A Stargaze Orchestra é um "ensemble" de câmara sedeado em Berlim mas que, sob a direcção de André de Ridder, cultiva uma eclética rede de contactos que lhe permitiram colaborar com tão diversos parceiros como Uri Caine, Nico Muhly, Efterklang, John Cale, Matthew Herbert, Deerhoof, These New Puritans, Matmos, Julia Holter, This Is The Kit e Lee Ranaldo. Emparelhada, em 2015 – por iniciativa do projecto Liquid Music, da Saint Paul Chamber Orchestra – , com o quinteto de electronica-trip pop de Minneapolis, Poliça, começaram por aquecer os músculos com Bruise Blood: Reimagining Steve Reich's ‘Music for Pieces of Wood’ e, partiram, a seguir, para uma “residência artística virtual” (ou “uma relação de ping-pong”, segundo Ryan Olson, cérebro sonoro dos Poliça), trocando mails e ficheiros através do Atlântico.
Se o estímulo inspirador era The Long Emerency (2005), o livro de James Kunstler sobre a iminente distopia de um mundo com recursos petrolíferos esgotados e devastado por alterações climáticas, quando a Stargaze Orchestra chegou a Minneapolis, a 9 de Novembro de 2016 (o dia a seguir à eleição de Donald Trump), foi encontrar uns Poliça à beira do desespero: “Crescemos numa época em que, na América, parecia termos progredido desde a época dos linchamentos e do Ku Klux Klan. E, agora, aqui e na Europa, estamos a andar para trás. Tínhamos o progresso nas mãos e ele escapou-se-nos. Como fazer música nestes rempos de tragédia? A cabeça anda-nos à roda com as notícias. Como criar algo que não nos entorpeça, que não seja apenas uma pílula para nos acalmar? Como sentir profundamente tudo isto e não ficar perturbado?” perguntava Channy Leaneagh, a voz da banda. A resposta foi, nesse mesmo dia, colocar em acção a relação simbiótica já estabelecida entre ambos os colectivos e gravar "How Is This Happening?", longos 10 minutos de um olhar atordoado sobre um buraco negro (“I can’t breathe, I can’t see, resisting him, resisting us, don’t believe a single lie they will tell you so they will divide, I’ll fight until my days are done, protect the ones he preys upon, lost as I am, lost as I can be...”), pintado em sinistros "clusters" electro-acústicos e implacável pulsação subliminar. Após as apocalípticas diatribes de "Marrow" e "Cursed" e os outros avassaladores 10 minutos da faixa-título, não poderia haver mais tremenda conclusão para Music For The Long Emergency, a banda sonora para um desamparado pedido: “Give me a worthy tool to tell me it's not over, to seep in deep, my madness”.
22 June 2016
AFINAL, NÃO É ESTRANHO
Primeiro, escuta-se uma "bent note" tocada no "gopichand" – um instrumento asiático de uma só corda – que, sem que nos apercebamos, se transforma em uivo de lobo. Após dez segundos de uma intrincada teia de universos rítmicos sobrepostos (que persistirá e se adensará até ao final), a voz canta: “Milwaukee man led a fairly decent life, made a fairly decent living, had a fairly decent wife, she killed him… ahhh, sushi knife, now they’re shopping for a fairly decent afterlife... the werewolf is coming”. E, alçada nessa metáfora do lobisomem, enquanto sopros, percussões e electrónica se preparam para ceder o lugar aos acordes de um orgão de "horror movie", mostra-nos o fim do mundo: “Life is a lottery, a lot of people lose, and the winners, the grinners, with money-colored eyes, eat all the nuggets, then they order extra fries (...) You’d better stock up on water, canned-goods off the shelves, and loot some for the old folks, can’t loot for themselves”. Acabámos de escutar o tipo que, há quase meio século, escreveu“Can you imagine us, years from today, sharing a park bench quietly? How terribly strange to be seventy”.
Afinal, não tem nada de estranho e, à beira dos 75 anos, Paul Simon (ele, perante quem Andrew Bird, Vampire Weekend, Dirty Projectors e Merrill Garbus/tUnE-yArDs ajoelham), muito longe de enganar as horas em bancos de jardim, ocupou-se a criar um dos mais ricos e audaciosos álbuns da sua discografia. A companhia (Nico Muhly, yMusic, Jack DeJohnette, Vincent Nguini, Cristiano Crisci/Clap! Clap!) foi inspiradora e as fontes de alimentação (Harry Partch, Laurie Anderson, a história e a política americanas) suficientemente estimulantes para que Stranger To Stranger se deixasse construir enquanto assombroso objecto multifacetado que tanto devora um "sample" do Golden Gate Quartet e compõe em torno dele como autoriza que uma balada sofisticadamente simoniana seja amavelmente trespassada pelos "cloud chamber bowls", "chromelodeons" e "zoomoozophones" de Partch. Apontado à terra (“The riots started slowly with the homeless and the lowly, then they spread into the heartland”) ou ao imaginário Além (“God goes fishing, and we are the fishes, he baits his lines with prayers and wishes”) mas com destinatários bem identificados: “I make my verse for the universe and my rhyme for the universities”.
07 June 2016
GENEALOGIAS
Os dois pares de irmãos Dessner e Devendorf e (em menor grau) Matt Berninger – isto é, The National – estão em acelerado processo de se converterem numa daquelas centrais nucleares de produção musical que, mais tarde ou mais cedo, tornarão indispensável a organização de uma árvore genealógica para que consigamos orientar-nos sem tropeções através do seu superlotado labirinto. Não esgotando o assunto e começando por Bryce Dessner, bastará recordar as colaborações com o New York City Ballet, Filarmónica de Los Angeles, Kronos Quartet, Richard Reed Parry, Nico Muhly, Sufjan Stevens, Jonny Greenwood, Steve Reich, Matthew Ritchie, a co-composiçao (com Ryuichi Sakamoto e Alva Noto) da banda sonora para O Renascido, a criação da editora Brassland e do festival MusicNow, em Cincinnati. Dando lugar ao gémeo, Aaron, inventarie-se a produção de bandas e músicos como This Is The Kit, Sharon Van Etten, The Lone Bellow e Local Natives, o alistamento nas hostes instrumentais de David Byrne, Grizzly Bear ou My Brightest Diamond, e a fundação dos festivais de Eaux Claires, no Wisconsin, e Boston Calling, devendo ainda associar-se-lhe o nome a várias das iniciativas atribuídas a Bryce, de que as mais relevantes serão Dark Was The Night (2009) e a edificação do recentíssimo altar de culto aos Grateful Dead, Day Of The Dead, que envolveu praticamente a totalidade da "intelligentzia indie" & adjacências norte-americanas.
Extracurricularmente, Matt Berninger ensaiou o pouco entusiasmante projecto EL VY com Brent Knopf, dos Menomena, e Bryan e Scott Devendorf, dupla de genuíno "drum & bass" orgânico, a quem The National deve bem mais de dois quintos da sua personalidade, ouvimo-los, apenas, em diversos dos antes referidos e no perímetro experimental Pfarmers. Mas poderemos escutá-los também, agora, em trio com Ben Lanz, dos Beirut, e anunciando-se como LNZNDRF (ler “Lanzendorf”). Conta a lenda que, no início, foram apenas uma solução de recurso para a ausência de uma "support band" dos National, em Auckland, na Nova Zelândia. A verdade é que o resultado de uma prolongada "jam" de dois dias e meio numa igreja de Cincinnati deu à luz algo que, não sendo imaculado, dir-se-ia o intrigante elo perdido entre os Joy Division e o "krautrock", achado, sabe-se lá porquê, num arquivo perdido dos Pink Floyd na 4AD.
Picando o ponto no clássico inevitável dos balanços finais de ano: mas onde tinha eu a cabeça quando, naquele dia, em vez de escrever sobre o disco/livro/filme “x”, optei por me ocupar do “y”, acabando por deixar o “x” indesculpavelmente de fora? Na maioria dos casos, a sensação de missão incompletamente cumprida deixa-se atenuar por uma variante mais intelectualmente respeitável do lúbrico “so many girls, so little time” mas, noutros, o amargo de boca custa a passar. Se, em 2013, não ter feito uma única referência – mesmo que só de passagem – à reedição do óptimo mas eternamente mal amado Muswell Hillbillies, dos Kinks (1971), ainda se justificaria com a desculpa velhaca de que uma reedição não tem o mesmo peso de uma publicação original, ter ficado em branco relativamente a Aheym, de Bryce Dessner, quase obriga a entrar em modo-Opus Dei de cilício e vergastada.
Figura destacada da primeira geração pop/rock academicamente diferenciada mas, ao mesmo tempo, imunizada contra a tentação de, a despropósito, exibir a erudição, o guitarrista dos National, também compositor residente do Muziekgebouw, de Eindhoven, convidado da American Composers Orchestra e frequentador natural do círculo onde se movem Steve Reich, Philip Glass, Nico Muhly ou David Lang, é o género de pós-mimimalista que, tendo digerido sem sobressaltos a história da música do século XX, catabolizou os excessos dogmáticos do dodecafonismo e ensaiou uma síntese de vocabulários, do Renascimento à actualidade. Apresentado por Reich ao respeitabilíssimo mas sempre aventureiro Kronos Quartet, foi para ele que escreveu as quatro peças que integram Aheym: durante cerca de 45 minutos de vertiginoso virtuosismo rítmico e contrapontístico, nos quais, segundo Bryce, “cada tema responde ao que o antecede”, dispara rajadas de riffs reconfigurados para ensemble acústico, desenha intrincados labirintos eriçados de "pizzicati" e intensos polígonos sonoros assimétricos, em jogos de luz e sombra, silêncio e mapas astrais de harmónicos, viaja entre a polifonia renascentista – Thomas Tallis, Palestrina, Gesualdo – e um Arvo Pärt mais terreno, e, recorrendo ao Brooklyn Youth Chorus, em "Tour Eiffel", sobre um poema do chileno Vicente Huidobro, entrega-se a uma sinuosa ascensão vocal-orquestral, que poderia servir como ilustração ao aforismo “less is more”. E, de certa forma, ao seu inverso.
16 April 2013
ODISSEIAS NO ESPAÇO
The Temple Of Speculative Music - Robert Fludd
No final do ano passado, a Universidade de Westminster (ex-Regent Street Polytechnic), em Londres, decidiu atribuir ao seu antigo aluno, Nick Mason, o grau de Honorary Doctor of Letters pelo contributo por ele dado à música, influenciado pelos estudos de arquitectura que, nela, havia realizado e que, tal como os ex-colegas Roger Waters e Richard Wright, interrompera em 1965, nunca concluindo o curso. Não haverá imensos sinais disso na música dos Pink Floyd mas a capa de Relics (1971), desenhada por Mason, aparenta algumas intrigantes semelhanças com a gravura (surrealmente reconfigurada) "The Temple Of Speculative Music", do matemático, cosmólogo e cabalista inglês do século XVII, Robert Fludd (suspeita reforçada por uma outra verdadeira gravura de Fludd figurar no booklet da reedição de 1994 de The Piper At The Gates Of Dawn), em cuja arquitectura ele procurou inscrever a divisão do monocórdio pitagórico, os modos litúrgicos, o estudo do contraponto e, de um modo geral, capturar visualmente, o conceito de musica universalis.
Pink Floyd - "Interstellar Overdrive"
De formas diversas, os Floyd (em "Astronomy Domine", "Interstellar Overdrive", "Set The Controls For The Heart Of The Sun" ou "Cirrus Minor") viajaram pelas galáxias mas foi em "Eclipse" que praticamente parafrasearam – “everything under the sun is in tune” – o contemporâneo de Fludd, Johannes Kepler, o qual, em Harmonices Mundi (1619), propôs o esquema geral para a “harmonia das esferas” (“Os movimentos dos céus não são mais que uma eterna polifonia”): um coro celestial com Mercúrio, como soprano, Vénus e Terra nos contraltos, Marte, o tenor, e Júpiter e Saturno, ocupando o lugar dos baixos. Porém, uma harmonia imperfeita: a melodia que a Terra entoa seria mi – fá – mi o que, segundo Kepler, constituiria um eterno lamento pela miséria (miseriam) e fome (famen) reinantes.
Da Sinfonia “Júpiter”, de Mozart, aos "Planetas", de Gustav Holst, à Sinfonia Nº 2, “Copernican”, de Górecki, à "Die Harmonie Der Welt", de Hindemith, às infindas odisseias espaciais de Sun Ra, ou às autênticas Symphonies Of The Planets – que converteram em som os sinais electromagnéticos inaudíveis captados pelas sondas Voyager e Cassini – publicadas pela NASA, o tema esteve sempre pronto a ser abordado.
Planetarium, encomendado a Sufjan Stevens, Bryce Dessner (dos National) e Nico Muhly, pelo Muziekegebouw, de Eindhoven, Barbican Centre, de Londres e Ópera de Sidney, é um ciclo de canções sobre o sistema solar, para cordas, sopros e teclados que, no ano passado, fez exercícios de aquecimento, em palco, na Europa e Austrália e só no final de Março último, estreou em Nova Iorque, na Brooklyn Academy of Music (proximamente editado em álbum mas, com variável qualidade audiovisual, quase todo disponível no Youtube). Musicalmente, bastante mais próximo de The Age Of Adz (2010) do que de The BQE (2009), parece, não apenas prolongar o aparente impasse estético de Stevens que, aqui e ali, os “glassismos” de Muhly reorientam (Dessner é virtualmente indetectável), mas, algo mais inquietantemente, pelo aparato cenográfico e grandiloquência, quase (re)anuncia a aventesma do rock sinfónico. Que os céus nos protejam.
CAÍDOS NO CHÃO DA SALA DE MONTAGEM (II) (durante o Verão)
The Drums - Album
O Verão é, oficialmente, uma estação, do ponto de vista musical, pouco exigente. Qualquer coisinha que desempenhe, a contento, o papel de gin-tónico sonoro e, se possível, traga acoplado um sistema de ar condicionado, cumpre, instantaneamente, os mínimos exigíveis para ser considerada música-de-Verão. The Drums estão nessa categoria: cópia de cópias dos Cure, New Order, Orange Juice e afins mas... fresquinha.
Jónsi - Go
Com os restantes Sigur Rós em sabática, Jónsi Birgisson – o cantor de timbre quase-castrato – inventa a banda sonora para uma espécie de Disneylândia imaginária. E apercebemo-nos de que a felicidade jorra como leite e mel porque Jónsi se converteu à língua da fada Sininho. Mas, caso tivéssemos dúvidas, as portentosas cavalgadas orquestrais de Nico Muhly arredá-las-iam de vez. O mundo é bom e belo e os anjos cantam.
Vários - Theme Time Radio Hour With Your Host Bob Dylan (Season 2)
A enorme riqueza das “Theme Time Radio Hours” que, entre Maio de 2006 e Abril de 2009, Bob Dylan manteve na Sirius XM Rádio, residia tanto na selecção musical como nos textos, apartes e entrevistas que Dylan incluía como separadores. Aqui, recolhem-se “apenas” 50 faixas da segunda temporada: de Captain Beefheart a Loretta Lynn, não falta quase nada. Só o humor e a sabedoria made in Zimmerman.
The White Stripes - Under Great White Northern Lights (DVD, real. Emmett Malloy)
Um pouco à maneira do que os Sigur Rós haviam realizado também em 2007 e registado no DVD Heima, os White Stripes, em digressão por palcos menos comuns (autocarros, barcos, lares de terceira idade, escolas e salões de bowling) de remotas cidades do Canadá, levantam – mas não demasiado – as cortinas sobre os bastidores e deixam-nos espreitar, em simultâneo, para alguns fragmentos dos concertos.
Los Campesinos! - Romance Is Boring
À terceira investida, Los Campesinos! (Cardiff, UK) inventam um módico de equilíbrio entre uma estética-"over the top" (cordas, sopros, guitarras frenéticas e histeria coral) e sólida filosofia pop traduzida em tiradas como “there’s future in the fucking, but there is no fucking future”, “I love the look of lust between your thighs” ou a memorável “All’s well that ends, I suppose”.
(2010)
03 May 2010
COM A BOCA CHEIA DE FLORES
The National - High Violet
Desde o final da transcorrida idade em que os álbuns eram objectos físicos comprados em lojas, não deverá ter existido outro disco – considere-se apenas a possível excepção de Contra, dos Vampire Weekend – que, muito antes de ser publicado, tenha desencadeado um tão intenso e universal "buzz" por entre os circuitos (tremendamente) nervosos da Internet e outros lugares afins da mente global. Notícias e contranotícias sobre o alinhamento das canções (que entravam, saíam e reentravam), boataria acerca do título (até razoavelmente tarde, esteve para se chamar Summer Lovin’ Torture Party, acabou por ficar High Violet, supostamente retirado de um obscuro panfleto religioso), concertos-surpresa na diminuta Bell House, de Brooklyn para um público de "select few", aparições no "Late Night With Jimmy Fallon", da NBC, "upload" frenético de "bootlegs" e versões intermédias de considerável parte dos temas, "streaming" a conta-gotas no próprio site da banda, entrevistas-relâmpago dando conta dos avanços e retrocessos... um frenesim que, se pararmos um pouco para pensar, não será exactamente comum em relação a uma banda que existe há já onze anos (sim, isso mesmo, onze anos), que, apesar de criticamente venerada, nenhum dos anteriores quatro registos explodiu verdadeiramente nos relatórios de contas da sua editora (Boxer, o último de 2007 e maior sucesso até agora, ficou-se pelas honrosas 180 000 cópias nos EUA) e que, vendo bem, se situa rigorosamente nos antípodas de tudo o que são os estereótipos do rock’n’roll.
Como, aliás, num extenso artigo acerca dos National, escreveu Nicholas Dawidoff, no New York Times de 19 de Abril, “with the National, it’s never rock’n’roll”. Puríssima verdade. A "job description" da profissão não costuma contemplar vagas para trintões de classe média, descendentes de confortáveis famílias burguesas de Cincinnati, com licenciaturas em Yale e Columbia, gente boémia embora academicamente aplicada e estudiosa de matérias como História Judaica, música, arte e design. Nada que os impeça, porém, de recolher louvores das diversas aristocracias, dos R.E.M. (“A coisa mais espantosa que, desde há muitos anos, ouvi”) a Steve Reich (“São a derradeira encarnação de uma banda clássica de rock’n’roll”) e, para o que mais importa, da influente maçonaria indie que, discreta mas militantemente, lhes foi engrossando a vaga de fundo que, por estes dias, ameaça, finalmente, rebentar.
Nas palavras do baterista Bryan Devendorf, a particular ecologia criativa do grupo – essa singular reunião de dois pares de irmãos (um deles, de gémeos) e do “extra”, Matt Berninger – resume-se à da típica e adorável família disfuncional: “O Matt é o pai. O Scott (irmão de Bryan) é a esposa eternamente sofredora. Eu sou o tio-ovelha negra. E o Aaron e o Bryce são as gémeas que gostam de controlar os pais”. Num plano mais propriamente musical, o “it’s never rock’n’roll” traduz-se no jogo de equilíbrio entre o academismo de Bryce Dessner (o curso de guitarra na Yale School of Music abriu-lhe o apetite para as intimidades estéticas com Steve Reich, Philip Glass e Nico Muhly), o purismo "garage" musicalmente analfabeto de Matt e o produto dos sobredotados gânglios basais do cérebro de Bryan que, muito mais do que se satisfazer com assegurar a estabilidade rítmica do grupo, lhe define e enriquece os traços de identidade que a distinguem da mera rotina-rock funcional.
Até aqui, contudo, nada mais do que contabilidade, deve e haver de dinâmica colectiva, matéria estilística e princípios activos sonoros, a partir dos quais muitos álbuns que não fizeram História se alimentaram. Porque, aos National, depois de Alligator e Boxer, não se exigia menos do que aquilo por que ansiavam as personagens de “Start A War”: “Something, something better than before, we expected something more”. Mesmo que o que tenha ficado para trás, essas duas longas sequências, em ébria "slo-mo", da “uninnocent, elegant fall into the unmagnificent lives of adults”, fossem tudo menos coisa menor.
“Começámos por tentar gravar um disco pop divertido”, contava Berninger, há semanas, “colei até a palavra ‘felicidade’ na parede. Mas rapidamente nos desviámos desse caminho. Vai ser o nosso melhor álbum mas nunca poderá ser descrito como feliz”. A felicidade, é verdade, assenta-lhes mal. E, se, antes, às pálidas silhuetas “pink, young and middle class” a memória dos anos em que teriam sido “ruffians, going wild and bright in the corners of front yards, going in and out of cars” ainda lhes azedava as horas, desta vez – como no Springsteen de The River ou no Nick Cave de The Good Son –, tudo parece desmaterializar-se num simulacro de resignação doméstica (mas os fios que a movem permanecem bem visíveis), uma flatulência vertida em palavras que se cavalgam: “I had a hole in the middle where the lightning went through, I told my friends not to worry”, “Sorrow found me when I was young, sorrow waited, sorrow won”, “Live on coffee and flowers, try not to wonder what the weather will be, I’ve figured out what we’re missing, tell you miserable things after you’re asleep”. Lá fora, caminhando “through the Manhattan valley of the dead”, de headphones nos ouvidos (“venom radio and venom television, I’m afraid of everyone”), “with my kid on my shoulder, I try not to hurt anybody I like, but I don’t have the drugs to sort it out”, a própria ideia de apaziguamento fere: “Lay me on the table, put flowers in my mouth, you can say we invented a summer lovin’ torture party”. Suja e eléctrica, enfática e orquestral, canção a canção, desfila, solene, a banda sonora para a vitória do “Fake Empire”.
(2010)
10 November 2009
ACADEMISMO MODERNO
Sufjan Stevens - The BQE
Sufjan Stevens - Run Rabbit Run
É melhor começarmos a deixar de acreditar que, um dia, Sufjan Stevens irá concluir o projecto de compor e gravar um álbum dedicado a cada um dos 50 estados da União que anunciou por altura da publicação de Greetings From Michigan, em 2003. Até agora, para além desse, apenas se lhe seguiram, em 2005, Illinois e, um ano depois, The Avalanche: Outtakes And Extras From The Illinois Album. Mas, se aceitarmos a ideia de não o tomar excessivamente à letra, não será difícil reconhecer que – mais directa ou indirectamente – quase toda a sua música (até os EP de canções de Natal) acaba por ser uma colecção de imagens captadas através das múltiplas faces do grande poliedro americano. The BQE não poderia ser um melhor exemplo disso mesmo: encomendada pela Brooklyn Academy of Music e estreada em Outubro de 2007, no decurso do Next Wave Festival, na Howard Gilman Opera House, é uma suite cinematográfica-musical inspirada pela Brooklyn-Queens Expressway, a decrépita autoestrada, construída entre as décadas de 30 e 60, que liga esses dois "boroughs" de Nova Iorque e que se converteu em ícone da corrosão urbana.
É perfeitamente possível escutar a música independentemente das imagens mas a obra só ganha verdadeiramente o sentido total – é o próprio Stevens que invoca o conceito wagneriano de "Gesamtkunstwerk" – no ponto onde filme e banda sonora se encontram. Realizado por Sufjan e Reuben Kleiner em película de 8 e 16 milímetros, no ecrã permanentemente tripartido é projectada uma polifonia visual que (intercalada com o "ritornello" de um trio de "hula hoopers"), coreografando, da manhã até à noite, travellings, picados, contrapicados, grandes planos, zooms e planos fixos de ruas, edifícios, automóveis, asfalto, rodas e engarrafamentos – algures entre o Koyaanisqatsi, de Reggio/Glass, e The Man With The Movie Camera, de Vertov –, se articula com o glorioso poliestilismo da partitura sinfónica (desdobrada em sucessivas vénias a Philip Glass, Copland, Ives, Gershwin ou Bernstein) e caminha de um registo documental geometricamente encenado para a pura abstracção cinética.
Run Rabbit Run, entretanto, é outra demonstração do exuberante e eclético "academismo moderno" de Sufjan Stevens: interpretado pelo quarteto de cordas, Osso, e com arranjos de Maxim Moston, Nico Muhly, Gabriel Kahane, Michael Atkinson, Rob Moose e Olivier Manchon, o seu álbum de 2001, Enjoy Your Rabbit (aventura electrónica em torno do Zodíaco chinês), renasce como brilhante exercício de releitura assente em textos de apoio dos vários minimalismos mas também de Bartók, Debussy, Ravel e (outra vez) Ives ou Copland.