Which is fine with us.

(trad. Coleman Barks e John Moyne)

(2007)
ARESTAS



Nina Nastasia - Run To Ruin




Kristin Hersh - The Grotto

Pode, se calhar, dizer-se que, sem Kristin Hersh, Nina Nastasia teria sido provavelmente diferente do que é. Mas, agora, deve dizer-se também que talvez esteja a fazer falta a Kristin Hersh escutar Nina Nastasia para poder imaginar uma forma sua de regressar aos óptimos tempos de Hips And Makers. Porque todas aquelas arestas que faltam a The Grotto para ser algo mais do que apenas uma muito boa colecção de bonitas canções acústicas geradas por uma mente singular estavam já presentes em The Blackened Air (o anterior de Nastasia) e regressam agora no mini-álbum (trinta e poucos minutos) Run To Ruin: o falso ar de "lo-fi" a dissimular um verdadeiro teatro cru de emoções (cortesia da produção de Steve Albini mas não só), a rudeza e aparente desarrumação da colocação dos diversos instrumentos — viola, violino, violoncelo, banjo, piano, acordeão, dulcimer, guitarras acústica e eléctrica, bateria — no espaço sonoro, a estética de folk simultaneamente melódica-segundo-a-"tradição" e dissonantemente cauterizadora, a escrita fragmentária "beat"/surreal, a atmosfera artesalmente gótica, a superior sofisticação de um enganador desleixo de recorte. "I Say That I Will Go" é a imagem paralisada de um labirinto rasgado de estridências, "Regrets" faz lembrar Suzanne Vega redesenhada por Sam Shepard, "The Body" sopra um murmúrio de câmara sobre a tumultuosa resolução final, "Superstar" evoca Neil Young sob o efeito de ketamina, "On Teasing" exibe um tango em forma de sofisma tragado por um tsunami e o resto contribui para a coerência global desta espécie de argumento esfarrapado para "road movie" residual. Com os de Cat Power e Neko Case, outro dos imperdíveis do ano na categoria "female-singer-songwriter". (2003)

08 August 2007

O FUNDO DO AR É NEGRO



Nina Nastasia - The Blackened Air

Uma Sandy Denny com a alma lunar de Nico, o grupo sanguíneo de Polly Jean Harvey, a enganadora doçura de Aimee Mann e a esquizofrenia de Mary Margaret O'Hara. Recitando litanias dispersas por entre os despojos da carcaça dos blues, o espectro esventrado da country e a assombração radiográfica da folk tal como ainda sobrevive nos desfiladeiros desertos de algumas cordilheiras. À volta, há estrondos e estampidos, lancinantes e longínquos glissandos de violino e serra friccionada, gemidos de acordeão, interferências de arranjos de cordas inesperadamente plausíveis, a sombra oblíqua dos Cowboy Junkies de Trinity Session ou uma certa marcialidade fúnebre dos primeiros Velvet Underground.



E muito, muito espaço vazio por entre o dedilhado de um bandolim, o desenho sinuoso da melodia e a ressonância de palavras como "my eyes are black as iron, I'm toppling houses, trees and towns, my crying makes everybody drown" cujas imagens se perfilam imediatamente à frente dos nossos olhos. "Ugly Face" é quase "The Part You Throw Away" de Tom Waits e isso só lhe faz bem, "In The Graveyard" parece o eco de um uivo das Apalaches, "Ocean" é uma refrega surda entre as frequências graves de um sismo, estridências ultra-agudas e o ectoplasma de uma valsa doente de Kristin Hersh, "The Same Day" é pura (in)existência virtual e todas as restantes nos impedem de pensar noutra coisa durante 44 minutos. E muito tempo depois também. (2002)