Showing posts with label Shakespeare. Show all posts
Showing posts with label Shakespeare. Show all posts

11 June 2023



(sequência daqui) 4) “A única coisa que espero poder fazer é cantar aquilo que penso e, talvez, recordar-vos de alguma coisa. Não me classifiquem como um homem com uma mensagem. As minhas canções são só eu a conversar comigo mesmo. Pode parecer uma afirmação egoísta mas é a verdade. Não tenho qualquer responsabilidade perante ninguém a não ser perante mim próprio” (Bob Dylan, Londres, 1965)


5) “Andava em concertos quando recebi a surpreendente notícia de ter ganhado o Nobel da Literatura e precisei de algum tempo para a processar. Pensei em William Shakespeare. Imagino que se via como um dramaturgo. A ideia de escrever literatura não lhe deve ter passado pela cabeça. Escrevia para o palco. Para ser dito, não lido. Enquanto escrevia o Hamlet, devia estar a pensar em várias coisas diferentes: ‘Quais os actores certos para estes papéis?’, “Deverá a acção decorrer na Dinamarca?” (...) ? ‘O financiamento está a correr bem?’ Aposto que a última coisa que lhe ocorria era a interrogação ‘Será isto literatura?’ (do discurso de aceitação do Nobel da Literatura de 2016, lido por Azita Raji, embaixadora dos EUA na Suécia, a 10 de Dezembro, após uma relutância de 15 dias em reconhecer a atribuição) (segue para aqui)

14 September 2020

13 April 2020

UM RAIO DE LUZ

John F. Kennedy visitou Duluth, no Minnesota, três vezes. Duas durante a campanha para a sua eleição como presidente dos EUA, em 1960, e outra, em Setembro de 1963, dois meses antes de ser assassinado, em Dallas, no Texas. A propósito da segunda visita, a 2 de Outubro de 1960, em Chronicles Volume One, Bob Dylan escreve: “A minha mãe contava que 18 000 pessoas tinham comparecido para o ver no Veterans Memorial Building, umas na rua, outras trepando aos postes, e que Kennedy era um raio de luz e compreendia perfeitamente a região onde se encontrava. Proferiu um discurso heróico, dizia ela, e trouxe uma esperança enorme a muita gente. A Iron Range era uma área à qual muito poucos políticos de projecção nacional ou gente famosa se arriscavam a ir... fora eu tipo de votar em eleições, teria votado em Kennedy apenas por ele ter ido lá. Gostava de poder tê-lo visto”.


Quando JFK foi morto, a 22 de Novembro de 1963, Dylan tinha 22 anos e acabara de gravar The Times They Are A-Changin’, o terceiro álbum, que publicaria dois meses mais tarde. Segundo o seu biógrafo, Anthony Scaduto, no dia a seguir ao assassinato, Bob tinha um concerto marcado em Ithaca ou Buffalo: “Havia uma atmosfera realmente depressiva. Mas não podia cancelar, tinha de subir ao palco. Para meu grande espanto, a sala estava cheia. A canção de abertura era ‘The Times They Are A-Changin’’ e pensei: ‘Como vou eu ser capaz de a cantar com palavras como ‘there’s a battle outside and it’s ragin’, it’ll soon shake your windows and rattle your walls”? Mas tinha de a cantar, todo o concerto partia dali”. A reacção do público não poderia ter sido mais surpreendente: “Qualquer coisa tinha virado o país do avesso e aplaudiram-na entusiasticamente. Não percebia porque batiam palmas nem percebia porque a tinha escrito. Não compreendia nada. Para mim, era tudo uma loucura”.


Quando regressou a Greenwich Village, ele a namorada Suze Rotolo, como quase toda a gente na América, durante o fim de semana e na segunda-feira do funeral, não tiraram os olhos da tragédia que passava na televisão: “A morte de Oswald, o funeral, as repetições contínuas da morte de Kennedy, a confirmação do novo presidente, a recusa da viúva em tirar o vestido ensanguentado para que o mundo pudesse ver o sangue do marido”. Dylan pouco falou. Bebeu um pouco de vinho e escutou o Requiem de Berlioz uma e outra vez. Mas nunca escreveu uma canção sobre esse funesto momento histórico. Outros o fariam. Acima de todos, Phil Ochs, no devastador delírio electroacústico de "Crucifixion" (1966). Mas também os Byrds ("He Was a Friend of Mine", 1966), Beach Boys ("The Warmth Of The Sun", 1964), Lou Reed ("The Day John Kennedy Died", 1982), Misfits ("Bullet", 1978), Pearl Jam ("Brain Of J.", 1998), Tori Amos ("Jackie’s Strength", 1998) ou Postal Service ("Sleeping In", 2003). Dylan, porém, manteve-se em silêncio.


Não que lhe escasseasse a vocação ou sequer o treino: olhara, repetidamente, para o abismo em "A Hard Rain’s A-Gonna Fall" (“I’ve walked and I’ve crawled on six crooked highways, I’ve stepped in the middle of seven sad forests, I’ve been out in front of a dozen dead oceans, I’ve been ten thousand miles in the mouth of a graveyard”), "All Along the Watchtower" ( "There must be some way out of here, said the joker to the thief, there's too much confusion, I can't get no relief.") ou "Jokerman" (“Nightsticks and water cannons, tear gas, padlocks, Molotov cocktails and rocks, behind every curtain, false-hearted judges dying in the webs that they spin, only a matter of time ’til night comes steppin’ in”). Seria preciso esperar 57 anos até que, à meia noite de 27 de Março, sem aviso, oito anos após Tempest, Bob Dylan soltasse para o mundo, "Murder Most Foul", um dilúvio de palavras e música de 17 minutos – a sua mais longa canção de sempre – cujo gatilho narrativo tem lugar em Dallas, 22 de Novembro de 1963: “Twas a dark day in Dallas, November '63, a day that will live on in infamy, President Kennedy was a-ridin' high, good day to be livin' and a good day to die, being led to the slaughter like a sacrificial lamb”.


Construída como uma articulação de duas canções diferentes, "Murder Most Foul" – título retirado de uma cena do primeiro acto de Hamlet – situa-se, inicialmente, no interior do Lincoln Continental que conduz John Kennedy ao açougue, enumerando em detalhe cada ponto do trajecto (Love Field, Grassy Knoll, Dealey Plaza, Elm Street, Trinity River, Parkland Hospital), mas, qual sonho febril, desde o arranque inquietada pela incessante interferência, explícita ou dissimulada, de dezenas de referências históricas, literárias e musicais, títulos e citações de filmes, autocitações, ecos, uma jangada de palavras e imagens à deriva ou uma outra Waste Land na qual Abril já não é “the cruellest month” mas sim Novembro. E, de súbito, tudo muda: invocando o fantasma do lendário DJ Wolfman Jack – “Wolfman Jack, he’s speaking in tongues (...) play me a song, Mr. Wolfman Jack” – segue-se uma interminável "playlist" do acervo musical da América e do mundo, espécie de “people’s history” alucinada ou sequência errática de episódios da Theme Time Radio Hour, na qual, como na totalidade dos 17 minutos, sobre um fundo musical discretamente cénico, Dylan recita mais do que canta esta longuíssima litania.


Mas por que motivo terá sido necessário esperar quase seis décadas para que Bob Dylan, numa altura em que, no mundo, tudo se encontra em apavorada suspensão, tivesse, enfim, decidido abordar o assunto? Na verdade, não poderia ser mais apropriado: no terrível momento em que, à beira da catástrofe, os EUA são comandados por um dos mais desprezíveis e perigosos exemplares da espécie humana em cujas palavras é impossível acreditar mesmo antes de sequer pronunciar a primeira sílaba, Dylan recorda, em trágico contraste, aquela figura que, ainda que imperfeitamente, encarnou o “raio de luz” de que a mãe, Beatrice, falava. ‘The day that they killed him, someone said to me, ‘Son, the age of the Antichrist has just only begun’”, canta ele agora, acrescentando: “I said the soul of a nation been torn away, and it's beginning to go into a slow decay”. Os dois últimos pedidos a Wolfman Jack são “Play ‘The Blood Stained Banner’, play ‘Murder Most Foul’”.

10 July 2018

UM ANTROPÓLOGO DE MARTE


Começa como Hamlet numa "masterclass" de neuroanatomia. Sozinho em palco, sentado a uma mesa, enquanto exibe um modelo do cérebro humano, David Byrne vai-o observando e descrevendo: “Esta é uma área de grande desordem; esta secção é extremamente precisa; esta área exige atenção; aqui é a ligação ao lado oposto; aqui há demasiados sons para o cérebro compreender; aqui o som organiza-se em blocos que fazem sentido; aqui situa-se aquilo a que chamamos alucinação, será a verdade ou apenas uma descrição?” É "Here", a última canção do recentíssimo American Utopia. Naturalmente, segue-se "I Zimbra" (de Fear of Music, 1979), colisão improvável de percussão africanófila com o poema "Gadji Beri Bimba" de Hugo Ball, fundador do Dadaísmo, esse tumulto mental de reconfiguração da linguagem e da percepção do mundo. Nesse momento, um a um, já entraram no palco os 12 elementos da banda que acompanha Byrne: como ele, todos descalços e de fato Kenzo cinzento, sobre o qual, em arnês de metal, apoiam vários instrumentos (uma bateria desconstruída e dividida por seis executantes, teclados) acrescidos de baixo e guitarra. 



E em movimento permanente: meia "marching band", meia escola de samba brasileira – progressão lógica do que acontecia com a "brass band" na digressão de Love This Giant (2012), com St. Vincent –, a coreografia de Annie-B Parson, que desde Here Lies Love (o "musical" sobre Imelda Marcos, de 2010) colabora com Byrne, desfaz em pó o dualismo cartesiano – corpo e mente são um só e têm como linguagem única a dança e a música, a música e a dança. 34 anos após, lado a lado com Jonathan Demme, ter reinventado a ideia de apresentação musical "live" em Stop Making Sense, o “American Utopia Tour” é a resposta prática à questão que nunca cessou de o intrigar (e que, em 2012, verteu em livro): “How music works”. Funciona assim, num deliberado jogo de contradições entre palavras, música e encenação (“Não estou, seguramente, a descrever nenhuma utopia. Alguns dos versos, em particular, são realmente distópicos ou não exactamente optimistas. Mas, no refrão, abre-se espaço para alguma esperança”), autocitações (a gestualidade desarticulada de "Once in a Lifetime") e ácidas metáforas políticas (“We are dogs in our own paradise, in a theme park all our own, doggie dancers doing doody, doggie dreaming all day long”), espécie de "song & dance routine" de um efervescente “vaudeville” concebido por um antropólogo de Marte. (11.07.2018, Hipódromo Manuel Possolo Cascais)

11 December 2016

"I was out on the road when I received this surprising news, and it took me more than a few minutes to properly process it. I began to think about William Shakespeare, the great literary figure. I would reckon he thought of himself as a dramatist. The thought that he was writing literature couldn't have entered his head. His words were written for the stage. Meant to be spoken not read. When he was writing Hamlet, I'm sure he was thinking about a lot of different things: 'Who're the right actors for these roles?' 'How should this be staged?' 'Do I really want to set this in Denmark?' His creative vision and ambitions were no doubt at the forefront of his mind, but there were also more mundane matters to consider and deal with. 'Is the financing in place?' 'Are there enough good seats for my patrons?' 'Where am I going to get a human skull?' I would bet that the farthest thing from Shakespeare's mind was the question 'Is this literature?'" (Banquet speech by Bob Dylan given by the United States Ambassador to Sweden Azita Raji, at the Nobel Banquet, 10 December 2016)

30 March 2016

DESARRUMAR A MEMÓRIA 


A 1 de Fevereiro passado, em “The Conversation”, Emma Smith, professora de Shakespeare Studies em Oxford, publicou o texto “Why we need to remember how to forget” no qual, afirmando que vivemos na era da hyperthymesia (do grego: excesso de memória), explicava como “A característica definidora do que é ser humano na idade digital é a de estar esmagado pelo passado – a ameaça aos nossos presente e futuro criativos é que o passado se torne demasiado omnipresente impedindo-nos de avançar. Abram-se as portas ao potencial criativo do esquecimento”. Caso o lesse, Meilyr Jones achá-lo-ia absolutamente incompreensível ou rir-se-ia à gargalhada. Porque ele não se sente, de todo, esmagado pelo passado, ele vive, literalmente, lá dentro. E, se lhe apontam que "Strange/Emotional" exibe uma muito directa relação familiar com "Rebel Rebel", de David Bowie, não hesita na resposta: “Adoro essa canção, por isso, apropriei-me da introdução. Antigamente, não havia nenhum problema em referirmo-nos livremente a obras alheias. Hoje, olhamos para a música do passado sem essa confiança, procuramos ocultar as nossas fontes. Esses compassos de ‘Rebel Rebel’ são-me familiares para lá do ponto em que poderia falar-se sequer de empréstimo. Se vou ser autêntico, uso a minha música e a de outros, para mim, o mundo moderno é isso, desarrumar o passado. Um processo de osmose mais do que conceptual”



A canção de Bowie não é caso único em 2013 álbum de estreia a solo do galês ex-Race Horses: "How To Recognize a Work Of Art" ecoa "Disco 2000", dos Pulp (ela própria já uma montagem de citações), "Don Juan" contêm ADN de "You’re So Vain", de Carly Simon, "Rain In Rome" é a polifonia renascentista "Mon Cœur se Recomande à Vous", de Orlando di Lasso, sobre fundo de chuva e tempestade, e "Rome" uma encenação elegantemente isabelina. Opulentamente orquestral à la Neil Hannon, Meilyr Jones, “an actor recalling my previous lives, no Hamlet, no Macbeth, come and see me tonight” ou, em alternativa, “this week’s featured artist, the face of The Observer’s free magazine”, criatura impregnada de Byron, Keats e Shakespeare, deverá, então, ser considerado como um dos primeiros autores do século XXI a enfrentar, sem medo, a hyperthymesia e, desarrumando a memória, a sair vencedor do combate.

15 March 2016

"You’ll put down strangers, kill them, cut their throats, possess their houses, and lead the majesty of law in lyam to slip him like a hound. Alas, alas! Say now the King, as he is clement if th’offender mourn, should so much come too short of your great trespass as but to banish you: whither would you go? What country, by the nature of your error, should give you harbour? Go you to France or Flanders, to any German province, Spain or Portugal, nay, anywhere that not adheres to England: why, you must needs be strangers" (W. Shakespeare)

12 October 2015

... e, agora, falta apenas saber quem, algo shakespeareanamente (versão Grupo Dramático
e Recreativo "Os Janotas da Ramboia"),  crava o punhal afiado entre as omoplatas de quem...

29 September 2014

Repartição de Finanças da pátria. Coisa entre a tragédia shakespeareana, o teatro do absurdo, um labirinto de Escher arraçado de Kafka e o kitsch da banalidade. Nos 60 minutos que decorrem da transição da senha 69 para a 70, um monitor compulsivamente maximal-repetitivo informa sobre os tempos médios de espera nas congéneres do território lusitano (não confirmado), embrenha-se nas subtilezas semânticas que separam "atendimento prioritário" de "atendimento preferencial", alerta, muito apropriadamente, para "situações de emergência em espaços públicos" ("em caso de emergência mantenha a calma", se estiver à beira da anóxia, procure respirar) e - supremo momento de redenção e alívio das lusas dores clonado do "intermezzo" do professor Marcelo -, oferece o mini-espaço informativo "Portugal brilha nos desportos a nível mundial"! À volta, o universo pode desintegrar-se mas, algures, um queiroziano portuguesinho valente demoliu a concorrência num torneio de chinquilho!!!

M. C. Escher - "Still Life with Spherical Mirror" (1934)

27 September 2014

ASSUNTO DE ESTADO


Custa a crer que o mundo tenha desejado continuar a existir depois de Shakespeare. E depois de Rimbaud, Pessoa ou Borges. Não é verdade que não haja insubstituíveis. Não serão muitos mas, para todos aqueles que dizem o que mais ninguém diz de um modo que nenhum outro disse antes ou dirá depois, não se conhece outra palavra. É por isso que não se deve estranhar que o último álbum de Leonard Cohen, Popular Problems, publicado esta semana, um dia depois do seu 80º aniversário, esteja a ser tratado como um assunto de Estado. E, se há circunstância em que a expressão “assunto de Estado” não soa pomposamente tonta, é este. Em Londres, na Mac Donald House da Canada High Comission, foi apresentado por Gordon Campbell, Alto Comissário para o Reino Unido desde 2011, na qualidade de tesouro nacional. Tal como já havia acontecido nos seus equivalentes institucionais de Los Angeles e Bruxelas.


Não devemos levar-lhes a mal. Leonard Cohen é tudo menos património geograficamente privado mas, tivéssemos nós (ou quaisquer outros) um Cohen, e mereceríamos cobrir-nos de vergonha se não fizéssemos o mesmo. Por aqui, não paira, no entanto, qualquer espírito de testamento final. É o próprio Leonard que, apesar de, a poucos metros de distância, parecer ínfimo, frágil, quase imaterial, anuncia estar o próximo volume a caminho, e que, naturalmente, se poderá chamar Unpopular Solutions. Algo como o terceiro painel de um tríptico inaugurado com Old Ideas, o que, se pensarmos um segundo, não é senão a persistência naquilo de que, desde Songs Of Leonard Cohen, não encontra o ponto de fuga (e os humanos de todos os tempos com ele): amor, sexo, culpa, redenção, morte, êxtase e condenação.


Há canções e textos que foram escritos a uma velocidade “assustadoramente rápida”, outras – como "A Street" e "Born In Chains" – que levaram entre uma e quatro décadas a serem concluídas (“em parte, por perfeccionismo, noutra parte, por pura preguiça, e, em ‘Born In Chains’, por mudança do meu muito inseguro ponto de vista teológico”): “Creio que foi Auden que disse que um poema nunca é terminado, é apenas abandonado. Não pretendo inventar a roda. Pego em formas que já existem e faço o meu trabalho sobre elas. Sinto-me grato por poder chegar ao fim de algumas das canções que inicio. Se soubesse de onde vêm as boas canções, ia até lá muito mais vezes. Pedem-me, frequentemente, conselhos. É um engano porque o meu método é obscuro e não pode ser replicado. Escrever canções é semelhante a ser uma freira: é o matrimónio com um mistério. Procuro sempre descobrir o caminho para o centro de uma canção. Tal e qual como no resto da vida. E o resultado não é muito melhor… o único conselho que posso dar é que, se não desistirmos dela, uma canção acabará sempre por ceder. Mas não me perguntem quanto tempo poderá isso levar…”


Se é possível identificar uma linha a unir os pontinhos, “é um travo de desilusão… mas só dei por isso no fim”. As vacilações teológicas poderão também rondar em "Almost Like The Blues", entoada numa voz extraída da fundura das trevas (“There is no god in heaven, and there is no hell below, so says the great professor of all there is to know”), a mesma que, em "Samson In New Orleans", se interroga “And we who cried for mercy in the bottom of the pit, was our prayer so damn unworthy the Son rejected it?”, mas, como recomendam os melhores e mais perversos tratadistas do horror, introduzindo o tempero da ironia negra e subrepticianamente brechtiana, no discurso (“I saw some people starving, there was murder, there was rape, their villages were burning, they were trying to escape (…) there’s torture and there’s killing, there’s all my bad reviews, the war, the children missing, Lord, it’s almost like the blues”).



“Almost like the blues” seria, aliás, uma bela sinopse para Popular Problems. Nas canções escritas, a quatro mãos, com Patrick Leonard, o que se escuta é quase-blues, quase-gospel, quase-folk, um "ersatz" de tudo isso, superiormente obrigado a participar do sentido da voz e das palavras – é favor colocar o mais intenso acento tónico em “voz” e “palavras” -, sem escrúpulos de “autenticidade”, mas com a máxima potência na possibilidade de expressão. Interrogado sobre as suas opiniões políticas, Leonard Cohen declara-se como “um optimista que ainda não saiu do armário” mas, em simultâneo, confrontado com a condição de canadiano, explica que “os canadianos olham para os EUA como as mulheres vêem os homens, com muito cuidado”. É um excelente "soundbyte". Falando, porém, de política pura e dura, não há académico pós-doutorado que tenha ido além da espectrografia que Cohen, sobre a silhueta de um "sample" de canto arábico, em "Nevermind", exerce sobre o (seu) Médio Oriente e posteriores jihadismos adjacentes: “I was not caught, though many tried, I live among you, well disguised (…) there’s truth that lives and truth that dies, I dont’ know which so never mind”. Acessoriamente, explica que o motivo por que aborda estes tópicos é apenas consequência de andar pelo mundo e estas coisas apanharem-se “do ar”: “Tenho passado toda uma vida a construir uma posição política que ninguém consiga decifrar”.


O programa de governo do velho estadista da “tower of song”, porém, é tântrico (“It’s not because I’m old, it’s not what dying does, I always liked it slow, slow is in my blood (…) you want to get there soon, I want to get there last”), um tanto ou quanto sabiamente hesitante na definição do adversário (“You put on a uniform to fight the Civil War, it looked so good I didn’t care what side you’re fighting for”), seguramente arrepiante (“I see the ghost of culture with numbers on his wrist, salute some new conclusions which all of us have missed”). Mas, se alguém pergunta ao literato ancião - que confessa “leio muito pouco” - o que desejaria para o seu iminente aniversário, ele hesita, conta como, na tradição familiar, esse tipo de festas e celebrações nunca foi muito levado a sério e sugere “talvez, fumar um cigarro”. Quem o escuta, vários hertz abaixo de Tom Waits, em "Did I Ever Love You" ou "Samson In New Orleans", nunca pensaria que tal terapêutica fosse necessária. Ele não o diz mas adivinha-se que a oferenda ideal seria “a weekend on your lips, a lifetime in your eyes”.

24 September 2013

CÂMARA ESCURA 



Elvis Costello não se fica por meias palavras: “Se não gostam de escutar June Tabor, melhor seria que desistissem de ouvir música”. De facto, a existirem casos em que um certo fascismo estético se justifica, June Tabor é bem capaz de ser um deles. Experimentem, por exemplo, recorrer ao vosso bom amigo YouTube e procurem “June Tabor sings Lili Marlene”. Durante os quase dois minutos iniciais (no concerto “Daughters of Albion”, da BBC4), June conta a história dessa canção. Provavelmente, não repararão de imediato mas, já aí, na articulação das palavras, nas pausas, acentuações, respirações, é de música que se trata. E, logo a seguir, desde o instante em que pronuncia “Vor der Kaserne, vor dem grossen Tor...”, por um milhão de vezes que tenhamos escutado o texto de Hans Leip musicado por Norbert Schultze, a voz que, agora, o interpreta apossa-se dele e fá-lo como se fosse a primeira. Para ela, trata-se de uma espécie de compromisso ético/estético: “Não tem a menor importância de onde provém uma canção. Desde que seja uma boa canção, tenha um texto forte e me fale directamente, é-me completamente indiferente o facto de ser muito recente ou muito antiga. Se mexer com as minhas emoções, sei que vou ser capaz de a interpretar. Porque é isso que eu faço: sou uma intérprete que procura partilhar as sensações que uma canção me proporciona. Tenham as canções seiscentos anos ou apenas dois. A melhor interpretação é a que soa como se fosse a primeira vez que estivéssemos a cantar aquela música. Se parecer ser apenas mais uma canção, é porque estamos a prestar-lhe um mau serviço”


Huw Warren (piano) e Iain Ballamy (sax soprano e tenor) que, em trio com ela, gravaram para a ECM o recente e belíssimo Quercus – na verdade, tal como já sucedera com Aleyn (1997), o registo de um concerto de 2006, no Anvil, em Basingstoke, do qual foram cirurgicamente extraídos todos os vestígios de público – e o virão apresentar no Teatro Maria Matos na próxima 4ª feira, 25 de Setembro, confessam que, de June, aprenderam a “evitar tudo o que, numa música, não tenha justificação para lá estar ou que apenas surja por motivos convencionais”, bem como a “procurar que a voz e o sax funcionem como um só, mais do que fazer solos complexos”. Não ecoam senão o que ela afirma acerca de como encara a própria voz (“Se eu quisesse, podia ornamentar uma canção até fazê-la desaparecer ou cantar soul, mas isso não me diz nada, é só técnica. Da forma como canto, prefiro ser mais directa, transmitir emoções sem as dissimular”), esse assombroso instrumento de luz e sombras, tão capaz de, qual câmara escura, revelar a natureza profunda de Richard Thompson, Ian Curtis, Lou Reed e Costello como da Idade Média, dos textos de Shakespeare ou Robert Burns ou das vetustas trevas da tradição popular britânica e europeia. Se lhe perguntarem qual o álbum que prefere, responderá que é An Echo Of Hooves (2003), colecção de baladas recolhidas por Francis James Child, no final do século XIX. Não acreditem: a verdade é que, das mais de duas dezenas das suas gravações, ninguém de bom senso se atreveria a escolher uma e a relegar todas as outras para segundo plano.

17 June 2013

O INSULTO DO DIA  (II)

"[Your] brain is as dry as the remainder biscuit after a voyage" (Taken from: As You Like It)

13 June 2013

O INSULTO DO DIA  (I)

"Wherein [art thou] good, but to taste sack and drink it? Wherein neat and cleanly, but to carve a capon and eat it? Wherein cunning, but in craft? Wherein crafty but in villainy? Wherein villainous, but in all things? Wherein worthy but in nothing?" (Taken from: Henry IV, part I)

27 April 2013

O NORTE POLAR 


Podem ser invocados muitos e bons motivos para recusar um Nobel ou uma condecoração no 10 de Junho. Mas já não será tão fácil imaginar um suficientemente forte que leve a rejeitar a atribuição do literalmente galáctico grau de Comandante da Real Ordem da Estrela Polar. Manfred Eicher recebeu-o, em 1999, das mãos do rei da Suécia, pelos bons serviços prestados à cultura local através do labor da sua editora ECM (Editions of Contemporary Music), fundada 30 anos atrás. Não será apenas por esse motivo (mas também) que, muito antes da desvairada cogumelização de telúricas metáforas sobre fiordes, vulcões e glaciares a propósito dos Sigur Rós e de praticamente toda e qualquer criatura oriunda dos gelos escandinavos, já prosa idêntica fora derramada sobre a música publicada por Eicher: tanto depreciativamente (o editor/produtor bávaro teria esterilizado o jazz – que, inicialmente, dominava o catálogo – impondo-lhe uma ditadura do “bom gosto” que o contaminara com uma frieza e um intelectualismo muito norte-europeus) como elogiosamente (a “melancolia bergmaniana”, o "artwork" sóbrio mas requintado, o convite à atitude contemplativa, a sofisticação "state of the art" dos estúdios).  



A verdade é que, como, por exemplo, acontecera com a Blue Note e produtores como Teo Macero, Berry Gordy ou Martin Hannett, os discos da ECM lograram atingir o invejável estatuto de ser adquiridos “por serem da ECM” independentemente do conteúdo (“Os cinco segundos de silêncio que, em qualquer álbum da ECM antecedem a música são, provavelmente, a mais importante declaração que uma editora de discos poderia fazer” – Richard Williams, em The Blue Moment) que, recorde-se, foi incluindo Keith Jarrett, Chick Corea, Gary Burton, Bill Frisell, Art Ensemble Of Chicago, Jan Garbarek, Terje Rypdal, Pat Metheny, Dave Holland, mas, igualmente, Gesualdo, Arvo Pärt, Thomas Tallis, Jon Hassell, Pérotin, Steve Reich, Egberto Gismonti ou Anouar Brahem. 



E, agora, também June Tabor, integrada no trio Quercus, com Huw Warren (piano) e Iain Ballamy (sax soprano e tenor). Gravado ao vivo – mas, pela “sonoridade ECM”, nunca de tal se suspeitaria – durante uma série de concertos em 2006, triunfa gloriosamente em terreno afim daquele (Some Other Time, 1989) onde, abordando os standards do cancioneiro americano, pela única vez, Tabor havia falhado: os quatro tradicionais são exercícios de pura levitação – e "As I Roved Out" e "Brigg Fair" (esta a capella) elevam-se ainda mais alto do que isso –, os textos de Robert Burns, Shakespeare, A. E. Housman, com música de Warren/Ballamy, bem como todos os restantes, descobrem o norte polar do equilíbrio perfeito entre o impressionismo jazz “modernista” e a imponderável gravitas do canto de June Tabor (o uníssono de voz e saxofone, em "Come Away Death", rampa de lançamento para um lírico sobrevoo de Ballamy e Warren, impossibilita qualquer hipótese de desconcentração), algo como um milagre que permite que a liberdade de improvisação e o rigor quase solene da abordagem de palavras e melodias não apenas coexistam como pareçam ter-se, desde sempre, desejado.