04 September 2007

EM LOUVOR DO DESVIO



Mirah & Spectratone International - Share This Place: Stories And Observations




Ray’s Vast Basement - Starvation Under Orange Trees




Holly Golightly & The Brokeoffs - You Can’t Buy A Gun When You’re Crying

Um pequeno desvio do ângulo de visão. Uma alteração de regras, mais ou menos invisível, a meio do jogo. Ou um discreto puxar de tapete debaixo dos pés. Muitas vezes, é quanto basta para introduzir o efeito de perturbação necessário, capaz de fazer chocalhar de modo produtivo os neurotransmissores que se ocupam dos processos criativos. O que, de modo completamente diferente em cada um, aconteceu nestes três álbums, comprovando bastante satisfatoriamente a tese. De Mirah – aliás, Mirah Yom Tov Zeitlyn de seu nome completo – esperar-se-ia qualquer coisa que, mesmo com heterodoxias como o seu album de canções “militantes” (To All We Stretch The Open Arm, 2004) de Weill, Dylan, Cohen, Foster e outros, não andasse demasiado longe da sua variante de “folk-indie”, tal como a K Records, de Olympia, Washington, a reconhece e aprova. E, sendo Mirah quem é, até não seria nada mau. É aqui, então, que devemos enviar os nossos entusiasmados agradecimentos ao Institute for Contemporary Art de Portland que, tendo-lhe dirigido a encomenda de um ciclo de 12 canções a ser estreado no International Children’s Festival de Seattle, em Maio passado, lhe ofereceu a possibilidade de gravar este mui excelente Share This Place, improvável álbum conceptual sobre… a vida dos insectos.



Saudemos, pois, o nascimento da folk-entomológica e corrijamos a saudação já de seguida: não só a música que Kyle Hanson (acordeão), Lori Goldston (violoncelo) – ambos ex-Black Cat Orchestra que acompanhara Mirah em To All We Stretch…) – Jane Hall (percussão) e Kane Mathis (alaúde árabe) executam deve muito pouco ao convencional cânone folk e imenso a uma rica dieta transcultural de “early music”, cabaret, klezmer e arabismos vários, como os textos de Mirah (inspirados na obra do entomologista francês do século XIX, Jean-Henri Fabre e na Insect Play do checo Karel Čapek), em plano picado sobre este microcosmos de rituais de acasalamento, metamorfoses, organismos colectivos e estratégias de sobrevivência, não fugindo ao tema, falam tanto sobre minúsculas criaturas quitinosas de seis patas como acerca de lamentáveis humanos de apenas duas, em esclarecedoras parábolas e interpelações inter-espécies de que “Community” é um óptimo exemplo: ”We communicate with chemicals but this is not as you might think just mechanical, it’s an expressive art, instinctually smart, secretions quiet and dependable”.

Starvation Under Orange Trees sobe um bocadinho na taxonomia e ocupa-se de ratos e homens. Mais exactamente de Of Mice And Men, o romance de John Steinbeck adaptado para o palco pelo Actors Theatre de S. Francisco. Entra (literalmente) em cena Jon Bernson – inventor do ficcional Ray’s Vast Basement, lugar imaginário na topografia alternativa de Drakesville –, alma gémea de Jeff Tweedy (Wilco), Willy Vlautin (Richmond Fontaine) ou Howe Gelb e neto hipotético de Randy Newman, ansioso por confessar que “Steinbeck é um dos meus músicos preferidos: nem sempre lhe compreendo os textos mas as suas melodias valem ouro”.



Naturalmente, o desafio de compor uma banda sonora para o Actors Theatre pareceu-lhe valer platina (a verdadeira, não a dos “discos de”) e, esquivando-se à tentação de macaquear o “dustbowl realism” de Woody Guthrie ou do Ghost Of Tom Joad, de Springsteen, na transposição para o álbum, ampliou o espectro de referências a diversas personagens e circunstâncias de outras obras de Steinbeck como Tortilla Flat, Cannery Row, Grapes of Wrath ou East Of Eden. Sobrevivem fragmentos de música incidental que funcionam enquanto tecido conjuntivo na articulação das canções e atribuem uma certa dimensão cinemática a um universo musical que reinventa a tradição folk/blues/country/jazz e, simultaneamente (com a participação de Nate Query, dos Decemberists, e Enzo Garcia, da banda de Jolie Holland), a faz disparar para coordenadas não muito afastadas do Morricone mais libertário.



Holly Golightly & The Brokeoffs (isto é, Holly Golightly e a personagem que responde pelo nome de Lawyer Dave) aplicam-se numa outra ficção: reencenar a música da América profunda, aquela com esterco agarrado às botas, terra nas unhas, os blues do Delta a temperar o bourbon e rockabilly encardido a escorrer do jukebox num honky-tonk insalubre. A mais que perfeita música ambiente desenhada por medida para a Tarantinoland que, um dia, virá a ser inevitavelmente edificada sob direcção artística de Tom Waits. Sim, mas onde o desvio em You Can’t Buy A Gun When You’re Crying? Holly Golightly, nativa do East Sussex, UK, é tão britânica como a “steak and kidney pie”. (2007)

1 comment:

Anonymous said...

"reencenar a música da América profunda, aquela com esterco agarrado às botas, terra nas unhas, os blues do Delta a temperar o bourbon e rockabilly encardido a escorrer do jukebox num honky-tonk insalubre."

You're rollin over to the
lowside of the road!