30 April 2008

MODERN CLASSIC



Beth Gibbons & Rustin Man - Out Of Season

"God knows how I adore life, when the wind turns on the shore lies another day, I cannot ask for more", são as primeiras palavras que, em "Mysteries", Beth Gibbons canta a abrir Out Of Season. E, como declaração de alguém que, enquanto voz e imagem dos Portishead, sempre pareceu encarnar uma certa personagem de "torch singer" moderna embora tradicionalmente magoada e sofrida, não poderia ser mais inesperada. Mas, se essa não irá ser a tonalidade constante do seu primeiro álbum a solo — a faixa que se segue, "Tom The Model", retoma logo a atmosfera de "love gone wrong" que lhe ficou colada à pele —, serve, pelo menos, para sublinhar que uma coisa serão os Portishead enquanto colectivo e outra bem diferente a trajectória individual da sua cantora e autora dos textos, mesmo que ainda episodicamente recorrendo a companheiros anteriores como o guitarrista Adrian Utley, o baterista Clive Deamer ou o pianista John Baggott.



Aqui, porém, o outro eixo musical de criação é constituido por Paul Webb (aliás, Rustin Man), dos Talk Talk, que, como marca de separação estética, assegurou que se trataria de um álbum "beats free". Isto é, se como Webb afirma, "os arranjos e o espírito geral destas canções poderiam perfeitamente pertencer aos anos 40", todo o ambiente se pretendeu predominantemente (mas não exclusivamente) acústico e algures entre Joni Mitchell e o canto de recorte "jazzy", Nick Drake, Bacharach e, sim, também algo dos... Portishead. Haverá relativamente pouco dos traços identificativos daquilo a que nos habituámos a designar por trip-hop, porém, dir-se-ia que se trata da transposição de uma mesma escala cromática para um outro contexto sonoro.


versão de "Candy Says", dos Velvet Underground

Beth Gibbons sublinha que o que a motiva é "a filosofia da música, as surpresas, os acidentes, a sonoridade das palavras e a tentativa de as exprimir de uma forma pela qual a totalidade das emoções seja revelada" e procura distanciar-se do estereótipo romântico quando diz que, embora se alimente de alguma sensação de desamparo, "sofrer pela arte está um bocadinho sobrevalorizado". Estará, provavelmente, e muito desse desamparo e melancolia serão, talvez, encenados — "let the show begin", canta ela em "Show". Mas, mesmo que nos custe a crer que isso seja verdade quando se escuta canções como "Romance", "Drake", "Sand River" ou "Resolve", enquanto forem capazes de gerar um álbum tão modernamente tradicional e tão intemporalmente belo como Out Of Season, bem podem continuar assim. (2002)

29 April 2008

BIG BAND POP DO SEC. XVI

Tielman Susato - Danserye






(2008)
VÃO-ME DESCULPAR, MAS EU QUERIA MUITO,
MUITO, VER ESTE TIPO COMO LÍDER DO PSD...




(2008)

28 April 2008

LOBBYING, LOBBYING, LOBBYING!



Desde que, pouco antes do Natal, a Byblos - mesmo ali em frente ao CC das Amoreiras - abriu, já lá devo ter ido bem mais do dobro das vezes que caminhei pelos passos perdidos da(s) FNAC(s). Tem, claro, tudo o que de muito bom, bom, assim-assim, mau e péssimo todas as outras livrarias têm também em matéria de "novidades". Mas, acima de tudo, o que me tem levado lá são os fundos de catálogo editoriais que as outras excluem e que, habitualmente, só se descobrem nas feiras do livro (a propósito, naquela - permanente? semi-permanente? ocasional? menstrual?... sempre que ali passo ela está lá - da Gare do Oriente, já saquei umas preciosas pechinchas) e que, na Byblos, constituem uma apreciável parcela do stock (que deverá aumentar ainda mais) a preços bem cristãos. Um exemplo só (entre vários outros): Dziga Vertov, do venerável Vasco Granja (col. Horizonte Cinema, 1981), por €1.18! A que se deverão acrescentar idênticas pepitas em matéria de DVD.



Acontece que começo a ficar preocupado. É verdade que tenho ido lá especialmente aos sábados à noite e que não tenho números que me permitam ir além do palpite. Mas, aos sábados à noite, embora seja muito simpático não ter de ocupar o 24º lugar na fila de pagamento das caixas, eu preferia ser o 25º se isso significasse que o futuro da Byblos não estava ameaçado. Já é vergonha que baste Lisboa não ter apetite por livros suficiente para poder sustentar os dez pisos da Selexyz Donner, de Roterdão (584 046 habitantes), onde apetece montar a tenda e chamar o room-service. Perder os dois da Byblos faria pensar seriamente em emigrar.

(2008)
O LABORATÓRIO DO HORROR
(a propósito de Diary Of The Dead, de George A. Romero)



“Evidentemente, a banda sonora é uma quimera do cinema. É som e ruído, ruído e música, música e voz, voz e som”, afirma Philip Brophy na introdução de 100 Modern Soundtracks (2004). Mas se, numa apreciável parcela da “film music” que, desde os primórdios dos “talkies”, foi sendo composta, o lugar atribuído a essa “quimera” tendeu a ser apenas ilustrativamente subsidiário da imagem, no subgénero dos “horror movies”, por força do pretendido efeito de choque que é da sua própria natureza, a sua função expressiva adquiriu um relevo incomparavelmente maior. E constituiu, inclusivamente, um campo particularmente fértil para experimentalismos sonoros e/ou musicais que, noutras áreas cinematográficas, tendem a ser menos bem acolhidos.


The Fall Of The House Of Usher

O exemplo de Os Pássaros, de Hitchcock (1963), é inevitável: inteiramente desprovido de “música”, tal como, habitualmente, a identificamos, todo o aterrador universo sonoro “aviário” foi electronicamente produzido por Remi Gassmann e Oskar Sala, sob a supervisão de Bernard Herrmann. Particularmente surpreendente, no que respeita ao radicalismo do vocabulário musical empregue, é a colecção de temas de Ennio Morricone recolhida em Crime & Dissonance (2005), compostos para diversos “gialli” (fantástico + terror + policial + pornochanchada de série-Z, em versão italiana), aliás, um inesgotável filão nesta matéria.


Altered States

No entanto, desde a partitura de Franz Waxman para The Bride Of Frankenstein (1935) aos flirts com a “vanguarda” de Les Baxter, em House Of Usher e The Pit And The Pendulum (1960 e 1961), de Corman, às incursões musicais de John Carpenter para os vários Halloween ou The Fog (1980), às soturnas ameaças de , em Rosemary’s Baby (1968), às estridências eruditas cerzidas por Kubrick, em The Shining (1980), às dissonâncias de John Corigliano, em Altered States (1981), às tatuagem sonoras de John Williams para Jaws (1975), de Jerry Goldsmith, em The Omen (1976), de Danny Elfman em Beetlejuice (1988) ou ao glorioso pastiche contemporâneo de tudo isso encenado por Tarantino em Grindhouse (2007), o mundo sonoro do “horror”, sem abdicar do estatuto de culto, é, seguramente um dos mais fascinantes da música para cinema.

(2008)
ENSAIO ABERTO



Existe uma particular estirpe de vírus patriótico – um dos mais temíveis no universo do ultramicroscópio – que, em grupos de risco especialmente vulneráveis, tende a desencadear intensas tempestades emocionais sempre que, por exemplo, se anuncia que o concerto de Lisboa da banda X “será o primeiro da digressão europeia” ou que, no Porto (evento menos provável mas aqui incluído por efeito de outro microorganismo, o vírus regional), terá lugar “a última etapa da tournée mundial” do músico Y. A virologia não será ainda uma ciência absolutamente exacta mas, apesar da má reputação de “ser o último”, há que dizer que, regra geral, as probabilidades de um bom concerto concentram-se mais na segunda hipótese. Relatório da mais recente experiência em abono desta tese: na passada segunda-feira, no Coliseu de Lisboa, Nick Cave e os Bad Seeds não poderiam ter tido mais enternecedora simpatia do que a de nos terem convidado para o primeiro ensaio de conjunto que antecede o périplo europeu de apresentação de Dig, Lazarus, Dig!!!. Tratava-se, naturalmente, de uma oportunidade para aquecer os motores ainda, em larguíssima medida, consideravelmente perros, de, entre canções, entabular pequenos concílios para fazer acertos de alinhamento, de evidenciar algum sentido autocrítico (explicitamente, no caso de “Get Ready For Love”, em que Cave admitiu “That was a fucking disaster!” – mas, se o tivesse repetido mais meia dúzia de vezes, não andaria longe da verdade) ou de, em regime de discos pedidos, recorrer à democracia directa. Com um som de sala (e, eventualmente, de palco, o que explicaria várias pequenas catástrofes) em renhido combate com o do Pavilhão Atlântico pelo título de “o mais abominável”, salvaram-se alguns clássicos, “Jesus Of The Moon” do novo álbum e, de um modo geral, a atitude “foi porreiro, pá” de quem reencontra velhos amigos em palco e não se importa de partilhar isso (pagando, claro) com uns milhares de alfacinhas bem dispostos. Daqui para a frente, só pode melhorar. (2008)

27 April 2008

O MAL PURO


Quando, vitimado por uma “febre má”, a 24 de Novembro de 1870 e aos 24 anos, Isidore Lucien Ducasse morreu no hotel do número 7 do Faubourg Montmartre, em Paris, já teria muito boas razões para suspeitar que, como bastante mais tarde afirmaria Philippe Sollers, no “Le Monde”, Os Cantos de Maldoror eram um livro que havia sido escrito “secretamente para seis ou sete (no máximo) indivíduos por século”. De facto, as raríssimas reacções que, à época, o livro suscitou foram todas severamente negativas e não surpreende que assim tenha sido: à excepção das portentosas profanações coreográficas filosófico-sexuais do Divino Marquês, dificilmente se encontrará um tão violento concentrado do Mal e em estado tão transparentemente puro como aquele que o “conde de Lautréamont” verteu para o papel abrindo uma via directa e inteiramente desobstruída, do caldeirão de pesadelos do seu subconsciente para o mundo cá fora. Se Dylan cantou “if my thought-dreams could be seen, they'd probably put my head in a guillotine”, Ducasse fê-los jorrar em turbilhão para os Cantos e, à beira da Comuna de Paris, arranjou forma de iludir a lâmina e os tumultos sociais, extinguindo-se por outros motivos.



Seria necessário que, só muito posteriormente, Alfred Jarry, os Surrealistas e, por fim, os Situacionistas exumassem a sua obra para que ela conquistasse um lugar vitalício no cânone dos danados e, aí mesmo, enquanto precursora de todas as escavações de profundidade extrema pelos abismos do espírito. Dito isto, seria muito de estranhar que, mais tarde ou mais cedo, o pestífero Maldoror não acabasse por achar o caminho que o levaria à obra gravada dos Mão Morta que – particularmente em sintonia com as mais tensas vibrações mentais – já registam em currículo Müller no Hotel Hessischer Hof (1997), Há Muito Que Nesta Latrina O Ar Se Tornou Irrespirável (1998, sobre a intervenção Situacionista) ou Nus (2004, em torno da literatura “beat”). Porém, se, segundo o editor Léon Genonceaux, Ducasse “escrevia apenas de noite, sentado ao piano, declamando furiosamente o texto enquanto martelava as teclas e proferia novas estrofes sobre essas sonoridades”, neste seu último volume, o grupo de Adolfo Luxúria Canibal, optando por uma encenação musical de pendor tendencialmente “atmosférico”, falha seriamente no estabelecimento do “mood” psicótico e demencial que os textos reclamavam e que apenas sobrevive no gume violento da declamação. (2008)

26 April 2008

SUBSCREVER O PACTO



Há oito anos – estava prestes a ser publicado Esta Coisa Da Alma –, pouco depois de, na sala do Concertgebow de Amsterdão, Camané (então, a primeira voz do fado, após Amália Rodrigues, a pisar aquele palco) ter convertido instantaneamente um público esmagadoramente holandês àquela particular liturgia do silêncio que a canção tradicional de Lisboa exige, ele procurava explicar-me como concretiza essa aparente impossiblidade de comunicar um universo inteiro de sentidos sem tropeçar no estorvo dos idiomas: “Só tenho uma resposta para isso: procurando fazer passar o prazer e a emoção que sinto em cantá-las. São talvez esse prazer e essa paixão que passam para as pessoas. O fado tem espaço para tudo, possui uma liberdade enorme sem que o sentido das palavras se perca. É essencial pensar no que se está a dizer, compreender o que se diz e senti-lo. As coisas saem-me como se estivesse a falar mas, ao mesmo tempo, estou a cantar, a transformar o que digo numa canção. Às vezes, tenho consciência de que essa austeridade pode funcionar contra mim, muitas pessoas querem é circo. Mas o fado não pode ser uma exibição de virtuosismo vocal”.



Concentremo-nos nestas duas últimas afirmações: escutar Camané – e já, por diversas vezes o testemunhei – é totalmente incompatível com a atitude convencionalmente descomprometida de quem se dispõe a assistir a um qualquer concerto. Ou aceitamos subscrever esse pacto de austeridade que exclui os mínimos gestos e tiques fáceis de “crowd pleasing” ou, como água e azeite, cantor e público se separam irremediavelmente. E, três anos depois de Amsterdão, ele desenvolveria esse seu programa privado e acrescentar-lhe-ia um ponto: “É muito importante que um disco de fado possa ser imediatamente identificado como fado. Os fados tradicionais têm uma estrutura, uma espécie de chão musical, a partir do qual as palavras têm de ganhar côr e ser interiorizadas, como se criassem uma outra melodia dentro da que já existe. Para mim, no cantar o fado, tem de haver um lado de autenticidade e de verdade que é uma mais valia. Eu sei qual é o meu caminho, não estou no meio de nenhuma guerra, o tempo é que vai permitindo que eu faça as coisas que tenho de fazer”. Sempre de Mim, agora editado, só não deverá ser classificado como o momento mais elevado da discografia de Camané porque tudo o que o antecede não é menor e não é possível adivinhar o que, a seguir virá. Mas é, sem dúvida, o lugar onde, definitivamente, à voz, textos, melodias e tudo o que, inevitavelmente, os excede será inteiramente impossível alterar uma partícula: os dois inéditos de Alain Oulman sobre poemas de Pedro Homem de Mello para Amália (e só Camané os poderia abordar...), os originais de José Mário Branco e Sérgio Godinho e as outras diversas variações sobre o “chão” tradicional circunscrevem de modo mais que perfeito aquilo que só poderá ser, hoje, o território do fado, esse mesmo que, nas palavras de Fernando Pessoa de que ele se apropria em “Ser Aquele”, revela a fundamental indeterminação das suas coordenadas: “Ser feliz é ser aquele e aquele não é feliz, porque pensa dentro dele e não dentro do que eu quis”. A mecânica quântica nunca chegaria tão longe. (2008)

20 April 2008

SLIGHT RETURN À CIGANAGEM ESLAVA



(2008)
(... and now for something completely different):

A FRASE DO MÊS:



"Manuela Ferreira Leite é um Sócrates de calças" - José Júdice, no "Eixo do Mal" (SIC-N)

(2008)

17 April 2008

SUPERMELODRAMA


Devotchka - A Mad And Faithful Telling

Tudo começou há vinte e tal anos com as experiências de fusão entre pop e “world music” de Paul Simon, David Byrne, Peter Gabriel ou Hector Zazou. Em rigor, terá começado, talvez, bastante antes disso, por impulso do Tropicalismo brasileiro – mas, como os ingredientes “world”, no caso, decorriam da natureza dos próprios músicos de quem partira a iniciativa da experiência, nem sempre é contabilizada como tal. Se insistirmos mesmo em colocar-lhe uma data fundadora, então, terá, inevitavelmente, de ser a de 29 de Junho de 1987 quando, no pub do norte de Londres, "Empress Of Russia", três dezenas de “media operators” cunharam a designação “world music".


Mas, no entanto, em todos os inúmeros exemplos que, desde aí, ocorreram, nas mais desvairadas declinações – dos Transglobal Underground e Loop Guru às “jams” de Lee Ranaldo com os Master Musicians Of Jajouka, aos Saqqara Dogs, Hedningarna ou Gaiteiros de Lisboa –, persistia um excesso de “desejo de autenticidade” e ausência de descaramento genuinamente “fake” que lhes impedia (quer o desejassem ou não) o acesso claro e indiscutível ao universo pop. Foi, justamente, isso que, provavelmente, começou a mudar nos últimos tempos com o aparecimento de diversas bandas que, não sentindo a menor necessidade de exibir “pedigree” na coisa folk/world, se apropriaram, sem cerimónias, do que imaginam – com “autenticidade” infinitamente variável – serem as diversas tonalidades das músicas do mundo e, como tal, as incorporaram naquilo que vão engendrando. Enumerem-se, pois, Vampire Weekend, A Hawk And A Hacksaw, Balkan Beat Box, Gogol Bordello, Beirut, Black Ox Orkestar, Golem, The World Inferno Friendship Society e, agora, os Devotchka. Por algum motivo, com excepção dos Vampire Weekend, todos garimpam na mesma mina eslava/balcânica/cigana e, a partir daí, em modo estético-do-it-yourself, inventam regiões demarcadas pop alternativas que dão por nomes como “gypsy punk”, “world culture clash” ou, segundo os Devotchka, “supermelodrama”.



A quem, por ínvios caminhos, o selo de garantia pop nunca poderá ser negado: originários de Denver, no Colorado, incluem um cantor-compositor de ascendência siciliana e cigana, um baterista-trompetista de raíz punk, devoto de mariachi e educado a escutar polcas lituanas, uma baixista/sopradora de sousafone com currículo em bandas revivalistas da Guerra Civil e um violinista de formação clássica. No muito promissor início de carreira, acompanharam os espectáculos de strip-tease “burlesque” da ex-Mrs Marilyn Manson, Dita Von Teese, num inesperado salto quântico, encarregaram-se da mui louvada banda sonora do oscarizado Little Miss Sunshine (2006) e, agora, com A Mad And Faithful Telling (título inspirado em Edgar Allan Poe), a banda portadora de um nome surripiado à Laranja Mecânica de Kubrick propõe-nos mais um soberbo pitéu de “post-millenial multiculturalism” que seria insensato recusar. Um dia, o filão de leste também há-de esgotar-se mas, por enquanto, o empreendimento até nem está a correr nada mal. (2008)

15 April 2008

SAÍDA BLOQUEADA



Evangelista - Hello, Voyager

No folheto interior do CD, como se nada fosse, Carla Bozulich descreve os doze minutos do último tema – a faixa-título do álbum – como “a live improv” que foi “really fun” e identifica os potenciais destinatários: “if you like Armaggedon, women and song”. Antes de ir mais longe, é imprescindível tornar público que Bozulich também admite facilmente que sempre preferiu “o tipo de música que só soa bem se for tão intensa que o corpo nos doa”. É possível, no entanto, que este alerta não seja suficiente para que, quem se disponha a escutar Hello, Voyager fique suficientemente preparado para o que o aguarda: nem Nick Cave, nos tempos mais desabridamente apocalípticos dos Birthday Party, nem Diamanda Galás uivando sobre cenários de peste, nem, talvez, Scott Walker, despenhando-se sobre os abismos de trevas de Tilt e The Drift, terão concebido algo de tão desmedidamente avassalador como esta homilia alucinada declamada por entre os escombros de um templo da derradeira barbárie, esta arenga esquizóide de electrochoques na laringe, erguida sobre uma paisagem na qual “there isn’t any prison, no church no super mercado no fucking white house outta reach no taj mahal it’s all dust all ashes all over. It’s all over. It doesn’t matter if you had any coin or syphillis or diplomatic immunity. None of us will survive this gaseous sky for more than nie on a day. To the rats! All the machines gone dead, infected with the truth of splattered red. Come to us”.



Noventa e cinco linhas de texto em página de dimensão superior a A4 para o Howl que Allen Ginsberg teria escrito se nunca tivesse recebido alta do hospital psiquiátrico de Rockland, recitado por uma Patti Smith possessa, no segundo imediatamente anterior ao instante em que um aneurisma lhe explode no cérebro. Carla Bozulich inventa actos de contrição (“The world was hurting every second but I was busy masturbating”), reincide nas falhas (“This is me turning my head as nazis coaxed nations to kill innocence forever and this is me flipping the remote between that and the simpson’s sonic youth episode”), um destacamento electroacusticamente armado de músicos dos A Silver Mt. Zion, GY!BE e Secret Chiefs 3, reforçado por uma brigada de demolição de percussões (a saber, o colectivo designado como Evangelista), incinera toda a vida à volta e, pelo meio dos restos mortais dos blues tal como Captain Beefheart os abandonou sobre a mesa de autópsia, vislumbra-se uma, só uma, hipótese de redenção: “This is your chance to shed the moral rash that coats your body in asphyxiating hope”. Nas restantes oito faixas do álbum, escutamos as “lullabies” que, do outro lado, adormeceriam Alice após ter ficado com os estilhaços do espelho cravados na carne, secções de cordas são maliciosamente conduzidas para fantasmagorias onde, habitualmente, receiam aventurar-se e, uma por uma, cumprem-se, até ao aterrador final, todas os passos desta liturgia de “gospel noise”. A saída de emergência encontra-se bloqueada. (2008)

12 April 2008

STREET ART - Tate Gallery
23 May – 25 August 2008



Os Gémeos

In the first major public museum display of street art in London, an awesome line-up of acclaimed street artists will create gigantic new art works on the external walls of Tate Modern overlooking the Thames.

An eclectic group of artists, who have worked in both street and gallery environments, are showing work: Blu from Bologna, Italy; the artist collective Faile from New York, USA; JR from Paris, France; Nunca and Os Gemeos, both from Sao Paulo, Brazil and Sixeart from Barcelona, Spain. This is the first time work has been commissioned for the building’s iconic external wall.


Faile

Street Art at Tate Modern brings to the fore an important aspect of current art practice.

You can take part in an urban trail to discover street art near Tate Modern on the Street Art Walking Tour – pick up a copy when you visit.

Street Art at Tate Modern opens at the same time as Tate Modern’s four day festival of art and performance, UBS Openings: The Long Weekend on 23 May

(2008)

10 April 2008

AS (OUTRAS) FIGURAS DO TROPICALISMO


Tropicália - Iuri Sarmento (1998)

Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé ou Os Mutantes são as personagens cujos nomes, sempre que o Tropicalismo é puxado para a conversa, estão na ponta da língua. Mas, mais ou menos perifericamente ou antecedendo mesmo a eclosão do movimento, diversos outros contribuíram para a imensa riqueza e diversidade estética daquele momento singular na história da cultura pop mundial.



Oswald de Andrade (1890 – 1954): escritor, dramaturgo e ensaísta, foi um dos fundadores do Modernismo brasileiro e promotor da Semana de Arte Moderna de 1922, que teve lugar no primeiro centenário da independência do Brasil. Em 1924 – o mesmo ano do Manifesto Surrealista de André Breton – publica o Manifesto da Poesia Pau-Brasil (“Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias. A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos. (...) Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia. Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil”) e, quatro anos depois, o Manifesto Antropófago (“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. (…) Tupi or not tupi, that is the question. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. (…) Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direcção do homem. (…) A idade do ouro anunciada pela América. A idade do ouro. E todas as girls”). A xenofagia cultural no lugar da xenofobia. Ou o Tropicalismo muito “avant la lettre”.



Rogério Duarte (n. 1933): artista gráfico, músico, compositor, poeta, tradutor e professor. Assinou diversos cartazes para filmes de Glauber Rocha, como Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe e Idade da Terra, (deste último, compôs também a banda sonora). Entre outros, colaborou com Gilberto Gil, Caetano Veloso, João Gilberto, Jorge Ben e Gal Costa. “Este era o pensamento dos Tropicalistas: nós não estamos aqui como os sambistas do morro que serão confinados a um lugar no quintal onde farão os seus pagodes e tomarão a sua cachaça. Não! Nós vamos invadir a sala de visitas e, antropofagicamente, pinçar elementos stravinskianos, schoenberguianos, de toda a vanguarda da música pop e de tudo o mais e inventar essa coisa do som universal. Uma característica importante do Tropicalismo e talvez única é que, ao mesmo tempo, ele foi um movimento de vanguarda e amplamente de massas. Ele não é um movimento mas um momento de um movimento que já começa muito antes. Como dizia Rimbaud, a verdadeira vida está ainda para ser inventada. O verdadeiro Tropicalismo também está ainda para ser inventado. Uma coisa não sei com que nome, nem com que forma, mas não vejo a não ser senão por essa direcção”.



Hélio Oiticica (1937 – 1980): pintor, escultor e performer; influenciado pelo Concretismo, Mondrian, Klee e Malevich. Nos anos 60, criou uma série de esculturas em forma de caixa interactivas (Bólides) e instalações designadas “penetráveis” das quais a mais famosa, Tropicália (1967), daria o nome a uma canção de Caetano Veloso e ao álbum-farol do Tropicalismo (Caetano Veloso: “Luís Carlos Barreto, um fotógrafo jornalístico que se tinha tornado produtor de cinema (...) impressionou-se com a minha canção e, ao ser informado que ela não tinha título, sugeriu ‘Tropicália’, por causa, dizia ele, das afinidades com o trabalho do mesmo nome apresentado por um artista plástico carioca, uma instalação (na época ainda não se usava o termo, mas é o que era) que consistia num labirinto ou mero caracol de paredes de madeira, com areia no chão para ser pisada sem sapatos, um caminho enroscado, ladeado de plantas tropicais, indo dar, ao fim, num aparelho de televisão, exibindo a programação normal. O nome do artista era Hélio Oiticica e era a primeira vez que eu o ouvia”).



Rogério Duprat (1932 – 2006): nos anos 60, estuda com Boulez e Stockhausen. Em Junho de 1963, com sete outros compositores brasileiros, lança o Manifesto Música Nova, defendendo um “compromisso total com o mundo contemporâneo” e o “levantamento do passado musical à base dos novos conhecimentos do homem naquilo que esse passado possa ter apresentado de contribuição aos actuais problemas”, terminando com uma citação de Maiakovski: “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”. Escreve os arranjos para Tropicália e álbuns de Caetano, Gilberto, Tom Zé, Gal Costa e Os Mutantes, onde combina elementos da música erudita com procedimentos da pop/rock. Ficaria conhecido como o “George Martin da Tropicália” ou o “Brian Wilson do Brasil”.



Torquato Neto (1944 - 1972): poeta, jornalista e autor de letras de canções (com Caetano, Gil ou Edu Lobo), foi colega de liceu de Gilberto Gil. Escreveu o breviário Tropicalismo para Principiantes, onde defendeu a necessidade de criar uma pop genuinamente brasileira: "Assumir completamente tudo que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda desconhecido". (2008)

08 April 2008

AS MÃOS E OS PÉS


Tropicália + Éden (Hélio Oiticica)

Outubro de 1967, Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em São Paulo: Caetano Veloso, acompanhado pelos Beat Boys, apresenta “Alegria, Alegria” e Gilberto Gil, com Os Mutantes, “Domingo no Parque”. O público, inicialmente desconcertado pela colorida exuberância pop e pelas guitarras eléctricas, ameaça apupar mas acaba por aderir. Um ano depois, porém, no Festival Internacional da Canção (FIC) da TV Globo, no Rio de Janeiro, Gil e, principalmente, Caetano experimentam o seu verdadeiro momento-Dylan-enquanto-Judas-acusado-de-traição. “É Proíbido Proibir”, interpretada por Caetano com Os Mutantes, é vaiada e este, em fúria com essa atitude e com a desclassificação de Gilberto Gil – tal como Dylan havia ripostado com “Ballad Of A Thin Man”, disparando “because something is happening here but you don’t know what it is, do you, Mr. Jones?” –, interpela agressivamente o público: “Mas é isso que é a juventude que diz querer tomar o poder? Vocês são a mesma juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem. Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos fritos!...”.



Mais tarde, quase casualmente, Caetano Veloso recordaria como tudo se tinha desenrolado: “O episódio ‘É Proibido Proibir’ resume-se no seguinte: Guilherme Araújo, o meu empresário, mostrou-me, na ‘Manchete’, uma reportagem sobre os acontecimentos de Maio, em Paris, que eu não quis ler, pois tenho preguiça de ler. Lembro-me que ele mesmo virou a página e disse: ‘é engraçado, eles picharam coisas lindas nas paredes. Esta frase aqui é linda – “é proibido proibir”. Eu disse: ‘é lindíssima’. Ele disse-me, então: ‘faça uma música usando esse negócio como refrão’. Eu disse, ‘tá’. Passou. Não fiz. Daí ele me cobrou. Eu disse, ‘faço’. Fiz. Achei meio boba, mas bonitinha. Todo o mundo, na altura, achou bonita. No dia seguinte eu já a achava péssima. Até hoje só gosto do ritmo e de uma parte da letra que diz “eu digo sim, eu digo não ao não”. Veio o festival da Globo. Eu não tinha nenhuma música bacana pra botar. Nem muita vontade de entrar no festival. Só me convenci a concorrer quando decidi pegar aquela música que eu não gostava e fazer uma esculhambação com o festival. A canção foi escondida pelo ‘happening’ e pelas vaias. Quando voltei para repetir a música já o Gil tinha sido desclassificado (o que me enfureceu porque eu achava o número dele genial), enquanto o meu ‘É Proíbido Proíbir” tinha merecido do júri as melhores notas. Entrei no teatro decidido a armar bronca. E armei”. Para a história, entretanto, esse ficaria como o instante em que o Tropicalismo viveu o seu baptismo de fogo. Mas, para compreender realmente a história do movimento, é necessário recuar. Bastante.



Por exemplo, até à Semana de Arte Moderna, que teve lugar em São Paulo, entre 11 e 18 de Fevereiro de 1922, e que assinalou a penetração nos meios artísticos, literários e intelectuais do Brasil da ebulição das vanguardas europeias da época – do cubismo, ao expressionismo e ao futurismo. Dos diversos participantes (Menotti Del Pichia, Victor Brecheret, Anita Malfatti, Mário de Andrade), seria, no entanto, Oswald de Andrade o mais decisivo na génese futura do Tropicalismo, quando, seis anos mais tarde, publicaria o Manifesto Antropófago. A metáfora da antropofagia, inspirada pelas tribos de índios Tupi, conhecidas pelo ritual de devorar os inimigos que faziam prisioneiros, ofereceu um modelo e uma sustentação teórica para a eclética voracidade estética dos Tropicalistas. Como Caetano Veloso reconheceria, “É fácil compreender como Oswald de Andrade foi importante para mim, tendo passado por esse processo, tendo ficado apaixonado por um certo deboche diante da mania de seriedade em que caiu a Bossa Nova. Uma outra importância muito grande de Oswald para mim é a de esclarecer certas coisas, de me dar argumentos novos para discutir e para continuar criando, para conhecer melhor a minha própria posição. Todas aquelas ideias dele sobre poesia pau-brasil, antropofagismo, realmente oferecem argumentos actualíssimos que são novos mesmo diante daquilo que se estabeleceu como novo. A ideia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos ‘comendo’ os Beatles e Jimi Hendrix. O Tropicalismo é um neo-Antropofagismo”. Ou, como afirma em Verdade Tropical, “a cena da deglutição do padre Pero Fernandes Sardinha pelos índios passa a ser a cena inaugural da cultura brasileira, o próprio fundamento da nacionalidade”.



Seria, afinal, sensivelmente entre os dois festivais de 1967 e 1968 e sob o pano de fundo da ditadura militar brasileira ainda mais musculada pelo Acto Institucional nº 5, que o essencial da curta mas intensa aventura estética Tropicalista decorreria, investindo nesse programa de digestão de todas as marcas de “alta” e “baixa” cultura exportada pela Europa e EUA, regurgitando-as sobre a matriz brasileira: em Abril de 1967, na mostra de artes visuais “Nova Objetividade Brasileira” que tem lugar no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Hélio Oiticica expõe o seu grande “penetrável”, "Tropicália”; em Maio, Gilberto Gil publica o primeiro álbum, Louvação. As colaborações com José Carlos Capinan, Torquato Neto e Caetano Veloso anunciam o Tropicalismo ainda em embrião; em Julho, é editado Domingo, com Caetano Veloso e Gal Costa: as marcas da bossa-nova estavam ainda presentes mas, na contracapa, Caetano escrevia: “Não desejo mais viver de nostalgia pelos velhos tempos e lugares – ao contrário, desejo incorporar essa nostalgia num projecto futuro”; inauguração “oficial” do Tropicalismo, em Outubro, com a apresentação de Gil e Caetano no III Festival de MPB da TV Record; em Novembro, o poeta concretista Augusto de Campos publica dois artigos em defesa do trabalho dos tropicalistas (Caetano: “Em casa de Augusto de Campos, ouvíamos Charles Ives, Webern e Cage e falávamos da situação da música brasileira e dos festivais. Nós, os jovens tropicalistas, ouvíamos muitas histórias de personagens do movimento Dada, do modernismo anglo-americano, da Semana de Arte Moderna Brasileira e da fase heróica da poesia concreta”), o que voltará a fazer aquando da publicação dos álbuns de estreia de Caetano e Gil – esses textos serão reunidos no livro Balanço da Bossa, publicado no ano seguinte;



Março de 1968: lançamento dos discos Caetano Veloso, com arranjos de Júlio Medaglia, Damiano Cozzela e Sandino Hohagen, e Gilberto Gil, com arranjos de Rogério Duprat; edição do álbum Os Mutantes, em Junho, também com arranjos de Duprat; Julho: publicação do álbum colectivo Tropicália ou Panis et Circensis, com Caetano, Gil, Gal, Mutantes, Tom Zé e Nara Leão, e arranjos de Duprat (Gilberto Gil: “Depois de ‘Domingo no Parque’ e ‘Alegria, Alegria’, havia uma expectativa. Essas músicas e o que a gente vinha fazendo na TV significava um diferencial, e era isso mesmo o que a gente queria. Era preciso aprofundar esse diferencial, fazer mais canções e tomar mais atitudes. Na época, o disco era o meio mais natural de fazer isso. A gente precisava fazer um disco que contivesse o mínimo para dar a ideia de bandeira. Todos se animaram, Tom Zé, os Mutantes, Rogério Duprat, Capinan, Torquato… A gravadora, o empresário, os artistas, o público, todos queriam. Quando alguém esboça algo de novo, todo mundo fica esperando para ver qual vai ser o gesto seguinte”);


HO - Hélio OIticica (I)

em Agosto, Hélio Oiticica e Rogério Duarte apresentam no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro a exposição-evento “Apocalipopótese” e o debate “Cultura e Loucura”, ambos com a presença de Caetano Veloso; Caetano e Gil confrontam-se com os adversários do movimento Tropicalista, em Setembro, no FIC, da TV Globo, no Rio. Caetano que, desde o início, havia declarado “Sou Tropicalista, duvido sempre dos critérios utilizados para avaliar a arte. É por isso que, muitas vezes, tenho preferido o joio ao trigo”, em Verdade Tropical, identifica a oposição: “De facto, eu fora rejeitado pelos sociólogos nacionalistas de esquerda e pelos burgueses moralistas da direita, ou seja, pelo caminho mediano da razão. (...) [havia um grupo de músicos] que considerava o que eu e Gil fizemos como uma traição aos elegantes acordes dissonantes [da bossa-nova] e ao cívico nacionalismo cultural". E Gilberto Gil confirma-o: “O movimento Tropicalista era um ‘insight’ na realidade brasileira. E mais que na brasileira, na do mundo todo. Uma cidade como São Paulo é uma cidade brasileira, mas tem o mundo todo dentro dela. Paris está um pouco aqui dentro. Nova Iorque está um pouco aqui dentro, Londres, Tóquio, Roma, Milão... E a informação de fora chegando, obrigando-nos a tomar atitudes diante disso, a responder a essa inflação de informação. (...) O que nós questionávamos era exactamente esse nível médio das coisas, o nível estagnado, o nível do meio, ali onde não está acontecendo nada. Então, recusávamos essa posição porque víamos que era uma hora no mundo em que todos os jovens, todas as pessoas responsáveis por essa Terra, por fazer dela um lugar saudável, estavam preocupadas... essa esclerose do nível médio das coisas preocupava as pessoas”; Dezembro: publicação do álbum-estreia, Tom Zé a que, no dia dia 27, se segue a prisão de Gil e Caetano em São Paulo, ao abrigo do Acto Institucional nº 5, que suprimiu a liberdade de expressão artística (Caetano: “Hélio Oiticica, que involuntariamente, dera o nome ao nosso movimento, estava presente no nosso show na Boate Sucata, com uma obra exposta perto do palco, complementando a mensagem da nossa atitude face ao FIC, à MPB, à cultura brasileira e à realidade em geral: a sua homenagem ao bandido de favela Cara de Cavalo, morto a tiro pela polícia, sob a forma de um estandarte em que se lia, sob a reprodução da fotografia do corpo da personagem estendida no chão, a inscrição “SEJA MARGINAL, SEJA HERÓI”. (...) Uma noite, um juiz de direito que, não sei por que carga de água foi à Sucata ver o nosso show, indignou-se com o estandarte de Hélio. Sob uma ditadura militar, uma reacção moralista contra uma obra que glorificava um marginal tinha tudo para crescer. (...) O juiz conseguiu não apenas suspender o show como fechar a boate. (...) O episódio foi muito falado e teria, a médio prazo, terríveis consequências”). Levados para o quartel do Exército de Marechal Deodoro, no Rio, apenas serão libertados dois meses depois, seguindo para Salvador, onde são submetidos a regime de confinamento até Julho; entre Fevereiro e Agosto de 1969, são editados os segundos álbuns dos Mutantes, Caetano e Gil e o primeiro de Gal Costa (todos com arranjos de Rogério Duprat); em Julho, tem lugar o espectáculo de despedida de Caetano e Gil, no Teatro Castro Alves, em Salvador. Partirão, de seguida, para o exílio, na Europa: passam por Lisboa e Paris, fixando-se, finalmente, em Londres. O sonho tropicalista acabara “lonely in London without fear, looking for flying saucers in the sky”.


HO - Hélio Oiticica (II)

Como, mais tarde, Gilberto Gil sintetizaria, “O Tropicalismo mudou a história. Se ele não tivesse existido, a história cultural do Brasil seria outra. Prefiro ver assim, como uma influência geral. Uma atmosfera, que é o ar para as novas gerações respirarem. O Tropicalismo hoje está nos pulmões, na corrente sanguínea da criação artística do Brasil. Assim como o Tropicalismo era filho da Semana de Arte Moderna de 1922, certas manifestações artísticas actuais são descendentes do Tropicalismo. Caetano chama a isso ‘linha evolutiva’. As mãos de uns transformando-se nos pés de outros… Os pés tropicalistas assentavam sobre as mãos modernistas. Os pés da pop atual assentam sobre as mãos tropicalistas. E assim por diante, como pirâmides circenses. As pirâmides culturais são assim também. O Tropicalismo é pedra dessa pirâmide. Não importa em que nível está. Mas, se você tira essa pedra, toda a pirâmide cai. Também não importa se ela está na base ou no cume. Aí é querer interromper a história. As camadas vão continuar a ser sobrepostas enquanto durar a humanidade, as nações, e, entre elas, o Brasil como configuração particular de um povo. Não gosto de ficar apontando tropicalistas. O que há são Tropicalismos transfigurados em outras fantasias. Novos corpos com a mesma velha alma tropicalista”. (2008)
OS TIGRES E OS LEÕES NOS QUINTAIS



Vários - Tropicália ou Panis Et Circencis

Se Caetano Veloso gritava bem alto “nego-me a folclorizar o meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas”, o álbum-manifesto do Tropicalismo levava essa declaração às últimas consequências: publicado um ano depois de Sgt. Peppers (1967), não é abusivo vê-lo como o equivalente brasileiro do que, simbolicamente, o disco dos Beatles representou para a pop. O ar dos tempos que se respirava era o mesmo: se Dylan cantava “The hollow horn plays wasted words, proves to warn that he not busy being born is busy dying”, os Mutantes respondiam-lhe com “Eu quis cantar minha canção iluminada de sol, soltei os panos sobre os mastros no ar, soltei os tigres e leões nos quintais, mas as pessoas da sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer”. Eléctrico, em cores de pop-neon e concebido como um filme, Tom Zé, Capinam, Torquato, Gal, Mutantes, Gil e Caetano respondiam “sim” ao desafio de Rogério Duprat: “Sabem vocês o risco que correm? Sabem que podem ganhar muito dinheiro com isso? Terão mesmo coragem de saber que só desenvencilhando-se das formas puras do passado, poderão encontrá-las em sua verdade mais profunda?”. (2008)

07 April 2008

E, AGORA, DYLAN x 34

Vários - I’m Not There (OST)

Menos de metade das trinta e quatro faixas deste duplo CD surge no filme de Todd Haynes acerca das “muitas vidas de Bob Dylan”. Porque o plano dos produtores Randall Poster e Jim Dunbar e dos seus “comandantes de campo” Lee Ranaldo (Sonic Youth) e Joey Burns (Calexico) era precisamente esse: prolongar em disco a estratégia de multiplicação dos Dylans que, no ecrã, se limitava apenas a seis.



Com duas equipas de apoio permanente, os Million Dollar Bashers (Steve Shelley, baterista dos Youth, o teclista John Medeski, Tony Garnier, baixista de Dylan, e Tom Verlaine) e os Calexico, a distribuição de papéis foi convenientemente eclética, estendendo-se de Ramblin’ Jack Elliott – uma vetusta referência do próprio Dylan – a Sufjan Stevens, Charlotte Gainsbourg, Cat Power, Stephen Malkmus, Yo La Tengo ou ao inevitável (mas sempre, sempre, tão dispensável) Antony. Naturalmente, o resultado final tende a oscilar em função das diversas contribuições e da sua maior ou menor empatia com o reportório de Bob Dylan e/ou do deliberado distanciamento que ensaiam. Verdadeiramente preciosas: “Cold Iron Bound” (Tom Verlaine), “Stuck Inside Of Mobile” (Cat Power) e “I’m Not There” (Sonic Youth). (2008)

05 April 2008

DYLAN, ALIÁS, ZIMMERMAN



A cinco páginas do final do Volume One (e, até agora, único) das suas Chronicles, Bob Dylan recorda o instante em que a namorada dos primeiros anos em Nova Iorque, Suze Rotolo, lhe fez ler a carta de Rimbaud dirigida a Paul Demeny, a 15 de Maio de 1871, onde o poeta francês formula o seu "Je est un autre”: “Todas as campaínhas começaram a tocar. Aquelas palavras faziam perfeito sentido. Desejei que alguém, antes, mas tivesse dado a ler". Já antes, numa entrevista a Jonathan Cott, para a “Rolling Stone”, a propósito do seu filme Renaldo And Clara (1978), em que Ronnie Hawkins representa o papel de Dylan e este o da personagem “Renaldo”, quando Cott sugere que, então, “Bob Dylan poderá estar ou não presente no filme”, ele responde-lhe “Exactamente”. Cott insiste: “Mas foi Bob Dylan quem realizou o filme” e Dylan contraargumenta: “Bob Dylan não o realizou. Eu realizei-o”. E Cott remata: “Eu sou um outro”.



I’m Not There (“um filme inspirado pela música e pelas muitas vidas de Bob Dylan”), de Todd Haynes, não faz mais do que conduzir às últimas consequências essa assunção da infinita friabilidade do “eu”. Começando pelo genérico inicial – onde, até ao alinhamento definitivo das letras do título do filme, este passa pelas formas intermédias de I’m He, I’m Her, Not Her e Not Here – e continuando na distribuição da personalidade e dos tópicos da biografia de Dylan por seis personagens das quais nenhuma se chama Bob Dylan (ele próprio também não: o nome de baptismo é Robert Allen Zimmerman). Nem aqui, porém, de forma linear: características de uma infiltram-se na(s) outra(s), os diversos fios narrativos cruzam-se e enovelam-se e, por vezes, só uma subliminar alusão à realidade biográfica (ou iconográfica) oferece a chave para a descodificação. O que, para os menos versados nas minúcias da persona-Dylan, poderá tornar I’m Not There literalmente indecifrável. Por outras palavras, um guia de leitura – do início até ao final, personagem a personagem e nos seus movimentos de interacção – revela-se indispensável.

Abertura: num curto plano-sequência, a câmara persegue a chamada de Dylan ao palco britânico onde, mais à frente, se irá defrontar com o público amotinado. Corte para os últimos metros na trajectória da moto do lendário acidente que ocorreu a 29 de Julho de 1966, após a publicação de Blonde On Blonde (1966) e que assinalou o termo da vida do Dylan-poeta-surreal que sucedera ao outro, porta-voz-de-uma-geração. “Morto” (vêmo-lo no caixão) e autopsiado ao som das palavras “poeta, profeta, fora-da-lei, falsificação, estrela eléctrica... até um fantasma é mais do que uma só pessoa”. A preto e branco, em “travelling” pelas ruas de Nova Iorque, desfilam figuras da época como o lendário “viking”-vagabundo-compositor, Moondog.


Personagem 1 – Arthur Rimbaud (Ben Whishaw): cumprindo a função de eventual narrador/comentador, depõe, em plano fixo, numa situação de interrogatório. Como o “verdadeiro” Rimbaud, também abandonou a escrita, do que é acusado. Aqui e ali, reproduz afirmações de Dylan (“Não me considero realmente um poeta, não gosto dessa palavra. Sou trapezista”) ou improvisa a partir delas (“A experiência demonstra que o silêncio é o que mais aterroriza as pessoas”, “Aceito o caos; não sei se o caos me aceita a mim”) e enumera as “sete regras simples para uma vida clandestina”.


Personagem 2 – Woody Guthrie (Marcus Carl Franklin): é um miúdo negro de onze anos que, sendo o “jovem Dylan” efabulador e obcecado por Guthrie, é também o próprio mítico “Dustbowl balladeer”, comunista e militante, da tradição folk norte-americana. Fugido de uma casa de correcção, salta de comboio em comboio, carrega uma guitarra com a célebre inscrição de Guthrie, “this machine kills fascists”, é agredido e assaltado, canta “Tombstone Blues” com um velho “bluesman” (interpretado por Richie Havens) e é aconselhado a “viver na sua própria época e a cantar sobre ela”. “Woody”, como Dylan, acaba visitando o Guthrie “real” no quarto do hospital psiquiátrico onde este passaria os últimos anos de vida.



Personagem 3 – Jack Rollins (Christian Bale): encarna simultaneamente o Dylan-cantor-de-protesto da “cafe-scene” de Nova Iorque e o Dylan-cristão-novo “born again” do final dos anos 70 (no filme, sob a designação de “Pastor John”), revelado ao mundo com o álbum Slow Train Coming (1979). Ou seja, em ambos os casos, a faceta, imposta ou autêntica, de líder messiânico e o mal estar íntimo que isso lhe provoca. Reproduz vários episódios que, de facto, ocorreram – desde múltiplas entrevistas, ao escândalo aquando da homenagem que o Emergency Civil Liberties Committee lhe prestou e onde Dylan, embriagado, declarou "Para mim, já não existe branco ou negro, esquerda ou direita. Só existe alto e baixo, e baixo é demasiado perto do chão". Acerca dele depõem, entre outros, “Alice Fabian” (aliás, Joan Baez/Julianne Moore) e “Carla Hendricks” (supostamente Judy Henske ou Mary Travers, interpretada(s) por Kim Gordon, dos Sonic Youth), em exercícios de colagem a sequências originais de Don’t Look Back (D. A. Pennebaker, 1965) e No Direction Home (Martin Scorsese, 2005). Deste Dylan paralelo, são-nos mostradas as capas-pastiche dos álbuns Travelin’ On (a partir de Bob Dylan, 1962) e Time Will Come (aliás, The Times They Are A Changin’, 1963).



Personagem 4 – Robbie Clark (Heath Ledger): actor e protagonista do filme imaginário Grain Of Sand (título de uma canção de Pete Seeger), um “biopic” sobre Jack Rollins, que o converte em “James Dean, Marlon Brando e Jack Kerouac num só”. Ou o filme dentro do filme e a ficção enroscada sobre outra ficção. É casado com Claire Monfort Clark (Charlotte Gainsbourg), pintora francesa que conhece no Village, em Nova Iorque e que, como Suze Rotolo, lhe dá a ler Rimbaud. Mas, numa relação tão intensa quanto tumultuosa – sob o pano de fundo do final da guerra no Vietname que a televisão vai mostrando – adivinham-se, contudo, ecos da que ligou Dylan a Sara Lownds (modelo e “bunnie” da “Playboy”), com quem foi casado entre 1965 e 1977. Masculin Feminin, de Godard, é explicitamente citado e, na sequência em que Claire e Robbie passeiam em Nova Iorque, reforçando a ambiguidade, reencena-se em movimento a capa de The Freewheelin’ Bob Dylan (1963) onde ele caminha de braço dado com Suze Rotolo. Que era, essa sim, artista gráfica mas de ascendência italiana.



Personagem 5 – Jude Quinn (Cate Blanchett): assombroso exercício de colagem de Blanchett à imagem frenética do Bob Dylan-traidor-herético-e-anfetaminado da causa folk dos anos sessenta. E, nessa mesma medida – quase todas as sequências, ainda que inúmeras “dissonâncias” as desviem da matriz original, “fotocopiam” praticamente outras idênticas de Dont’ Look Back e No Direction Home –, aquela que, no contexto alucinatório de I’m Not There, menos diverge da realidade. “Jude” será uma alusão aos insultos de “Judas” que, desde o Festival de Newport de 1965 (no filme, Quinn e banda sobem ao palco armados de metralhadoras e disparam sobre o público) até aos concertos em Inglaterra, no ano seguinte, acossaram Dylan implacavelmente; “Quinn” refere-se à canção “The Mighty Quinn”, hipotética metáfora para um “drug dealer”. Pelo meio, “Coco Rivington” (Michelle Williams) é o nome ficcional para Edie Sedgwick, musa da Factory de Warhol, a quem Dylan dedicou “Just Like A Woman”. Repleto de citações de 8 1/2, de Fellini, de Richard Lester e (em assombração cenográfica) do livro Tarantula que publicou em 1966, coloca em cena também os poetas “beat”, Allen Ginsberg e Peter Orlovsky, e Brian Jones, dos Rolling Stones, que Quinn apresenta como “that groovy covers band”.



Personagem 6 – Billy The Kid (Richard Gere): ou o Bob Dylan que, entre 1966 e 1967, após o acidente de moto, fugiu para Woodstock e se empenhou em liquidar a percepção pública que dele existia. Refugiado na mítica Big Pink, gravou, com a Band, as Basement Tapes e, de novo, se reinventou. Num dos fragmentos narrativos da personagem-Jack Rollins, Alice Fabian/Joan Baez afirma: “Aconteceu com ele o mesmo que se conta sobre Billy The Kid, passou a viver clandestinamente. O Jack adorava o Billy The Kid”. Em sinuosa recontextualização histórica num “farwest” surreal, um Kid ressuscitado e em fuga (“aqui sou invisível, sou eu mesmo”) deambula por uma velha povoação (Riddle, em inglês, “adivinha”, "charada" ou “enigma”), reenfrenta e, desta vez, ludibria o seu perseguidor Pat Garrett (Bruce Greenwood), cruza-se com o jovem “Woody” negro e, de si para si, confessa: “Posso mudar durante o espaço de um dia. Quando acordo, sou uma pessoa, quando adormeço, tenho a certeza que sou já outra”;



em Pat Garrett And Billy The Kid (1973), de Sam Peckinpah, Dylan (para além de compor a música) representou o pequeno papel de um membro do gang de Billy, significativamente chamado... “Alias”. Escuta-se, enfim, “I’m Not There” e, no ecrã, uma versão de “Going To Acapulco” (ambas oriundas das Basement Tapes, que só em 1975 seriam publicadas: o seu álbum de 1967, recebeu o nome de outro sanguinário “outlaw” norte-americano, John Wesley Harding) é interpretada por uma banda onde surgem Joey Burns e John Convertino, dos Calexico, e Jim James, dos My Morning Jacket. (2008)

04 April 2008

PELO ESPELHO RETROVISOR



R.E.M - Accelerate

Primeiro, os dados objectivos: após os sucessivos falhanços (estéticos e comerciais) de Up (1998), Reveal (2001) e Around The Sun (2004) que, à excepção de lapsos fortuitos como Green (1988) e Monster (1994), constituíram a verdadeira “idade das trevas” do percurso dos R.E.M enquanto quase única banda sobrevivente do “renascimento” do rock norte-americano do início da década de 80, Michael Stipe, Peter Buck e Mike Mills anunciaram repetidamente – e, agora, confirmam-no – que, no álbum seguinte, teriam de mudar de métodos, “voltar a pegar nos estilhaços do puzzle-R.E.M.” e reconfigurá-lo de novo. Ensaiaram, então, uma variante do modus operandi científico de formulação de uma hipótese de reportório, logo a seguir submetida a teste. O teste do público: durante cinco dias, de final de Junho a início de Julho do ano passado, no pequeno Olympia Theatre, de Dublin, montaram um “live rehearsal” onde, em conjunto com temas antigos da banda, revelaram a totalidade do que viria a ser Accelerate. Resultado: um álbum reduzido aos mínimos obrigatórios para ser considerado como tal, com uma duração total de 34 minutos, no qual metade das 11 faixas mal chegam aos 3 minutos e duas nem os 2 atingem. Isto é (tal como acontece também com a gravação de estreia dos Vampire Weekend), a recuperação do antigo formato do LP de vinil clássico. Ou, respondendo ao espírito do tempo que, crescentemente, encara o suporte CD como algo de obsoleto, a proposta da fórmula “short, sweet and to the point” enquanto tábua de salvação mais apropriada para um universo pop em que “accelerate” se transformou, de facto, na “password” obrigatória. Mesmo que Accelerate – o álbum – seja ainda comercializado em rodelas de plástico de que apenas aproveita metade da capacidade de armazenamento de informação e não tenha arriscado o salto definitivo para o ficheiro virtual de mp3...



Valeu a pena? Ao contrário do côro pavloviano de hossanas que imediatamente reagiu aos estímulos pré-programados, proclamando a tão ansiada ressurreição dos R.E.M., Accelerate ainda não é Stipe/Buck/Mills “vintage”. Na verdade, em boa medida, constitui apenas um gesto de espreitar pelo espelho retrovisor próprio e alheio: a sonoridade suja, rude e agreste dominante tanto puxa a memória para os anos “grunge” como para os episódios Green e Monster (e isso não é bom) e, de um modo geral, diversas canções dir-se-iam versões alternativas de outras anteriores. Queiram, então estabelecer a genealogia entre “Until The Day Is Done” e “Final Straw” ou “Swan H”, entre “Mr. Richards” e “What’s The Frequency Kenneth?”, entre “Horse To Water” e “Little América” ou, sob iniciativa explicitamente auto-referencial do próprio Stipe, em “Sing For The Submarine,” que, deliberadamente, cita “Feeling Gravity’s Pull”, “Electron Blue” e “It’s The End Of The World As We Know It”. Inclui, sem dúvida, belos nacos de R.E.M. da melhor colheita (o trio de abertura “Living Well Is The Best Revenge”, “Man Sized Wreath” e “Supernatural Superserious” há-de ir parar, de certeza, a futuros “best-of”), os textos de Michael Stipe continuam a oferecer belos aforismos como “Believe in me, believe in nothing, corner me and make me something” (de “Hollow Man”), mas, ainda que invertendo o plano inclinado anterior, falta-lhe subir meia dúzia de degraus para chegar, pelo menos, ao nível de New Adventures In Hi-Fi. (2008)

03 April 2008

O ERRO DE EINSTEIN
(dossier do número de Abril de "La Recherche")


A Flagelação - Piero della Francesca

"A Lua está realmente ali quando ninguém a está a observar?" Esta reflexão filosófica de que os físicos se apropriaram tem sido objecto de debate desde há séculos. Em substância, ela coloca a questão de saber se as nossas observações revelam seja o que for sobre um "mundo real" que existiria independentemente das nossas observações e, se sim, como seria ele".

(...)

"Atribui-se ao grande pintor italiano Piero della Francesca, mestre do Renascimento e teórico da perspectiva, a fórmula "Nulla imago sine perspectiva". Ora bem, segundo a interpretação relacional, a mecânica quântica demonstra que isto não é apenas verdade em relação às imagens, mas também relativamente a todos os objectos físicos".

(...)

"Defender que os objectos não possuem nenhuma propriedade intrínseca, não será, com efeito, negar e existência deste mundo exterior que a Física pretende descrever? Não será adoptar uma posição perigosamente idealista, senão francamente antirealista? Não será anunciar a morte da Física como ciência objectiva? Questões escaldantes... Sublinhemos simplesmente que, no passado, a Física nunca pôs em causa a ideia de que existe um mundo fora dos nossos espíritos e que é possível descrevê-lo racionalmente; por outro lado, demonstrou mais do que uma vez que este mundo não é tal como o imaginávamos. A Terra não está imóvel. O tempo não é absoluto. Terá chegado a hora de rever mais uma vez a nossa imagem do mundo e de levar a mecânica quântica realmente a sério? A realidade objectiva, nem absoluta nem independente, será, afinal, relacional?"

(2008)
ELDER STATESMEN



R.E.M. - In Time (The Best Of R.E.M. 1988-2003)




R.E.M. - In View (The Best Of R.E.M. 1988-2003)

No cada vez mais irrelevante "New Musical Express", houve quem sugerisse que, parafraseando "Losing My Religion", esta compilação se deveria ter chamado Losing My Direction. Ainda que se tenha tratado de um lapso decorrente de alguma sessão de autocrítica editorial, Stephen Dalton perdeu uma excelente oportunidade de poupar o teclado. Porque, no que aos R.E.M. diz respeito, é difícil encontrar outra banda (eventualmente os U2 e, mesmo aí...) que, tendo alcançado o patamar superior da projecção mediática (e, sem problemas de maior, tendo-o abandonado quase logo a seguir), tenha prosseguido tão linearmente a sua evolução sem cedências nem compromissos embaraçosos. É um caso típico de snobeira pacóvia perante o sucesso comercial a que, convém sublinhar, TODAS as bandas aspiram: podem ser musicalmente nulas e esteticamente derivativas mas, enquanto tiverem contrato com uma editora obscura e venderem duzentos exemplares, mantêm a "credibilidade indie"; assim que assinam com uma "major" e assomam aos tops, pactuaram irremediavelmente com o grande Satã e o caminho só pode ser a descer. Que não é necessariamente assim provam-no sobejamente In Time e In View, CD e DVD "best of" dos anos-Warner dos R.E.M., que exemplarmente documentam os derradeiros passos até ao êxito planetário de "Losing My Religion" e "Everybody Hurts" (e como seria óptimo que os tops pudessem estar sempre recheados de canções assim!) e toda a posterior e elegantíssima descida (?) do grupo até ao actual estatuto de "elder statesmen" do alt.rock que lhes assenta como uma luva.



Ou, como diria Michael Stipe, não-rock, não-folk, não-country, não-experimental, mas um pouco de tudo isso em simultâneo. Entre música e imagens — combinação de que o magnífico clip para o inédito "Bad Day" é demonstração exemplar —, daria jeito inventariar quantas bandas actuais ("indie" e "whatever") serão capazes de exibir um reportório tão rico e inventivo. Quem não desejaria ter assinado "At My Most Beautiful", "Man On The Moon", "Electrolite", "Imitation Of Life", "All The Way To Reno", "E-Bow The Letter" ou "What's The Frequency Kenneth?", poder ter-lhes acrescentado (em edição limitada) um CD bónus de inéditos, lados B e versões alternativas e sair-se com pleno êxito do empreendimento? Quem não rasgava imediatamente o contrato em papel de embrulho com a "indie" de vão de escada para poder oferecer uma tão excelente e visualmente estimulante colecção de 25 videoclips (incluindo, aí também, raridades e inéditos) como In View? Os R.E.M. desejaram-no, fizeram-no, ninguém perdeu com isso e todos ganharam. Pudessem muitos gabar-se do mesmo. (2003)

02 April 2008

NO VENTRE DA BESTA



In The Belly Of The Beast é uma assombrosa colecção de cartas de Jack Henry Abbott (encarcerado numa prisão de alta segurança) a Norman Mailer, onde reflecte acerca do que é viver o Inferno na terra. "No ventre da besta" é como Michael Stipe define a situação actual dos R.E.M., estabelecendo um paralelo entre a actividade de uma das mais populares bandas norte-americanas contemporâneas e a do cineasta Michael Moore: do lado de dentro do Inferno — os EUA —, usando os media a que têm acesso para o denunciar. O pretexto pode ser o lançamento de mais uma colecção de "greatest hits" (In Time: The Best Of R.E.M. 1988-2003) mas isso acaba por constituir apenas um elemento menor numa intensa conversa de olhos nos olhos com um artista norte-americano que tem visivelmente prazer em usar o cérebro.

Esta compilação de "greatest hits" foi realizada pela própria banda. Que critérios de escolha das canções a incluir seguiram?
Foi muito, muito fácil. Cada um de nós elaborou uma lista das canções que pretendia que figurassem no disco e, no final, as três listas eram muito semelhantes. Tínhamos as canções que foram publicadas como "singles" e aquelas para as quais foram realizados videoclips. O que, no fundo, desejámos foi conceber uma compilação que representasse bem a banda de uma forma razoavelmente exaustiva. Havia canções que foram grandes êxitos como "Shiny Happy People" mas também outras que tiveram menos sucesso como "Nightswimming" e que ajudam melhor a compreender a nossa faceta enquanto banda de "singles".

Vêem-se principalmente como banda de "singles"?
Não, não! Somos essencialmente uma banda de álbuns. Como vê, somos bastante antiquados nesse aspecto (risos). Mas gosto da ideia dos "singles". Não escrevemos canções a pensar se vão ser editadas em "single" ou se vão passar na rádio. É bastante embaraçoso esforçar-se para escrever algo não muito bom mas pensado como "single" e que, afinal, não resulta. Prefiro escrever canções que se apoderem da imaginação dos tipos das rádios e do público mas que não sejam nada óbvias. "Losing My Religion" é um óptimo exemplo: é indiscutivelmente a nossa canção de maior sucesso mas por um puro golpe de sorte! Não é sequer uma canção "como deve ser", dura cinco minutos, tem um bandolim como instrumento principal e não tem refrão! Como é que uma coisa assim se transforma na "canção do ano"? Nada disto se pode prever nem programar.



Li no "press release" que, para auxiliar na escolha, pediram opiniões também a fãs, amigos e familiares mas que excluiam automaticamente quem votasse em "Shiny Happy People". Odeiam assim tanto essa canção?
Não. Os media estão convencidos que a odiamos e não nos largam com isso mas não é verdade. É uma canção "bubblegum" e foi exactamente isso que quisémos que ela fosse quando a escrevemos. É uma canção para miúdos.

Tal como o próprio videoclip...
Claro. Mas, para mim, não cabia nesta compilação.

Mais de vinte anos após o início dos R.E.M., tem já uma perspectiva acerca da forma como o grupo evoluiu?
Sim, vejo com muita clareza as diversas fases e tendências. As intenções muitas vezes não se traduzem naquilo que realmente se passa. Eu tenho uma ideia bem definida de como desejo que seja um disco. Passa-se exactamente o mesmo com o Peter Buck. Ambas são interessantes. Juntam-se as duas e aí está aquilo que são os R.E.M.. Harmoniza-se e articula-se tudo isso e o resultado é algo francamente superior a cada um de nós três isoladamente.

É curioso porque, da geração de bandas americanas a que vocês pertencem — que incluia os Violent Femmes, Dream Syndicate, Green On Red, Long Ryders, Rain Parade, Jason & The Scorchers —, os R.E.M. foram os únicos que construiram uma carreira longa e com êxito...
Há Los Lobos, os Sonic Youth também...

Mas, de modo nenhum, ao vosso nível...
Como unidades criativas, eu diria que sim. Certamente, não de um ponto de vista de sucesso comercial. Não faço a mínima ideia por que motivo aconteceu assim. Nós sempre trabalhámos muito a sério e eu tenho uma paixão imensa por aquilo que faço. A vida é demasiado curta para não nos entregarmos totalmente a algo que desejemos muito fazer. Provavelmente, é só isso: não fazer senão aquilo em que acreditamos. Não há outra forma.



Como é que se sente hoje relativamente aquele período — de "Losing My Religion" e "Everybody Hurts", principalmente — quando os R.E.M. eram gigantescamente populares e era impossível não os escutar na rádio de cinco em cinco minutos?
Era divertido. Na verdade, não tinha muito tempo para ouvir rádio, estava constantemente a cumprimentar pessoas na rua... (risos) Reconheciam-nos constantemente. Mas o nosso estatuto actual é, para mim, muito confortável. Ainda vêm ter connosco e falar-nos de como as nossas canções foram importantes, em dado momento. Só tenho que agradecer. Em Detroit, houve um tipo que realmente me surpreendeu: dirigiu-se a mim e disse-me "obrigado por viverem o sonho". Não me podia ter dito nada melhor. A minha ideia, quando era adolescente, de fazer parte de uma banda, escrever canções, viajar pelo mundo, era, de facto, um sonho. Era uma completa fantasia que nada tem a ver como as coisas verdadeiramente são. Era incrivelmente glamoroso, havia todo um mundo para explorar. Pelo menos, parecia, até termos que passar metade da nossa vida metidos em aviões... (risos) Há partes muito pouco glamorosas naquilo que fazemos mas, no conjunto, para mim, ainda é muito excitante e um grande desafio.

O que resta então dos Twisted Kites — o primeiro nome do grupo — nos R.E.M. actuais?
O grupo tinha apenas dois meses de vida quando começámos a pensar como nos deveríamos chamar. De duas em duas horas, tínhamos um nome diferente. Twisted Kites foi só um deles. Acredite que eram às dúzias... (risos) Acabámos por nos decidir por R.E.M. porque, naquele tempo do punk e da new wave tinham todos nomes muito punk-rock e new wave. E nós não queríamos ser categorizados dessa forma. Tentámos sempre desafiar as diversas categorias, nunca nos encaixámos em nenhuma. Não somos uma banda de punk rock, não somos uma banda de hard rock, não somos sequer uma banda de rock, não somos uma banda de folk, não somos uma banda de country, não somos uma banda experimental. Somos cada uma e todas essas coisas ao mesmo tempo o que, penso, só se pode classificar como R.E.M.. Não, não somos realmente uma banda pop nem rock... Não porque sejamos extraordinariamente originais mas porque todas essas coisas influenciaram a nossa música, oiço-as todas naquilo que fazemos.



Falando então de influências, pareceu-me uma excelente ideia o CD-compilação que vocês organizaram para a revista "Uncut" onde incluiram coisas muito pouco previsíveis como Jimmy Smith, Ornette Coleman, fantasias para guitarra acústica sobre Carmina Burana, canções de trabalho negras para "fife and drum band", Laura Nyro...
Foi, essencialmente, trabalho do Peter. Só conheço cerca de metade delas mas há, por ali, de certeza, muitas coisas que, de uma maneira ou de outra, passaram para a nossa música. Pela minha parte, fiz uma outra lista de 21 canções para a iTunes. Podem comprá-la, para que os autores recebam dinheiro por isso. Aliás, eu próprio vou comprar a minha lista! E, por aí, se poderá descobrir toda uma faceta completamente diferente de influências: Neil Diamond, Kristin Hersh, Fleetwood Mac, Tori Amos...

Se se dispuseram a revelar as vossas influências musicais, poder-se-ia saber também quais as suas preferências em matéria de literatura, cinema...
Spike Jonze, de Being John Malkovitch, Todd Haynes, adoro o Woody Allen, John Cassavettes... O meu filme preferido actualmente é um filme francês de há cinco anos, Quem Me Amar Virá De Comboio, do Patrice Chéreau, que me faz lembrar os primeiros Dogma. Não leio muitos romances mas, quando era mais novo, devorei o Nabokov todo. Ele trabalhava com o inglês como segunda língua mas com um incrível domínio. E leio revistas, toneladas de revistas, que é de onde vem a inspiração para a maioria das músicas. E podia estar aqui até ao pôr do sol a citar-lhe nomes de fotógrafos que admiro...

Nesta compilação há uma canção, "Bad Day", que é uma explícita tomada de posição política em relação ao que é ser-se artista nos EUA sob a administração de George W. Bush...
Alguém muito sábio afirmou que, quando, na vida, as coisas ficam mesmo más, a arte tem tendência para melhorar.

Isso é uma regra?
Não, mas tem algum fundo de verdade. "Bad Day" é uma declaração política muito, muito forte. É também uma canção pop. E é situado aí mesmo que me vejo e aos R.E.M.. E também ao Michael Moore. Não estamos do lado de fora do portão, aos gritos e a atirar pedradas para tentar entrar e chamar a atenção. Estamos lá dentro, a usar os media que as pessoas reconhecem. Estamos no ventre da besta. Se for subversivo, sê-lo-à também num certo sentido populista.



É no ventre da besta que se sentem bem?
Não temos escolha. Não desejei nem planeei nada para que acontecesse assim. Mas esse é o mundo em que vivemos. É muito difícil ser um cidadão americano e não ser obrigado a reconhecer o que se passa com a actual administração. Nacional e internacionalmente.

E, quando, por exemplo, vem à Europa, não o incomoda a forma como, enquanto americano, pode ser encarado?
Acho que as pessoas reconhecem que os R.E.M. sempre tomaram atitudes políticas e sociais bastante claras. Nunca houve nenhum país na História que apoiasse os seus governantes a 100%. Ao ver-se a televisão americana, pode-se ser levado a acreditar que, neste país imensamente poderoso, a maioria das pessoas acredita que a acção do governo é positiva. Eu discordo. Há, pelo menos, metade da população que discorda também. Os EUA são um país onde as pessoas trabalham imenso, muitas têm de ter dois empregos, têm de pagar os seguros do carro (e, sem um automóvel, à excepção de Nova Iorque, não se vai a lado nenhum), da casa, de saúde, de vida, o serviço nacional de saúde não é muito bom, é preciso esforçar-se a sério para pagar a universidade dos filhos, a hipoteca da casa, é necessário haver comida na mesa, máquinas de lavar... A maioria dos americanos tem, no máximo, 45 minutos por dia para dedicar ao que se passa no resto mundo. Não que não se interessem por política. Têm é todo o tempo ocupado a assegurar que não vão ao fundo.

Parece estar a fazer um retrato do inferno...
É, de facto, um bocado infernal. Adoro o meu país e tem muitas coisas de que me orgulho. Mas uma das coisas que, muitas vezes, não se compreende é o quanto estamos separados do resto do mundo. E como isso se reflecte na nossa educação desde os primeiros anos e influencia as escolhas, os preconceitos, a forma como se vê os outros, o que sabemos e o que não sabemos. É um imenso país ingovernável. É uma pena. (2003)