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14 October 2010

CANAL HISTÓRIA


Hitler's Hit Parade - real. Oliver Axer e Susanne Benze

Como uma voz oriunda de um planeta longínquo e perdido – Londres, 1967 –, Mick Jagger imagina os contornos do futuro próximo onde as máquinas se encarregarão de praticamente todo o esforço laboral e os indivíduos, finalmente livres, fraternos e criativos, não terão de trabalhar mais de quatro horas por dia. Vanessa Redgrave canta em louvor de Fidel Castro, Julie Christie reivindica sol, amor e um gato e, em diversos matizes, David Hockney, Eric Burdon, os Pink Floyd ou Michael Caine, outros "aliens"de um universo distante, traçam o perfil da "swinging London" em Tonite Let’s All Make Love In London, de Peter Whitehead.


Uma Noite em 67 - real. Renato Terra e Ricardo Calil

É um dos exemplos de uma certa atmosfera-canal História que atravessa a programação da secção Heartbeat, do DocLisboa deste ano. Exactamente da mesma época é Uma Noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil, instante de ruptura na música brasileira quando, durante o III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, Caetano, Gilberto Gil e Os Mutantes se defrontaram com a ortodoxia da bossa-nova. Poucos anos depois, em fuga às "tax laws" britânicas, os Rolling Stones refugiar-se-iam no Sul de França para gravar Exile On Main Street, tema de Stones In Exile, de Stephen Kijak.


NY Export Opus Jazz - real. Henry Joost e Jody Lee Lipes

Outras investidas pelo passado encontram-se em What’s Happening: The Beatles In The USA, dos irmãos Maysles, testemunho da beatlemania norte-americana em 1964, Frank Zappa - A Pioneer Of The Future Of Music, de Frank Scheffer, Breath Made Visible (Ruedi Gerber) e NY Export Opus Jazz (Henry Joost e Jody Lee Lipes), em torno dos pioneiros da dança americana, Anna Halprin e Jerome Robbins, e, sobretudo, o magnífico exercício de montagem, Hitler’s Hit Parade (Oliver Axer e Susanne Benze), negríssimo jogo de ironia sobre a iconografia audiovisual do nazismo. Mais centrados no presente, destacam-se B-Side (Eva Vila), mosaico de Barcelona e dos seus músicos, Crossing The Bridge: The Sound Of Istambul (Fatih Akim), travelogue musical de Alexander Hacke, dos Einsturzende Neubauten, pela capital turca, Benda Bilili! (Renaud Barret e Florent de la Tullaye), com músicos de rua de Kinshasa para onde viajam também Jörg Jeshel e Brigitte Kramer em Passion Last Stop Kinshasa, e Retour à Gorée (Pierre-Yves Borgeaud), "road movie" pelos trilhos da escravatura com Youssou N’Dour.

DocLisboa 2010

(2010)

10 April 2008

AS (OUTRAS) FIGURAS DO TROPICALISMO


Tropicália - Iuri Sarmento (1998)

Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé ou Os Mutantes são as personagens cujos nomes, sempre que o Tropicalismo é puxado para a conversa, estão na ponta da língua. Mas, mais ou menos perifericamente ou antecedendo mesmo a eclosão do movimento, diversos outros contribuíram para a imensa riqueza e diversidade estética daquele momento singular na história da cultura pop mundial.



Oswald de Andrade (1890 – 1954): escritor, dramaturgo e ensaísta, foi um dos fundadores do Modernismo brasileiro e promotor da Semana de Arte Moderna de 1922, que teve lugar no primeiro centenário da independência do Brasil. Em 1924 – o mesmo ano do Manifesto Surrealista de André Breton – publica o Manifesto da Poesia Pau-Brasil (“Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias. A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos. (...) Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia. Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil”) e, quatro anos depois, o Manifesto Antropófago (“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. (…) Tupi or not tupi, that is the question. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. (…) Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direcção do homem. (…) A idade do ouro anunciada pela América. A idade do ouro. E todas as girls”). A xenofagia cultural no lugar da xenofobia. Ou o Tropicalismo muito “avant la lettre”.



Rogério Duarte (n. 1933): artista gráfico, músico, compositor, poeta, tradutor e professor. Assinou diversos cartazes para filmes de Glauber Rocha, como Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe e Idade da Terra, (deste último, compôs também a banda sonora). Entre outros, colaborou com Gilberto Gil, Caetano Veloso, João Gilberto, Jorge Ben e Gal Costa. “Este era o pensamento dos Tropicalistas: nós não estamos aqui como os sambistas do morro que serão confinados a um lugar no quintal onde farão os seus pagodes e tomarão a sua cachaça. Não! Nós vamos invadir a sala de visitas e, antropofagicamente, pinçar elementos stravinskianos, schoenberguianos, de toda a vanguarda da música pop e de tudo o mais e inventar essa coisa do som universal. Uma característica importante do Tropicalismo e talvez única é que, ao mesmo tempo, ele foi um movimento de vanguarda e amplamente de massas. Ele não é um movimento mas um momento de um movimento que já começa muito antes. Como dizia Rimbaud, a verdadeira vida está ainda para ser inventada. O verdadeiro Tropicalismo também está ainda para ser inventado. Uma coisa não sei com que nome, nem com que forma, mas não vejo a não ser senão por essa direcção”.



Hélio Oiticica (1937 – 1980): pintor, escultor e performer; influenciado pelo Concretismo, Mondrian, Klee e Malevich. Nos anos 60, criou uma série de esculturas em forma de caixa interactivas (Bólides) e instalações designadas “penetráveis” das quais a mais famosa, Tropicália (1967), daria o nome a uma canção de Caetano Veloso e ao álbum-farol do Tropicalismo (Caetano Veloso: “Luís Carlos Barreto, um fotógrafo jornalístico que se tinha tornado produtor de cinema (...) impressionou-se com a minha canção e, ao ser informado que ela não tinha título, sugeriu ‘Tropicália’, por causa, dizia ele, das afinidades com o trabalho do mesmo nome apresentado por um artista plástico carioca, uma instalação (na época ainda não se usava o termo, mas é o que era) que consistia num labirinto ou mero caracol de paredes de madeira, com areia no chão para ser pisada sem sapatos, um caminho enroscado, ladeado de plantas tropicais, indo dar, ao fim, num aparelho de televisão, exibindo a programação normal. O nome do artista era Hélio Oiticica e era a primeira vez que eu o ouvia”).



Rogério Duprat (1932 – 2006): nos anos 60, estuda com Boulez e Stockhausen. Em Junho de 1963, com sete outros compositores brasileiros, lança o Manifesto Música Nova, defendendo um “compromisso total com o mundo contemporâneo” e o “levantamento do passado musical à base dos novos conhecimentos do homem naquilo que esse passado possa ter apresentado de contribuição aos actuais problemas”, terminando com uma citação de Maiakovski: “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”. Escreve os arranjos para Tropicália e álbuns de Caetano, Gilberto, Tom Zé, Gal Costa e Os Mutantes, onde combina elementos da música erudita com procedimentos da pop/rock. Ficaria conhecido como o “George Martin da Tropicália” ou o “Brian Wilson do Brasil”.



Torquato Neto (1944 - 1972): poeta, jornalista e autor de letras de canções (com Caetano, Gil ou Edu Lobo), foi colega de liceu de Gilberto Gil. Escreveu o breviário Tropicalismo para Principiantes, onde defendeu a necessidade de criar uma pop genuinamente brasileira: "Assumir completamente tudo que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda desconhecido". (2008)

08 April 2008

AS MÃOS E OS PÉS


Tropicália + Éden (Hélio Oiticica)

Outubro de 1967, Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em São Paulo: Caetano Veloso, acompanhado pelos Beat Boys, apresenta “Alegria, Alegria” e Gilberto Gil, com Os Mutantes, “Domingo no Parque”. O público, inicialmente desconcertado pela colorida exuberância pop e pelas guitarras eléctricas, ameaça apupar mas acaba por aderir. Um ano depois, porém, no Festival Internacional da Canção (FIC) da TV Globo, no Rio de Janeiro, Gil e, principalmente, Caetano experimentam o seu verdadeiro momento-Dylan-enquanto-Judas-acusado-de-traição. “É Proíbido Proibir”, interpretada por Caetano com Os Mutantes, é vaiada e este, em fúria com essa atitude e com a desclassificação de Gilberto Gil – tal como Dylan havia ripostado com “Ballad Of A Thin Man”, disparando “because something is happening here but you don’t know what it is, do you, Mr. Jones?” –, interpela agressivamente o público: “Mas é isso que é a juventude que diz querer tomar o poder? Vocês são a mesma juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem. Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos fritos!...”.



Mais tarde, quase casualmente, Caetano Veloso recordaria como tudo se tinha desenrolado: “O episódio ‘É Proibido Proibir’ resume-se no seguinte: Guilherme Araújo, o meu empresário, mostrou-me, na ‘Manchete’, uma reportagem sobre os acontecimentos de Maio, em Paris, que eu não quis ler, pois tenho preguiça de ler. Lembro-me que ele mesmo virou a página e disse: ‘é engraçado, eles picharam coisas lindas nas paredes. Esta frase aqui é linda – “é proibido proibir”. Eu disse: ‘é lindíssima’. Ele disse-me, então: ‘faça uma música usando esse negócio como refrão’. Eu disse, ‘tá’. Passou. Não fiz. Daí ele me cobrou. Eu disse, ‘faço’. Fiz. Achei meio boba, mas bonitinha. Todo o mundo, na altura, achou bonita. No dia seguinte eu já a achava péssima. Até hoje só gosto do ritmo e de uma parte da letra que diz “eu digo sim, eu digo não ao não”. Veio o festival da Globo. Eu não tinha nenhuma música bacana pra botar. Nem muita vontade de entrar no festival. Só me convenci a concorrer quando decidi pegar aquela música que eu não gostava e fazer uma esculhambação com o festival. A canção foi escondida pelo ‘happening’ e pelas vaias. Quando voltei para repetir a música já o Gil tinha sido desclassificado (o que me enfureceu porque eu achava o número dele genial), enquanto o meu ‘É Proíbido Proíbir” tinha merecido do júri as melhores notas. Entrei no teatro decidido a armar bronca. E armei”. Para a história, entretanto, esse ficaria como o instante em que o Tropicalismo viveu o seu baptismo de fogo. Mas, para compreender realmente a história do movimento, é necessário recuar. Bastante.



Por exemplo, até à Semana de Arte Moderna, que teve lugar em São Paulo, entre 11 e 18 de Fevereiro de 1922, e que assinalou a penetração nos meios artísticos, literários e intelectuais do Brasil da ebulição das vanguardas europeias da época – do cubismo, ao expressionismo e ao futurismo. Dos diversos participantes (Menotti Del Pichia, Victor Brecheret, Anita Malfatti, Mário de Andrade), seria, no entanto, Oswald de Andrade o mais decisivo na génese futura do Tropicalismo, quando, seis anos mais tarde, publicaria o Manifesto Antropófago. A metáfora da antropofagia, inspirada pelas tribos de índios Tupi, conhecidas pelo ritual de devorar os inimigos que faziam prisioneiros, ofereceu um modelo e uma sustentação teórica para a eclética voracidade estética dos Tropicalistas. Como Caetano Veloso reconheceria, “É fácil compreender como Oswald de Andrade foi importante para mim, tendo passado por esse processo, tendo ficado apaixonado por um certo deboche diante da mania de seriedade em que caiu a Bossa Nova. Uma outra importância muito grande de Oswald para mim é a de esclarecer certas coisas, de me dar argumentos novos para discutir e para continuar criando, para conhecer melhor a minha própria posição. Todas aquelas ideias dele sobre poesia pau-brasil, antropofagismo, realmente oferecem argumentos actualíssimos que são novos mesmo diante daquilo que se estabeleceu como novo. A ideia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos ‘comendo’ os Beatles e Jimi Hendrix. O Tropicalismo é um neo-Antropofagismo”. Ou, como afirma em Verdade Tropical, “a cena da deglutição do padre Pero Fernandes Sardinha pelos índios passa a ser a cena inaugural da cultura brasileira, o próprio fundamento da nacionalidade”.



Seria, afinal, sensivelmente entre os dois festivais de 1967 e 1968 e sob o pano de fundo da ditadura militar brasileira ainda mais musculada pelo Acto Institucional nº 5, que o essencial da curta mas intensa aventura estética Tropicalista decorreria, investindo nesse programa de digestão de todas as marcas de “alta” e “baixa” cultura exportada pela Europa e EUA, regurgitando-as sobre a matriz brasileira: em Abril de 1967, na mostra de artes visuais “Nova Objetividade Brasileira” que tem lugar no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Hélio Oiticica expõe o seu grande “penetrável”, "Tropicália”; em Maio, Gilberto Gil publica o primeiro álbum, Louvação. As colaborações com José Carlos Capinan, Torquato Neto e Caetano Veloso anunciam o Tropicalismo ainda em embrião; em Julho, é editado Domingo, com Caetano Veloso e Gal Costa: as marcas da bossa-nova estavam ainda presentes mas, na contracapa, Caetano escrevia: “Não desejo mais viver de nostalgia pelos velhos tempos e lugares – ao contrário, desejo incorporar essa nostalgia num projecto futuro”; inauguração “oficial” do Tropicalismo, em Outubro, com a apresentação de Gil e Caetano no III Festival de MPB da TV Record; em Novembro, o poeta concretista Augusto de Campos publica dois artigos em defesa do trabalho dos tropicalistas (Caetano: “Em casa de Augusto de Campos, ouvíamos Charles Ives, Webern e Cage e falávamos da situação da música brasileira e dos festivais. Nós, os jovens tropicalistas, ouvíamos muitas histórias de personagens do movimento Dada, do modernismo anglo-americano, da Semana de Arte Moderna Brasileira e da fase heróica da poesia concreta”), o que voltará a fazer aquando da publicação dos álbuns de estreia de Caetano e Gil – esses textos serão reunidos no livro Balanço da Bossa, publicado no ano seguinte;



Março de 1968: lançamento dos discos Caetano Veloso, com arranjos de Júlio Medaglia, Damiano Cozzela e Sandino Hohagen, e Gilberto Gil, com arranjos de Rogério Duprat; edição do álbum Os Mutantes, em Junho, também com arranjos de Duprat; Julho: publicação do álbum colectivo Tropicália ou Panis et Circensis, com Caetano, Gil, Gal, Mutantes, Tom Zé e Nara Leão, e arranjos de Duprat (Gilberto Gil: “Depois de ‘Domingo no Parque’ e ‘Alegria, Alegria’, havia uma expectativa. Essas músicas e o que a gente vinha fazendo na TV significava um diferencial, e era isso mesmo o que a gente queria. Era preciso aprofundar esse diferencial, fazer mais canções e tomar mais atitudes. Na época, o disco era o meio mais natural de fazer isso. A gente precisava fazer um disco que contivesse o mínimo para dar a ideia de bandeira. Todos se animaram, Tom Zé, os Mutantes, Rogério Duprat, Capinan, Torquato… A gravadora, o empresário, os artistas, o público, todos queriam. Quando alguém esboça algo de novo, todo mundo fica esperando para ver qual vai ser o gesto seguinte”);


HO - Hélio OIticica (I)

em Agosto, Hélio Oiticica e Rogério Duarte apresentam no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro a exposição-evento “Apocalipopótese” e o debate “Cultura e Loucura”, ambos com a presença de Caetano Veloso; Caetano e Gil confrontam-se com os adversários do movimento Tropicalista, em Setembro, no FIC, da TV Globo, no Rio. Caetano que, desde o início, havia declarado “Sou Tropicalista, duvido sempre dos critérios utilizados para avaliar a arte. É por isso que, muitas vezes, tenho preferido o joio ao trigo”, em Verdade Tropical, identifica a oposição: “De facto, eu fora rejeitado pelos sociólogos nacionalistas de esquerda e pelos burgueses moralistas da direita, ou seja, pelo caminho mediano da razão. (...) [havia um grupo de músicos] que considerava o que eu e Gil fizemos como uma traição aos elegantes acordes dissonantes [da bossa-nova] e ao cívico nacionalismo cultural". E Gilberto Gil confirma-o: “O movimento Tropicalista era um ‘insight’ na realidade brasileira. E mais que na brasileira, na do mundo todo. Uma cidade como São Paulo é uma cidade brasileira, mas tem o mundo todo dentro dela. Paris está um pouco aqui dentro. Nova Iorque está um pouco aqui dentro, Londres, Tóquio, Roma, Milão... E a informação de fora chegando, obrigando-nos a tomar atitudes diante disso, a responder a essa inflação de informação. (...) O que nós questionávamos era exactamente esse nível médio das coisas, o nível estagnado, o nível do meio, ali onde não está acontecendo nada. Então, recusávamos essa posição porque víamos que era uma hora no mundo em que todos os jovens, todas as pessoas responsáveis por essa Terra, por fazer dela um lugar saudável, estavam preocupadas... essa esclerose do nível médio das coisas preocupava as pessoas”; Dezembro: publicação do álbum-estreia, Tom Zé a que, no dia dia 27, se segue a prisão de Gil e Caetano em São Paulo, ao abrigo do Acto Institucional nº 5, que suprimiu a liberdade de expressão artística (Caetano: “Hélio Oiticica, que involuntariamente, dera o nome ao nosso movimento, estava presente no nosso show na Boate Sucata, com uma obra exposta perto do palco, complementando a mensagem da nossa atitude face ao FIC, à MPB, à cultura brasileira e à realidade em geral: a sua homenagem ao bandido de favela Cara de Cavalo, morto a tiro pela polícia, sob a forma de um estandarte em que se lia, sob a reprodução da fotografia do corpo da personagem estendida no chão, a inscrição “SEJA MARGINAL, SEJA HERÓI”. (...) Uma noite, um juiz de direito que, não sei por que carga de água foi à Sucata ver o nosso show, indignou-se com o estandarte de Hélio. Sob uma ditadura militar, uma reacção moralista contra uma obra que glorificava um marginal tinha tudo para crescer. (...) O juiz conseguiu não apenas suspender o show como fechar a boate. (...) O episódio foi muito falado e teria, a médio prazo, terríveis consequências”). Levados para o quartel do Exército de Marechal Deodoro, no Rio, apenas serão libertados dois meses depois, seguindo para Salvador, onde são submetidos a regime de confinamento até Julho; entre Fevereiro e Agosto de 1969, são editados os segundos álbuns dos Mutantes, Caetano e Gil e o primeiro de Gal Costa (todos com arranjos de Rogério Duprat); em Julho, tem lugar o espectáculo de despedida de Caetano e Gil, no Teatro Castro Alves, em Salvador. Partirão, de seguida, para o exílio, na Europa: passam por Lisboa e Paris, fixando-se, finalmente, em Londres. O sonho tropicalista acabara “lonely in London without fear, looking for flying saucers in the sky”.


HO - Hélio Oiticica (II)

Como, mais tarde, Gilberto Gil sintetizaria, “O Tropicalismo mudou a história. Se ele não tivesse existido, a história cultural do Brasil seria outra. Prefiro ver assim, como uma influência geral. Uma atmosfera, que é o ar para as novas gerações respirarem. O Tropicalismo hoje está nos pulmões, na corrente sanguínea da criação artística do Brasil. Assim como o Tropicalismo era filho da Semana de Arte Moderna de 1922, certas manifestações artísticas actuais são descendentes do Tropicalismo. Caetano chama a isso ‘linha evolutiva’. As mãos de uns transformando-se nos pés de outros… Os pés tropicalistas assentavam sobre as mãos modernistas. Os pés da pop atual assentam sobre as mãos tropicalistas. E assim por diante, como pirâmides circenses. As pirâmides culturais são assim também. O Tropicalismo é pedra dessa pirâmide. Não importa em que nível está. Mas, se você tira essa pedra, toda a pirâmide cai. Também não importa se ela está na base ou no cume. Aí é querer interromper a história. As camadas vão continuar a ser sobrepostas enquanto durar a humanidade, as nações, e, entre elas, o Brasil como configuração particular de um povo. Não gosto de ficar apontando tropicalistas. O que há são Tropicalismos transfigurados em outras fantasias. Novos corpos com a mesma velha alma tropicalista”. (2008)
OS TIGRES E OS LEÕES NOS QUINTAIS



Vários - Tropicália ou Panis Et Circencis

Se Caetano Veloso gritava bem alto “nego-me a folclorizar o meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas”, o álbum-manifesto do Tropicalismo levava essa declaração às últimas consequências: publicado um ano depois de Sgt. Peppers (1967), não é abusivo vê-lo como o equivalente brasileiro do que, simbolicamente, o disco dos Beatles representou para a pop. O ar dos tempos que se respirava era o mesmo: se Dylan cantava “The hollow horn plays wasted words, proves to warn that he not busy being born is busy dying”, os Mutantes respondiam-lhe com “Eu quis cantar minha canção iluminada de sol, soltei os panos sobre os mastros no ar, soltei os tigres e leões nos quintais, mas as pessoas da sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer”. Eléctrico, em cores de pop-neon e concebido como um filme, Tom Zé, Capinam, Torquato, Gal, Mutantes, Gil e Caetano respondiam “sim” ao desafio de Rogério Duprat: “Sabem vocês o risco que correm? Sabem que podem ganhar muito dinheiro com isso? Terão mesmo coragem de saber que só desenvencilhando-se das formas puras do passado, poderão encontrá-las em sua verdade mais profunda?”. (2008)