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31 January 2017

VISTAS CURIOSAS 


O “Archivo Pittoresco” foi um semanário publicado em Lisboa, entre 1857 e 1868, e, diz-se, muito apreciado em Portugal e no Brasil pela qualidade da ilustração. Com ele colaboraram Latino Coelho, Camilo Castelo Branco ou Pinheiro Chagas (entre outras luminárias da época) e tinha como finalidade divulgar “a nossa gravura em madeira, dar relevo à palavra e abrir campo em que as vistas curiosas espaireçam pelas criações da arte, da natureza ou da fantasia”. Acerca de Archivo Pittoresco – terceiro álbum de Lula Pena depois de [Phados] (1998) e Troubadour (2010) – não será abusivo dizer que, a partir de coordenadas completamente diferentes, também partilha, sem dúvida, as mesmas intenções: uma vez autorizados a entrar e instantaneamente envolvidos sem regresso na sua atmosfera, aquilo de que, nos apercebemos é da imensa abertura de um campo onde, às “vistas curiosas”, de modo encantatório, outras perspectivas da “arte, da natureza e da fantasia" se oferecem. 



Nada viola as regras do jogo (muito pelo contrário) se começarmos pelo fim: “Come Wander With Me”, subtraída à voz de Bonnie Beecher no episódio 34, da 5ª temporada de Twilight Zone, no qual um cantor se perde em busca de uma canção. Exactamente o mesmo desafio que Lula Pena se propõe e para que nos convida a participar. Se, em Troubadour, nos locais de paragem obrigatória encontrávamos Chico Buarque, José Afonso, Atahualpa Yupanqui, Herberto Hélder, Frederico de Freitas, David Mourão Ferreira, Eden Ahbez, Dolores Duran, Mirah ou Alejandra Pizarnik, desta vez, tropeçaremos no anarquista e surrealista belga, Louis Scutenaire, em canções castelhanas do século XVII de mão dada com antiguidades mexicanas, num triângulo de obscuros brasileiros (Elomar, Ederaldo Gentil e Ronaldo Augusto), em Violeta Parra, no grego Manos Hatzidakis, em tradicionais da Sardenha, nas visões de Jerusa Ferreira e Bénédicte Houart. Todos irremediavelmente convertidos em matéria combustível para a pira a que Lula Pena ateia o fogo e com cujo fumo deliberadamente se intoxica. A consequência procurada – “que todas as canções se ouçam como uma só”, caminhando “à deriva por lugares sem fronteiras fixas, vagueando por várias línguas e sons como quem vai ao encontro da nascente do inconsciente colectivo” – não permite ser descrita por mais palavras. Apenas escutada.

12 July 2013

BESTIÁRIO
 

Dêem-lhe corda e, enquanto tiver fôlego, Tom Waits é capaz de, interminavelmente, debitar nacos de improvável sabedoria sobre o mundo animal: "Sabia que se deitar uma gota de álcool em cima de um escorpião, ele enlouquece e pica-se até morrer? E sabia que as moscas só vivem duas semanas? Eis uma coisa a ter em conta quando matamos moscas. Serão velhas? Terão acabado de nascer? E sabia que os mosquitos preferem as crianças aos adultos e as loiras às morenas? Não sei se são capazes de distinguir as loiras naturais das outras mas acredito que alguns já devem ter sido capazes de evoluir até esse ponto. E as formigas espreguiçam-se quando acordam (já foram vistas a fazê-lo ao microscópio!) e também bocejam. E, depois do trabalho, vão a uns barzinhos pequeninos onde bebem um néctar que as põe um bocadinho tontas. Só para acabar (não o quero maçar com mais histórias destas), os mosquitos são mais atraidos pelo azul do que por qualquer outra cor. O que quer dizer que, nos trópicos, convém usar camisas vermelhas”. Brett e Rennie Sparks (aka The Handsome Family) não costumam fazer o mesmo mas o seu último álbum, Wilderness, reúne uma dúzia de canções em que o título de cada uma é o nome de um animal (“Flies", "Frogs", "Octopus", "Lizard"...). Não se trata, contudo, de ampliar a outras espécies o subgénero da folk-entomológica inaugurado por Mirah em Share This Place (2007). 



Deles – sobre quem Greil Marcus afirmou “O seu surrealismo do quotidiano não tem paralelo na escrita de canções contemporânea”ninguém espera algo de tão confortável: durante os já vinte anos de percurso desde que o ex-cristão "born again" estudioso de música medieval e a ex-"acid head" adolescente que acredita ter sido Hildegard von Bingen a maior "songwriter" de sempre se encontraram (quando ela lhe entregou um cartão com manchas de sangue e uma citação de Thomas Pynchon), habituaram-nos a patinar sobre aquele terreno escorregadio em que Flannery O’Connor reescreve os pesadelos de Kafka e, algures entre o gótico sulista e a devoção pelos Beatles, o imprevisível equilíbrio se descobre. Desta vez, porém, talvez seja mais apropriado falar de um universo filmado, em simultâneo, por dois David (Lynch e Attenborough) com texto e música de Hank Williams e Edgar Allan Poe: o que o "bear hug" com que o barítono profundo de Brett nos envolve vai narrando são a gastronómica beleza do cadáver do general Custer tal como as moscas o viram nas pradarias de Montana (there’s a Wal-Mart now where once the grizzlies roamed”), a história de Mary Sweeney, a louca do Wisconsin, que, em 1896, se aplicava a estilhaçar vidros de janelas (“She was a woodpecker, she couldn’t help but free all the things that hide inside all the pretty trees”) ou a daquela outra mulher que, atingida por um raio, acaba aprisionada num casulo tecido por lagartas (“Keeping time with every rumble, every quiver of the earth, and she slowly changes shape with the turning of the world”). Em matéria de folk "noir" vertida no registo de bestiário sobrenatural assombrado pelo espectro das "murder ballads", durante muito tempo, não irá haver melhor.

26 September 2012

FANTASIAS NA PERIFERIA


David Byrne & St. Vincent - Love This Giant



Jherek Bischoff - Composed

“Que tipo de condições deve verificar-se para que ocorra uma grande transformação musical ou reavaliação cultural como a que aconteceu em Nova Iorque no final dos anos 70, início de 80? Um aspecto importante é que a economia deva estar de gatas. Estamos quase lá, portanto, essa parte está mais ou menos resolvida. O outro aspecto é um pouco mais difícil: recuando um pouco na memória, recordo-me da sensação de, nessa altura, praticamente nenhuma da música pop comercial ter alguma relevância para mim ou para os meus amigos. Actualmente, continua a haver muitos nomes grandes que não me interessam a encher estádios mas, igualmente, bastantes outros músicos e bandas excitantes – como os Dirty Projectors, St. Vincent ou tUnE yArDs – que se fazem ouvir e sobrevivem bem melhor do que poderiam fazer há trinta anos”, dizia, no último número da “Uncut”, David Byrne, com Annie Clark/St. Vincent ao seu lado. E, justificando o título (“The Triumph of Art Rock”) do post de 5 de Maio de 2009, no seu blog, aquando da sua participação no álbum/concerto Dark Was The Night, acrescentou: “A ambição desta geração de músicos não é a de serem estrelas, destruírem aparelhos de televisão e andarem de limusina. O que os motiva (e a mim) é criar óptima música”



Quando o primeiro álbum dos Talking Heads foi publicado (1977) Annie Clark (28.09.82) ainda não tinha nascido. Mas, não apenas David Byrne tem toda a razão como se pode afirmar ainda que, de um modo muito particular, ele e St. Vincent são a cara e a coroa daquela moeda estética que se sente especialmente à vontade a injectar fantasias experimentais na periferia da pop e a virar do avesso formas e conceitos tradicionais sem, por isso, perder o pé naquele terreno que não tem horror à aprovação pública. E, desde que, nesse concerto de Dark Was The Night, se conheceram e, por extensão, se voltaram a encontrar durante a apresentação de Björk com os Dirty Projectors para uma iniciativa da Housing Works (uma organização civil de luta contra a Sida) onde foram convidados a colaborar também, o conceito de Love This Giant começou a emergir. Como na sua participação numa das conferências TED (“How architecture helped music evolve”) Byrne explicou – e desenvolve, agora, no recém publicado livro How Music Works –, o contexto físico decidiu de boa parte das opções: na livraria onde o duo actuaria, o espaço não abundava pelo que, por sugestão de St. Vincent, apenas eles os dois e uma secção de sopros deveriam chegar bem para as encomendas. Assim, o conceito “Beauty and the Beast” – mas ao contrário:  David seria a "Beauty" de plástico e Annie a "Beast" feroz –, fundido com a inspiração em Walt Whitman a quem o álbum tomou o título de empréstimo (‘I Should Watch TV’, em que Byrne, em modo antropológico, canta “I used to think I should watch TV, I used to think it was good for me, wanted to know what folks are thinking, to understand the land I live in”, está repleta de citações do poema "Song Of Myself"), num período de três anos e muita troca de emails com ficheiros sonoros, assentou estacas e cresceu.



Se o método adoptado foi o de “pensar a música como um enigma cuja forma teríamos de decifrar no processo de construção”, o resultado, como só acontece nos melhores casos, é algo que nem um nem outra, sozinhos, poderiam ter realizado. Lugar de viagem (“the song is a gift, a song is a road, a road is a face, a face is a time and a time is a place“) entre géneros, em vários sentidos, tanto passa pelos mesmos pontos por onde Byrne e a Dirty Dozen Brass Band caminharam em Music For The Knee Plays (1985) como se socorre de "hoquetus" medievais enquanto motivo decorativo de ansiedades (“my heart beating, still the perilous night, the bombs burtsting air but my hair is alright”, "The Forest Awakes"), serpenteia entre jazz, funk e vocabulário clássico ("I Am An Ape", "Outside Of Space And Time" ou "Ice Age") e, com inexcedíveis elegância e impertinência e a ocasional colaboração dos Dap Kings e Antibalas, coloca-nos um espelho à frente (“I am an ape, I stand and wait, a masterpiece, a hairy beast”, “I am a shaky ladder, intergalactic matter outside of space and time”) e, sem aviso, puxa-nos o tapete debaixo dos pés (“Tanks outside the bedroom window, we’ll be fine with the curtains closed”).



Composed, de Jherek Bischoff, é outra história bem sucedida de colaborações (também com a participação de Byrne), mas, aqui, de modo artesanal: esboçadas as canções em ukulele, Bischoff deslocou-se a casa de todos os instrumentistas que escutamos para que violinos, violoncelos et alia gravassem as respectivas partes tantas vezes quantas as necessárias até que, no final, soassem como uma orquestra. Repetição do processo para com as vozes (Carla Bozulich, Caetano Veloso, Mirah Zeitlyn, Dawn McCarthy, Byrne...) e palmas para esta singular variação contemporânea sobre o modelo Song Cycle, de Van Dyke Parks, em registo Phil Spector-meets-Danny Elfman.

24 June 2011

PARECE SER ASSIM MAS AFINAL É ASSIM


















Thao & Mirah - Thao & Mirah

De Mirah, já sabemos que podemos sempre esperar alguma coisa razoavelmente inesperada. Nunca fazendo explodir estrondosamente as fronteiras da folk-"indie" que lhe proporcionou a senha de entrada na K Records, de Olympia, Washington, acaba, muitas vezes, por encontrar forma de, lateralizando a abordagem, não corresponder exactamente àquilo para que tais coordenadas apontariam. E isto, caso seja necessário esclarecer, é, sem dúvida, um enorme ponto positivo. O que – não cobrindo, etapa por etapa, a sua trajectória discográfica iniciada (oficialmente) em 2000 com o esclarecedoramente intitulado You Think It’s Like This But Really It’s Like This - poderá ser facilmente exemplificado através de To All We Stretch The Open Arm, (2004) com interpretações de Weill, Dylan, Cohen e Foster ou Share This Place: Stories And Observations (2007), magnífico ciclo de canções, fundador do novíssimo género folk-entomológica, naturalmente, sobre a vida dos insectos.



Desta vez, porém, tudo teve início num encontro com Thao Nguyen (Get Down Stay Down), durante a edição do ano passado do Noise Pop Festival, de S. Francisco, em que, a quatro mãos e duas vozes, interpretaram peças do reportório de ambas. Thao & Mirah, o CD, é consequência lógica e "upgrade" considerável desse momento: co-produzido por (e com participação importante de) Merrill Garbus, dos sobreexcelentes tUnE-yArDs de whokill, a sua marca detecta-se um pouco por todo o lado, ora no improvável formato Young Marble Giants-meets-Rip Rig & Panic de "Likable Man", ora no futurismo primitivo de "Eleven" e no funk-soul a escorregar para o "free-form" delirante de "Rubies And Rocks" ora na "Space Oddity" artesanal de "Spaced Out Orbit", com alguma (falsa e rapidamente desencaminhada) candura folk de permeio para não espantar a caça. Um belíssimo naco de música.

(2011)

03 August 2010

FALA AQUILO QUE SÃO



Lula Pena - Troubadour

O processo é um pouco como o que ocorre com a recitação do "dhikr" islâmico, do "aum" indiano ou do rosário cristão: Lula Pena deixa-se levar pela entoação auto-encantatória das palavras estimulada pelo dedilhar da guitarra, até que voz, cordas e textos sejam uma só coisa e, desta forma, um canal se abra para o mais absolutamente livre jogo de associação de fragmentos de melodias, estilhaços de poesia, auras de harmónicos, arquejos rítmicos, percussões cardíacas. Se, há doze anos, em [Phados], perdíamos o pé na constante ondulação da rota sonâmbula por que Lula nos conduzia, em Troubadour, a sensação não é menos intrigante:



como quem reescreve um interminável palimpsesto, Chico Buarque, José Afonso, Atahualpa Yupanqui, Herberto Hélder, Frederico de Freitas, David Mourão Ferreira, Eden Ahbez, Dolores Duran, Mirah ou Alejandra Pizarnik cavalgam-se, rasuram-se, sobrepõem-se, mutilam-se, elidem-se e procriam, numa hipnótica encenação, possivelmente dividida em sete actos, mas que deverá ser experimentada de um fôlego único. Nas “chaves de leitura” dispersas pela capa do álbum, a primeira alude, naturalmente, à caixa de Pandora e o pano ergue-se sobre o som de uma gaita de amolador e de um diálogo de rua onde alguém, programaticamente, determina: “Vê se falas aquilo que é”. Durante os seguintes seis actos, Lula “fala aquilo que são” as silhuetas de todas estas personagens, numa polifonia para uma só voz. Segundos antes de o pano cair, murmura-nos: “Meu amor?... Sim, diz… Já disse”. Tudo isto teve lugar a 10 de Janeiro, nos estúdios Golden Pony, em Lisboa. Noutro qualquer dia, em lugar diferente, Troubadour teria outro destino e falaria com outras vozes.

(2010)

01 January 2008

MÚSICA 2007 - IV (CD & DVD)
(a classificação, por ordem decrescente, deverá ser vastamente relativizada)



1 - THE NATIONAL - BOXER

2 - Robert Wyatt – Comicopera

3 - Rachel Unthank & The Winterset – The Bairns

4 - Hanne Hukkelberg – Rykestrasse 68

5 - Mirah & Spectratone International – Share This Place: Stories And Observations

6 - Beirut – The Flying Club Cup

7 - Gogol Bordello – Super Taranta

8 - Jens Lekman – Night Falls Over Kortedala

9 - The Fiery Furnaces – Widow City

10 - Bruce Springsteen – Magic

O álbum que marcou indelevelmente 2007 – In Rainbows, dos Radiohead – nunca entraria numa lista dos 50 melhores, do ponto de vista estritamente musical. Porque, não tendo sido, mais uma vez, um ano em que fosse possível identificar sinais proféticos de alguma transformação germinando profundamente nas entranhas da pop – qual foi a última vez que isso aconteceu? quando voltará a ocorrer? –, a verdade é que, se seleccionar um top-10 foi um acto de consagração da sobreexcelência da dezena eleita, não foi menos uma violenta injustiça para muitos dos que acabaram por ter de ser excluídos. Que conste, pois: todas as fúrias do inferno deverão justissimamente abater-se sobre quem optou por não incluir aí Sweet Warrior, de Richard Thompson, Shades of Dorian Gray, de Danny Cohen, Kismet, de Jesca Hoop,
Population, de The Most Serene Republic, The Unfairground, de Kevin Ayers, Apples, de June Tabor, Armchair Apocrypha, de Andrew Bird, Les Piqûres D’Araignée, de Vincent Delerm, A Love Of Shared Disasters, dos Crippled Black Phoenix, The Great Unwanted, dos Lucky Soul, Lucas, dos Skeletons And The Kings Of All Cities ou, para não agravar perigosamente demais o caso, White Chalk, de PJ Harvey. Mas não houve mesmo nada, nadinha, que se possa dizer ter sido “a marca” de 2007? Pronto, para não estragar as festas, façam então o favor de reparar na emergência do factor eslavo/balcânico dos Beirut e Gogol Bordello.

(2008)

04 September 2007

EM LOUVOR DO DESVIO



Mirah & Spectratone International - Share This Place: Stories And Observations




Ray’s Vast Basement - Starvation Under Orange Trees




Holly Golightly & The Brokeoffs - You Can’t Buy A Gun When You’re Crying

Um pequeno desvio do ângulo de visão. Uma alteração de regras, mais ou menos invisível, a meio do jogo. Ou um discreto puxar de tapete debaixo dos pés. Muitas vezes, é quanto basta para introduzir o efeito de perturbação necessário, capaz de fazer chocalhar de modo produtivo os neurotransmissores que se ocupam dos processos criativos. O que, de modo completamente diferente em cada um, aconteceu nestes três álbums, comprovando bastante satisfatoriamente a tese. De Mirah – aliás, Mirah Yom Tov Zeitlyn de seu nome completo – esperar-se-ia qualquer coisa que, mesmo com heterodoxias como o seu album de canções “militantes” (To All We Stretch The Open Arm, 2004) de Weill, Dylan, Cohen, Foster e outros, não andasse demasiado longe da sua variante de “folk-indie”, tal como a K Records, de Olympia, Washington, a reconhece e aprova. E, sendo Mirah quem é, até não seria nada mau. É aqui, então, que devemos enviar os nossos entusiasmados agradecimentos ao Institute for Contemporary Art de Portland que, tendo-lhe dirigido a encomenda de um ciclo de 12 canções a ser estreado no International Children’s Festival de Seattle, em Maio passado, lhe ofereceu a possibilidade de gravar este mui excelente Share This Place, improvável álbum conceptual sobre… a vida dos insectos.



Saudemos, pois, o nascimento da folk-entomológica e corrijamos a saudação já de seguida: não só a música que Kyle Hanson (acordeão), Lori Goldston (violoncelo) – ambos ex-Black Cat Orchestra que acompanhara Mirah em To All We Stretch…) – Jane Hall (percussão) e Kane Mathis (alaúde árabe) executam deve muito pouco ao convencional cânone folk e imenso a uma rica dieta transcultural de “early music”, cabaret, klezmer e arabismos vários, como os textos de Mirah (inspirados na obra do entomologista francês do século XIX, Jean-Henri Fabre e na Insect Play do checo Karel Čapek), em plano picado sobre este microcosmos de rituais de acasalamento, metamorfoses, organismos colectivos e estratégias de sobrevivência, não fugindo ao tema, falam tanto sobre minúsculas criaturas quitinosas de seis patas como acerca de lamentáveis humanos de apenas duas, em esclarecedoras parábolas e interpelações inter-espécies de que “Community” é um óptimo exemplo: ”We communicate with chemicals but this is not as you might think just mechanical, it’s an expressive art, instinctually smart, secretions quiet and dependable”.

Starvation Under Orange Trees sobe um bocadinho na taxonomia e ocupa-se de ratos e homens. Mais exactamente de Of Mice And Men, o romance de John Steinbeck adaptado para o palco pelo Actors Theatre de S. Francisco. Entra (literalmente) em cena Jon Bernson – inventor do ficcional Ray’s Vast Basement, lugar imaginário na topografia alternativa de Drakesville –, alma gémea de Jeff Tweedy (Wilco), Willy Vlautin (Richmond Fontaine) ou Howe Gelb e neto hipotético de Randy Newman, ansioso por confessar que “Steinbeck é um dos meus músicos preferidos: nem sempre lhe compreendo os textos mas as suas melodias valem ouro”.



Naturalmente, o desafio de compor uma banda sonora para o Actors Theatre pareceu-lhe valer platina (a verdadeira, não a dos “discos de”) e, esquivando-se à tentação de macaquear o “dustbowl realism” de Woody Guthrie ou do Ghost Of Tom Joad, de Springsteen, na transposição para o álbum, ampliou o espectro de referências a diversas personagens e circunstâncias de outras obras de Steinbeck como Tortilla Flat, Cannery Row, Grapes of Wrath ou East Of Eden. Sobrevivem fragmentos de música incidental que funcionam enquanto tecido conjuntivo na articulação das canções e atribuem uma certa dimensão cinemática a um universo musical que reinventa a tradição folk/blues/country/jazz e, simultaneamente (com a participação de Nate Query, dos Decemberists, e Enzo Garcia, da banda de Jolie Holland), a faz disparar para coordenadas não muito afastadas do Morricone mais libertário.



Holly Golightly & The Brokeoffs (isto é, Holly Golightly e a personagem que responde pelo nome de Lawyer Dave) aplicam-se numa outra ficção: reencenar a música da América profunda, aquela com esterco agarrado às botas, terra nas unhas, os blues do Delta a temperar o bourbon e rockabilly encardido a escorrer do jukebox num honky-tonk insalubre. A mais que perfeita música ambiente desenhada por medida para a Tarantinoland que, um dia, virá a ser inevitavelmente edificada sob direcção artística de Tom Waits. Sim, mas onde o desvio em You Can’t Buy A Gun When You’re Crying? Holly Golightly, nativa do East Sussex, UK, é tão britânica como a “steak and kidney pie”. (2007)