Nota: repare-se como duas das pré-condições há 8 anos referidas nesta caixa de comentários - "concertos de Tom Jones e Richard Clayderman" -, se encontram já concretizadas
DORES DE CABEÇA?!!!... SAÍ DO "ALICE" DO TIM BURTON COMO SE DEZ DIVISÕES PANZER ME TIVESSEM MARCHADO SOBRE OS DOIS HEMISFÉRIOS E BOMBARDEADO O CEREBELO!
Why 3D doesn't work and never will. Case closed:"Dark, small, stroby, headache inducing, alienating. And expensive. The question is: how long will it take people to realize and get fed up?" (Walter Murch)
Só quem nunca tenha, realmente, lido a Alice, de Lewis Carroll, é que poderá, equivocadamente, imaginar que se trata de um livro para crianças. Grace Slick e Tom Waits compreenderam-no, Tim Burton, não. E o mesmo se poderia dizer de uma infinidade de outros clássicos “infantis”, do Capuchinho Vermelho, de Charles Perrault, ao Principezinho, de Saint-Exupéry, histórias de suposta candura e inocência cujo sentido último dificilmente – e, muitas vezes, felizmente – será alcançado pelo hipotético público-alvo. Leave Your Sleep, o último álbum (duplo) de Natalie Merchant desde The House Carpenter's Daughter – uma colecção de versões de temas folk, de 2003 –, apesar de ter surgido, nos últimos seis anos, a partir das cantigas e embalos que Natalie foi criando para a filha, Lucia, desde que ela nasceu, não anda também muito longe desse modelo. Como ela própria confessa no belíssimo e informativo booklet de 80 páginas, em "hardback", “arranquei estes poemas obscuros e excêntricos das suas páginas lisas e amarelecidas e dei vida a uma parada de bruxas e raparigas destemidas, cegos e elefantes, gigantes e marinheiros e ciganos, igrejas flutuantes, ursos dançarinos, cavalos de circo, uma princesa chinesa, um moço de recados e muitos outros. (…) Os poetas são os guardadores da linguagem sagrada que descreve os nossos lugares santos – desconhecidos e impossíveis de conhecer. (...) O trabalho do poeta é rodear de silêncio tudo aquilo que vale a pena ser recordado”.
O trabalho de Natalie Merchant, esse, foi a sempre problemática tarefa de desocultar a música que cada texto traz em si e que está ou não disposto a revelar. Aqui, todos os vinte e seis se mostraram colaborantes, numa extensa lista que vai de Ogden Nash a e.e. cummings, Robert Louis Stevenson, Edward Lear, Gerard Manley Hopkins, Robert Graves, Christina Rossetti, Laurence Alma-Tadema ou às "nursery rhymes" da Mother Goose. Sim, isto não é, definitivamente, "O balão do João". E muito menos o é quando nos apercebemos que o elenco de mais de cem músicos que participaram nas gravações inclui gente como Wynton Marsalis, Medeski, Martin & Wood, os Klezmatics, o grupo de gospel, Fairfield Four, os irlandeses Lunasa e elementos da New York Philarmonic Orchestra, prontos a fazerem disparar melodias e palavras para todas as tonalidades de um micro-universo que contém em si bluegrass e barroco, R&B e pop de câmara, festa judaica e tradição nativa, swing e ecos das Apalaches, cabaret, Beach Boys, "chinoiseries" e New Orleans.
Se, como Natalie, igualmente, admite, “a agenda escondida deste projecto é vir a transformar-se numa produção teatral multimedia”, muitas expectativas deveremos alimentar acerca do que, em palco, há a esperar destas narrativas escritas por pregadores bígamos, crianças prodígio, corretores da Bolsa surrealistas e homossexuais geniais, repletas de monstros devoradores de crianças, morangos no oceano, velhas matronas azedas de vinte anos, figurões neuróticos, veleiros à deriva, tremendas maldições e "nonsense" delirante generosamente distribuído. É muito possível que Lucia não tenha, todas as noites, escorregado tranquilamente para o sono – pois se é o próprio lema do álbum que, numa quadra da Mother Goose, apela “Girls and boys, come out to play, the moon doth shine as bright as day, leave you supper and leave your sleep, and come with your playfellows into the street”... – mas que (mesmo, talvez, sem se aperceber completamente das peculiaridades do gosto da mãe quanto a canções infantis) se terá imensamente divertido, não sobram grandes dúvidas.
(2010)
23 August 2009
INDIE (DE "INDUSTRIAL")
Florence + The Machine - Lungs
Florence Welch tem, de facto, atrás de si, uma máquina. Que, mesmo nestes anos do estertor final da indústria discográfica dominada pelas majors tal como as conhecíamos (à indústria e às majors), continua a carburar de acordo com as antigas normas e ainda mantém o engenho suficientemente lubrificado para, aqui e ali, ir produzindo resultados. No caso de Florence, o design do projecto é absolutamente transparente: conceber um "ersatz" de estrela indie com motor turbo industrial. Calculado ao pormenor, diga-se. Primeiro, a biografia: filha de Evelyn Welch – historiadora de arte norte-americana e habituée do Studio 54 – e do publicitário Nick Welch, com infância e juventude protegidas mas apropriadamente "perturbadas" e passagem pelo Camberwell College of Art no currículo, o que fica sempre bem no retrato de uma "would-be-pop-star" com pedigree. Naturalmente, alguém cuja mãe-historiadora de arte baptizou como Florence só poderia ser devota da arte do Renascimento italiano e, em particular (oh quão popmente conveniente!), da Circuncisão de Cristo, de Mantegna. Ou assim os "spin doctors" discográficos nos pretendem fazer crer.
A composição da personagem pula, depois, sem grandes sobressaltos, para um registo pré-rafaelita destrambelhado com imprescindíveis laivos "góticos", referências dispersas a Edgar Allan Poe e Tim Burton e a informação adicional de que Miss Welch iniciou a carreira cantando em casamentos e funerais de família, "mas especialmente, funerais". Nada disto teria o mínimo problema – indústria é indústria e, de Tin Pan Alley aos ABBA, muito devemos à pop industrial – se Lungs fosse luva de dimensão adequada a esta mão e, como nos garantem, descendente directo de uma ilustre linhagem que incluiria Nick Cave, Tom Waits, Björk, Kate Bush e Siouxsie. A última, conceda-se, é marginalmente plausível: "Kiss With a Fist", o primeiro single, é uma tentativa, vá lá, decente, de cruzar os Banshees com os White Stripes. Bastante mais difícil é engolir que, de um composto de "riot grrrl" pop caricatural, garage rock com esteróides, soul-baunilha e os menos recomendáveis traços de uma Patti Smith de cartoon, todos cerzidos em canções com títulos como “Cosmic Love” ou “My Boy Builds Coffins”, possa resultar algo de vagamente associável ao quinteto supra mencionado e não apenas uma ruiva, giraça, de pernas até ao pescoço e com um vozeirão que berra histórias de lobisomens e corações em sangue.
(2009)
18 May 2009
TECHNICOLOUR DISNEY NIGHTMARE
St. Vincent - Actor
Como Regina Spektor, Shara Worden (My Brightest Diamond) ou Joan "as Police Woman" Wasser, Annie Clark (alias, St. Vincent) é moça pop com pedigree académico, no caso, o Berklee College of Music. E – deve ser a versão contemporânea dos colégios de freiras enquanto viveiros de gloriosas devassas – moça pop numa variante admiravelmente inclassificável que reinvindica como antecedentes estéticos Pierrot le Fou, de Godard, Badlands, de Mallick, ou O Feiticeiro de Oz, de Victor Fleming, as bandas sonoras-Disney da Bela Adormecida, da Branca de Neve ou da Dama e o Vagabundo, Scary Monsters, de Bowie, Robert Fripp e os Yo La Tengo.
"Technicolour Disney Nightmare" é designação que assenta muito bem a esta música de monstruosa Mary Poppins revista por Tim Burton segundo Corman ou, se preferirem, de Alice no país dos horrores: ricamente orquestral à maneira do seu mestre Sufjan Stevens, coral e melódica à beira do precipício, descendência demente de uma Björk estuprada por Gainsbourg, capaz de alinhar "You're a liar, you're an extra lost in the scene" imediatamente antes de "I sit transfixed by a hole in your T-shirt" e de isso soar assaz sedutor.
(2009)
21 July 2008
O IMPULSO PARA O MAL
No ano de 1845, em The Imp Of The Perverse, Edgar Allan Poe desenvolveria de forma explícita uma ideia que atravessa toda a sua obra (particularmente em The Black Cat, Never Bet The Devil Your Head ou no "mal constitucional" de que falava o Roderick de The Fall Of The House Of Usher): "Estou absolutamente convicto de que a certeza de uma acção ser errada é frequentemente a única força invencível que nos impele a levá-la a cabo. Esta avassaladora tendência para fazer o mal pelo próprio mal não admite análise nem explicação. É um impulso elementar, radical, primitivo". Cento e vinte e quatro anos depois, em "Some Kinda Love", Lou Reed quase o repetia: "Let us do what you fear most, that from which you recoil, but which still makes your eyes moist". Não era a primeira e não seria a última canção na qual Reed comentaria o que, "between thought and expression", se passa na mente de quem se sente irremediavelmente impelido para a transgressão, o erro compulsivo, a atracção pelo abismo, a autodestruição. Daí que estivesse provavelmente escrito algures que Reed e Poe, um dia, se haveriam de encontrar...
Tudo começou com POEtry, a quarta ópera criada em 2000 por Robert Wilson em colaboração com o Thalia Theater de Hamburgo, após as duas realizadas com Tom Waits (The Black Rider, 1990, e Alice, 1992) e uma primeira, Time Rocker, de 1996, já com Lou Reed, sobre texto de Darryl Pinckney, a partir de The Time Machine, de H. G. Wells. Se, nesta, tudo se centrava numa viagem através do tempo a bordo de um peixe gigante que circulava entre o antigo Egipto, um salão de ópio do século XVII, o Kansas actual e o distante futuro, com dezasseis novas canções de Lou Reed, em POEtry, Reed não assinou apenas as canções mas foi também responsável pela totalidade do libretto, baseado em onze novelas e poemas de Edgar Allan Poe. Nela, um Poe múltiplo, jovem e não tanto, guia da narrativa ou apenas personagem incidental, confrontava-se com o seu próprio labirinto, assombrava e deixava-se assombrar pelas imagens do seu universo mental onde se cruzavam as criaturas que povoam o negrume macabro da sua obra: vítimas torturadas pelo demónio da perversidade, supliciadas pela hiper-acuidade dos sentidos, homicidas claustrofóbicos que reflectem as sombras obsessivas da alma de Poe, enquanto à volta da vertigem se erguiam os enigmas dum longo sono desperto concebido por Robert Wilson. "Aqueles que sonham de dia conhecem muitas coisas que escapam aos que apenas sonham de noite" dizia Poe, em Eleonora. Reed e Wilson encarregaram-se de nos fazer vê-las.
POEtry - Robert Wilson + Lou Reed
Aquando da estreia, declarou este último ao "Tageszeitung": "Poe está, para mim, entre os maiores escritores de sempre. E penso que, ao dizê-lo, estou em boa companhia: Heiner Müller admirava-o desmedidamente. Quando lhe falei acerca da minha intenção de trabalhar sobre Poe, ele encorajou-me. O que me interessa em Poe é que ele representa um mistério insolúvel, algo que faz parte do subconsciente colectivo. Há nele também algo estranho: se, por um lado, foi um espírito universal, por outro, o seu destino pessoal influenciou enormemente a sua obra. Poe está cheio de contradições. E o que me fascina mais nele é a presença de uma certa forma de ironia quando, habitualmente, o imaginamos como uma personagem extremamente sombria. POEtry tem, evidentemente, a ver com Poe, mas, na realidade, Lou Reed e eu criámos o nosso próprio universo. Levámo-lo em consideração assim como à sua obra, tratámo-lo com o maximo respeito, mas não sacrificámos a nossa independência". Pelo seu lado, Lou Reed confessaria: "Poe é compulsivo, obsessivo, ansioso, pura paranoia. Peguei no ensaio que ele escreveu, The Imp Of The Perverse e, a partir dele, escrevi uma pequena peça para o álbum. Fi-lo no estilo de Poe a pedido do Bob Wilson que me tinha sugerido que escrevesse um ensaio freudiano sobre ele. O tema é: porque me atrai tanto aquilo que sei ser mau para mim? Basicamente, parti dos textos de Poe para me exprimir individualmente. E nunca tive um momento que fosse de hesitação. Adoro a linguagem de Poe. Tem tudo a ver com o que penso que o rock poderia ser: o lado físico, rítmico e sexual combinado com o poder da palavra. Não vejo nenhuma razão para que não possamos gostar de rock e ser inteligentes ao mesmo tempo. Há uma teoria segundo a qual, se pusermos o cérebro a funcionar, o sexo já não se diverte. Parece-me uma visão muito estreita das nossas possibilidades".
Vincent (real. Tim Burton, 1982, dito por Vincent Price)
A reverência e admiração pela obra de Edgar Allan não é, obviamente, recente: traduzido e venerado por Baudelaire (que iniciava cada dia com uma oração a Poe e acerca dele escreveu sobre "o prazer sobrenatural que o homem pode sentir ao ver o seu próprio sangue escorrer, os impulsos súbitos, violentos e inúteis, os enormes gritos lançados para o ar quando a mente já não controla a garganta"), Fernando Pessoa, Jorge de Sena ou Mallarmé e cuidadosamente anotado por Valéry, é também o antepassado de H.P. Lovecraft e do cinema de terror. Arthur Conan Doyle disse acerca dele que, se cada escritor tivesse de pagar um cêntimo por cada influência que retirou da sua obra, as moedas assim recolhidas ultrapassariam a altura da Grande Pirâmide. Mestre das fobias e do suspense, inventor do romance policial, jornalista amador de pasquins humorísticos, Poe foi não apenas o criador de uma certa forma de obsessão e de angústia modernas mas também o primeiro comentador irónico e lúcido do universo literário, simultaneamente popular e erudito, que inventou. E outro seu devoto, o produtor norte-americano Hal Willner, recorda que, uma vez, Allen Ginsberg lhe disse: "Tudo vai ter a Poe. Toda a arte literária posterior reflecte a influência de Poe: Burroughs, Baudelaire, Genet, Dylan".
Isso aconteceu quando Willner trabalhava na gravação de Closed On Account Of Rabies - Poems And Tales Of Edgar Allan Poe (1997), um álbum duplo de "spoken word" em que, entre outros, participaram Marianne Faithfull, Christopher Walken, Iggy Pop, Diamanda Galás, Abel Ferrara, Jeff Buckley, Debbie Harry ou Gabriel Byrne. Embora na área da música a predilecção por Poe não fosse coisa nova (de Peter Hamill a Philip Glass, Debussy, Alan Parsons Project, Mr. Bungle ou até o próprio Lou Reed, em The Bells, todos o abordaram), seria essa obra colectiva coordenada por Hal Willner que haveria de funcionar como antecedente directo de The Raven, o recém-publicado duplo álbum de Reed que reconstitui e amplia o espectáculo de palco criado com Bob Wilson. Ancorado em diversas peças cruciais de Poe — The Cask Of Amontillado, The Fall Of The House Of Usher, The Tell Tale Heart, The Pit And The Pendulum, Annabel Lee e diversas outras incluindo o referido The Imp Of The Perverse —, centra-se metaforicamente em torno do poema "O Corvo" que Pessoa traduziria. Escrito no Inverno de 1843/44, à beira do Hudson (desesperado por dinheiro, acabaria por vendê-lo por quinze dólares à "American Whig Review" juntamente com a sua Philosophy Of Composition), aquele que, em 1849 — ano da morte de Poe —, foi considerado por John Daniels "o primeiro poema americano" é aqui fabulosamente lido por Willem Dafoe numa muito livre paráfrase de Lou Reed que dele só conserva a estância inicial.
"The Raven" lido por Willem Dafoe + The Cabinet of Dr. Caligari (real. Robert Wiene, 1920)
Num álbum literalmente assombroso (que, naturalmente, Willner foi chamado a produzir), Dafoe é apenas uma das estrelas de um elenco onde aos elementos da banda de Reed (Mike Rathke, Fernando Saunders e Tony Smith) se reunem Laurie Anderson, David Bowie, Kate & Anna McGarrigle, os Blind Boys Of Alabama, Ornette Coleman, a violoncelista Jane Scarpantoni, os sopros "downtown" pós-Lounge Lizards de Steven Bernstein, Paul Shapiro e Doug Wieselman, o contratenor, Antony, os teclados de Friedrich Paravicini e, na declamação dos textos, Steve Buscemi, Elizabeth Ashley, Amanda Plummer, Fisher Stevens e Kate Valk. Algures entre teatro radiofónico à Orson Welles, musical delirantemente poliestilístico (jazz, electrónica, gospel, rock abrasivo, canção minimal) e uma espécie de "cinema for the mind", The Raven não cabe, para Lou Reed, em nenhuma das categorias habitualmente aceites: "De certo modo, isto é uma nova forma. Não sei como chamar-lhe porque já não se trata de um espectáculo e não é um filme. É dirigido puramente aos ouvidos e à imaginação. Não faço a menor ideia se as pessoas estão preparadas para isto ou se irão interessar-se minimamente. Mas exige uma grande dose de concentração".
"Tell Tale Heart" + animação de FRfeeney sobre desenhos de Alberto Breccia
E, de entre o luxo de todas as colaborações, ao "LA Weekly", sublinhou a experiência que foi partilhar um estúdio com Ornette Coleman: "Fizemos sete versões de 'Guilty' com o Ornette. Ele gravou a primeira e eu fiquei à beira das lágrimas, era lindíssima. Disse-lhe 'Se quiseres, podemos ficar já por aqui'. 'Não, não', respondeu-me ele, 'agora quero gravar outra com o guitarrista, depois outra com o baixo, a seguir mais uma com o baterista, outra com a voz e, no fim, uma todos juntos'. E foi exactamente isso o que ele fez! No início dos anos 60, costumava andar atrás dos concertos dele no Village. Não tinha dinheiro para entrar na maioria dos clubes. Por isso, escutava através da porta aquela banda com o Billy Higgins, o Charlie Haden e o Don Cherry". Sobre "Fire Music" — a avassaladora descarga de ruído branco que antecipa "Guardian Angel", a faixa final do álbum —, enfim, confessa: "É uma experiência auditiva como uma gigantesca onda sonora. Foi gravada logo a seguir ao 11 de Setembro e é, em grande medida, um reflexo disso. Foi muito complexo gravá-la. Não tem guitarras. Queria obter um certo som de guitarra tipo Metal Machine Music e esperei muito tempo por que a tecnologia para isso se desenvolvesse. Conversava com especialistas de informática e eles diziam-me que era impossível. Até que descobri uma forma de o fazer. Se a conseguia ouvir era capaz de a tocar. Mas tenho de confessar: não seria capaz de a repetir. Aconteceu naquele momento e não conseguiria fazê-lo outra vez. Ouvi-la em MP3 será castrá-la. Pode haver quem diga que isso não tem importância. Tudo bem, façam-no por vossa conta e risco. Mas será como ler o Ulisses, de Joyce, em banda desenhada".
(2003)
14 March 2008
CIRCUS PUNK
Ego Plum & The Ebola Music Orchestra - The Rat King
É muito irritante quando se descobre que alguém já descreveu algo precisamente nos mesmos termos em que o iríamos fazer. Fiquei, pois, com considerável antipatia por um tal Brian Baker que, no site da Ebola Music Records, fala de The Rat King, imaginando “uma Terra paralela, o exacto duplo molecular desta, mas completamente única e independente do nosso planeta”. Nela, David Lynch e Tim Burton colaboraram numa animação de terror, entregaram a banda sonora aos Residents, Devo e Oingo Boingo, os quais invocaram os espíritos de Zappa, Raymond Scott e Kurt Weill, alistaram Beck, Tom Waits e Captain Beefheart para o “voiceover” e Brian Wilson para a produção executiva.
Resta-me, então, acrescentar que Ego Plum (aliás, Ernesto Guerrero) é um compositor, performer e artista visual de Los Angeles e que a Ebola Music Orchestra – um ensemble de dez executants de sopros, marimbas, acordeão, cordas, bateria e guitarra – pratica o mais glorioso “circus-punk” desse ou de outro planeta qualquer. Ah!… (detesto quando me roubam as palavras!) mas vejam bem que o sacana do Baker nem sequer reparou que Carl Stalling também veio pela mão de Zappa, Scott e Weill...
(2008)
21 April 2007
O “FAKE” COMO ARTE
Lucky Soul - The Great Unwanted
Au Revoir Simone - The Bird Of Music
Um naco da filosofia de Andy Warhol: “Ando a ver se me decido entre ser sincero ou fingir que o sou. Sempre pensei que toda a gente fingia. Mas, agora, sei que não é assim. Não tenho a certeza se devo fingir que tudo é verdade ou que tudo é falso. Não sei se está a ver: é que, para que uma coisa se tornasse verdadeira, eu teria que a fingir”. É possível que não tenham reparado mas acabaram de vos cair no colo as coordenadas éticas/estéticas de que necessitam para saborear sem preconceitos nem sentimentos de culpa os dois monumentos (estou a pesar cuidadosamente as palavras) do mais puríssimo “fake” que são The Great Unwanted e Bird Of Music: tanto os Lucky Soul como as Au Revoir Simone fingem tão completamente que chegam a fingir que é pop a pop que deveras sentem.
Ali Howard não poderia ser mais sincera no seu fingimento de Debbie Harry – que é tão sentido e autêntico que incorpora também Sandie Shaw, Dusty Springfield, Petula Clark, Diana Ross e Ronnie Spector – e os restantes Lucky Soul (origem: Greenwich, Londres), com a mais profunda convicção, simulam viver nos anos dourados da Tamla Motown e terem sido colegas de escola das Supremes, Shangri-Las, Ronettes ou Shirelles. O que, no admirável mundo da mentira wildeana (ou da simulação de Warhol), é, evidentemente, verdade e oferece o bónus sem preço de uma mão-cheia de pop-pop-pop gloriosamente clássica, daquela que, vinte segundos após ter disparado em corrida, explode no fogo-de-artifício de ofuscantes refrões que se agrafam irremediavelmente aos tímpanos.
Erika Forster, Heather D’Angelo e Annie Hart, as três sílfides de Brooklyn foragidas de um sonho húmido de David Hamilton (ou de David Lynch, fã confesso que as descreveu como “innocent, hip and new"), essas, alimentam diariamente a ilusão de a Casio-pop de porcelana de Bird Of Music – Sofia Coppola bem poderia ter esperado alguns anos para fazer dela a banda sonora de Virgin Suicides – ser, na verdade, o segundo álbum “perdido” dos Young Marble Giants de que nem Stereolab nem Broadcast tiveram a arte de sintonizar a alma para o poder canalizar no plano terreno. Não ousemos duvidar: o nome do trio poderá ter sido tomado de empréstimo a Pee Wee’s Big Adventure, de Tim Burton, mas apenas Alison Statton (aliás, Erika) poderia cantar “Let the sunshine, let it come, to show us that tomorrow is eventual”. (2007)