ENTRE OS ESCOMBROS
Harriet Tubman foi uma negra norte Americana, ex-escrava e abolicionista que, no século XIX, participou em treze missões de libertação de escravos usando o Underground Railroad, uma rede de activistas anti-esclavagistas que oferecia o apoio indispensável à fuga para o Canadá. Na sua biografia, conta como "Wade In The Water" – um dos espirituais negros que eram utilizados na qualidade de mensagens cifradas contendo instruções acerca das precauções que deveriam ter no arriscado caminho para a liberdade –, avisava os fugitivos para preferirem rotas que atravessassem rios de modo a dificultar a perseguição pelos cães dos esclavagistas. Em "River Anacostia", a quinta canção de The Hope Six Demolition Project, de PJ Harvey, "Wade in The Water" é entoada segundos antes das primeiras palavras (e, no final, em jeito de coda): “Oh, my Anacostia – do not sigh, do not weep – beneath the overpass your saviour’s waiting patiently, walking on the water that flows with poisons from the naval yard”. Mas, aqui, o código refere-se ao Anacostia, afluente infecto do Potomac, em Washington, D.C., um dos três destinos (juntamente com o Kosovo e o Afeganistão) escolhidos por Polly Jean para a exploração dos últimos círculos do inferno contemporãneo. A leste do Anacostia, concentra-se a maioria dos bairros social e economicamente devastados da capital dos EUA: “this is just drug town, just zombies (...), the highway to death and destruction, South Capitol is its name, the school looks like a shit hole (…), here’s the old mental institution, now the Homeland Security base, here’s God’s Deliverance Centre, a deli called M.L.K.”.
Acompanhada pelo fotógrafo, Seamus Murphy (com quem já colaborara, há cinco anos, em Let England Shake, e, no ano passado, no livro de fotos e poesia The Hollow Of The Hand), a decisão de viajar até esse amaldiçoado triângulo geopolítico decorreu da necessidade imperiosa de “cheirar o ar, tocar o solo e encontrar-me com as pessoas destes lugares. Recolher apenas informação em segunda mão seria distanciamento demais relativamente aquilo sobre que queria escrever”. Mais ou menos inevitavelmente, tal proximidade determinou que a maioria das canções fosse quase uma variação hiperrealista sobre o modelo enumerativo de "A Hard Rain’s A-Gonna Fall", de Dylan – “Fizzy drinks cans and magazines, broken glass, a white jawbone, syringes, razors, a plastic spoon, human hair, a kitchen knife and a ghost of a girl who runs and hides (…) they’ve sprayed graffiti in Arabic and balanced sticks in human shit, this is the Ministry Of Remains”, “I saw a displaced family eating a cold horse's hoof (...) Air drops were dispersed, I saw people kill each other just to get there first”, “At a junction on the ground an amputee and a pregnant hound sit by the young men with withered arms, as if death had already passed (…) A million beggars silhouettes near where the money changers sit by their locked glass cabinets” –, que tanto pode terminar à beira de citar Elliot (“These are the words written under the arch, scratched in the wall in biro pen, this is how the world will end”) como "Money, That’s What They Want" do bluesman Jerry McCain.
"Field report" de um mundo fracturado com velhíssimas feridas por cicatrizar, espécie de versão aterradora do registo documental dos movimentos humanos tal como os anjos caídos de As Asas do Desejo, de Wim Wenders, o praticavam, Hope Six, terceiro tomo da mudança de pele iniciada em White Chalk (2007), não se fica por esse testemunho do fedor da morte e das iniquidades do poder, da religião, da raça e da desigualdade: caminhando sobre terrenos (literalmente) minados, é também um potentíssimo ciclo de canções, ora coralmente empolgadas, ora incendiadas pelo sax pirómano de Terry Edwards, ora esculpidas em puríssima electricidade, ora tudo isso ao mesmo tempo. Com uma única advertência da repórter de guerra, Polly Jean Harvey, sintetizada em três palavras, escritas por entre os escombros: “Enough is enough”.