(sequência daqui) Afinal, este era o disco que desde sempre desejara gravar: “Nunca tive a menor dúvida. Tinha-o na cabeça. Penso nele há tanto tempo que sabia exactamente o que pretendia”. Por volta dos 14 anos, comprara o Golden Treasury of English Songs and Lyrics, de Francis Palgrave (uma antologia de poetas ingleses), e, daí em diante, apaixonar-se-ia irremediavelmente pela poesia romântica britânica. Na St Joseph’s Convent School que frequentava, Mrs Simpson, a professora de Inglês – “Obviamente, não uma freira!” –, encorajou-a e, bastantes anos mais tarde, Allen Ginsberg nomeá-la-ia “Professor Of Poetics at the Jack Kerouac School Of Disembodied Poets”. Lord Byron, John Keats, Percy Bysshe Shelley, Thomas Hood, William Wordsworth e Lord Tennyson viriam, enfim, a encontrar-se, em admirável enunciação "posh", na voz magnificamente devastada de Marianne, envolvida pelos véus sonoros de Ellis, Brian Eno, Nick Cave e do violoncelista Vincent Ségal. “Tive sempre esta ideia de gravar o mais belo álbum de poesia com acompanhamento musical mas não conseguia imaginar quem poderia estar interessado em publicá-lo. Quando conheci estes poemas, era uma miúda esperta e bonita e imaginava que eram todos acerca de mim. Agora, creio ser a coisa mais perfeita para este momento que vivemos. Quando os leio, vejo-os como um rio, como uma montanha, são belíssimos e reconfortantes. E acabei por descobrir que não tinham sido escritos sobre mim”. Não é impossível que os pulmões de Marianne possam impedi-la de voltar a cantar mas, a ter de ser assim, não será esse ainda o golpe que a derrubará: “Tenho 74 anos e não me sinto amaldiçoada nem invencível. I just feel fucking human”.
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23 May 2021
21 May 2021
O MAIS BELO ÁLBUM
Quando, no final de Abril do ano passado, após 22 dias de internamento por Covid-19, Marianne Faithfull leu a papelada da alta hospitalar, apercebeu-se que, em dado momento, a equipa médica que se ocupava dela a havia recomendado “apenas para cuidados paliativos”. As probabilidades de, aos 73 anos, sobreviver eram ínfimas: tinha entrado de urgência para cuidados intensivos, a situação agravara-se vertiginosamente e ninguém parecia acreditar que o final pudesse ser feliz. Na verdade – como se confirmaria –, isso não era senão menosprezar Marianne Evelyn Gabriel Faithfull, aliás, a baronesa Erisso Von Sacher-Masoch, sobrinha-bisneta do infame Leopold: quem, ao longo da vida, já sobrevivera a uma prolongada dependência de heroína – que a lançara para a rua, sem abrigo –, à bulimia, ao alcoolismo, a diversas tentativas de suicídio, a um cancro da mama, à hepatite C e a uma fractura da anca com infecção pós-operatória, não haveria de ser um qualquer SARS-CoV-2 que a iria derrotar. Até porque a doença ocorrera a meio da gravação de um álbum que, por motivo algum, poderia deixar de ser concluído. A memória de curto prazo ficara severamente afectada (“É incrível tudo aquilo que não recordo. Não tenho memória de ter adoecido nem de ter dado entrada no hospital. Apenas sei que era um lugar terrivelmente escuro. Presumo que seria a morte”, contou ao “Guardian”), a fadiga fácil permanecia, e as dificuldades respiratórias continuavam a exigir a administração de oxigénio mas, com Warren Ellis ao lado, She Walks In Beauty – 21º álbum de estúdio – seria terminado. (daqui; segue para aqui)
21 January 2021
Maria McKee - "I Never Asked"
(daqui)
Leonard Cohen evocava o poeta persa, Rumi, para falar da "intoxicação pelo amor, da ideia de me render como um ébrio perante o ser amado”. Maria McKee, após 13 anos de silêncio total, percorre o mesmo caminho pela mão de Dante e da espiritualidade erótica dos Fedeli d'Amore, com Blake, Shelley, Byron e Yeats no horizonte. Renascida como “a pansexual, polyamorous, gender-fluid dyke”, La Vita Nuova é uma arrebatadora elegia orquestral à beleza e ao desejo. (daqui)
24 October 2017
REQUIEM
David Lynch sabe do que fala quando, sobre as particularidades da banda sonora no cinema, afirma: “Há efeitos sonoros e efeitos sonoros abstractos; há música e há música abstracta. E, algures por aí, a música converte-se em efeito sonoro e os efeitos sonoros em música. É uma área um pouco estranha”. Se, evidentemente, isso se aplica a toda a obra de Lynch, Blade Runner, de Ridley Scott (1982), transformou-se num caso particularmente exemplar de como essa “área estranha” pode assumir um papel determinante na definição profunda da natureza de um filme. Vencedor, no ano anterior, do primeiro Oscar para uma BSO maioritariamente executada em sintetizadores (Chariots of Fire), seria Vangelis o autor da partitura – a ilustração de uma densa e húmida atmosfera de pesadelo urbano neo-noir, feita de despojos do romantismo, farrapos de jazz e electrónica ambiental – que vivia tanto da música como convencionalmente a entendemos quanto da constante polifonia de computadores, néons, zumbidos de electricidade estática e de todo o tipo de ruídos de uma metrópole sci-fi pós-apocalíptica, tal como Philip K. Dick e Scott imaginaram que ela seria em 2019.
Em Blade Runner 2049, Dennis Villeneuve, Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch, não fizeram tábua rasa do riquíssimo legado do capítulo inicial mas – ainda que de modo imperfeito – amplificaram-no desmedidamente: K, aliás, Joe K (um Josef K desqualificado?), deambula por um mundo de (raras) árvores petrificadas, de desertos calcinados côr de fogo habitados pelos destroços das estátuas do “Ozymandias”, de Shelley, durante um teste psicológico recita um poema extraído de Pale Fire, de Nabokov, voluntariamente ou não invoca e materializa os espectros de Marilyn Monroe, Elvis Presley e Frank Sinatra (que, em "One For My Baby", lhe canta “Set 'em' up Joe, I got a little story I think you oughtta know”), e, quando activa Joi, a namorada virtual, faz soar os dois primeiros compassos de Pedro e o Lobo, de Prokofiev. Mesmo quando não é inteiramente aparente, já há aqui muita música. Mas Zimmer e Wallfisch, ultrapassando a sua condição de pistoleiros a soldo da indústria dos "blockbusters" – assim acontecera também com o Vangelis pomposamente "new age" –, oferecem-lhe uma moldura sonora implacável, sinistra e descarnada, um uivo mecanicamente sufocado, qual requiem agreste, por vezes quase ligetiano, por uma civilização dizimada e já incapaz de identificar a linha que distingue o humano do não humano.
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