LINGUAGENS SECRETAS “Foi com Elvis que o cantor se transformou no sacerdote, no mediador entre o secreto culto maçónico e o público. A cultura acontece em segredo, toda a arte é secreta. As pessoas comuns apenas se apercebem das cinzas da arte, ou dos momentos falhados, ou dos instantes imobilizados. Só muito raramente, em cima do palco, uma banda acede à realidade; na maioria das vezes, isso acontece durante os ensaios, em momentos perdidos. Ninguém vê ou sabe alguma coisa acerca disso”, proclama David Thomas, dos Pere Ubu, quando Greil Marcus, por um capítulo inteiro, lhe dá voz em
The Shape of Things to Come. Mas essa voz que ele lhe concede – como será praticamente inevitável em qualquer obra de Marcus – é apenas uma de entre a imensa polifonia que se escuta num livro cujo sub-título é
Prophecy And The American Voice: concebido no rescaldo dos atentados a Nova Iorque de 11 de Setembro de 2001, como em
Mystery Train (1975),
Lipstick Traces (1989),
Dead Elvis (1991),
Invisible Republic (1997)
ou
Like A Rolling Stone (2005), a música, o cinema ou a literatura sobre os quais Greil Marcus especula nunca são tomados como objectos de avaliação crítica em si mesmos (no limite, interessa-lhe pouco a relevância estética e muito mais o significado cultural – em sentido amplo –, e histórico/simbólico) mas como sintomas, sinais, personagens, de que vai identificando os lugares e a intrincada teia de relações que estabelecem no grande painel dos mitos e da história Americana. É por isso que, quando David Thomas afirma inteiramente a sério que
“sempre que nos perguntam o que fazemos, eu respondo ‘pop mainstream’ – exactamente o contrário daquela artista experimental, Britney Spears”, é absolutamente necessário colocar isso num contexto (e é essa a missão a que Marcus se dedica) onde o rosto de Bill Pullman em
Lost Highway (de David Lynch), a “trilogia americana” de Philip Roth (
American Pastoral,
I Married a Communist e
The Human Stain), a série de televisão,
24, as profecias bíblicas de Amos, John dos Passos, Allen Ginsberg, Raymond Chandler, Lincoln, Melville, os textos fundadores dos Puritanos ou
Twin Peaks são só algumas das peças que atribuem sentido a um puzzle tão poderoso quanto frágil:
”Mais do que qualquer outro lugar no mundo, a América pode ser atacada através dos seus símbolos porque foi por eles que se edificou. É um artefacto, uma ideia e, desde o início até hoje, continua à procura de moldar quem se descobre no seu território. A nação existe enquento potência mas a sua legitimidade é apenas sustentada por algumas folhas de papel. (…) Retirem-se essas e, como nação, restará não mais do que uma colecção de edifícios e gente, sem nenhuma razão especial para falar entre si e com nada para se dizer”.
É preciso recordar que Greil Marcus, com outros “clássicos” como Lester Bangs, Nick Kent, Charlie Gillett, ou mais recentes – Simon Reynolds, David Toop –, é dos raros críticos culturais da coisa-pop que (no âmbito de um sector editorial específico que, anualmente, vomita centenas de títulos) não se fica pela hagiografia dos ícones do momento nem chafurda na coscuvilhice tablóide das intimidades privadas. Reynolds, dois anos depois de
Rip It Up And Start Again (uma detalhada investigação do pós-punk),
retoma a história no ponto onde a havia deixado e, em
Bring The Noise (outro título tomado de empréstimo a uma canção, desta vez, significativamente, dos Public Enemy) reune as suas “obras escolhidas dos últimos vinte anos de escrita em diversas publicações, acrescentadas dos seus próprios comentários, relativizações e (frequentes) sarcasmos actuais. O objecto de análise sintetiza-o ele em dois pontos:
“a pop num sentido muito particular – música que penetrou na arena pop vinda do exterior” e o efeito de
“ruído cultural”, por exemplo, da
“flamejante e desajeitada desgraça de Morrissey ou dos disparates intoxicados do ‘idiot-shaman’ Shaun Ryder”. Dito isto, uma considerável percentagem das cerca de sete dezenas de textos incluídos, centra-se sobre o hip-hop, jungle/d’n’b, seus derivados, ascensão e queda, e desemboca em duas conclusões, de certa maneira, simétricas: “
O hip-hop actual faz-me pensar naquela magnífica peça sobre a morte do rock que o Greil Marcus escreveu acerca dos Nirvana, onde ele dizia ‘o rock morreu mas o dinheiro é demasiado bom para se pensar em desistir’”;
“ao rock pode muito bem ter acontecido o mesmo que ao jazz, no sentido em que persiste, continua activo e gerando subgéneros, mas já deixou de ocupar o lugar central de comando na cultura popular”.
The Many Lives Of Tom Waits, de Patrick Humphries (que já havia publicado, em 1989, o muitíssimo mais sintético
Small Change: A Life Of Tom Waits) inscreve-se no género das “grandes biografias” mas, embora Humphries nos afogue num dilúvio de informação histórica, cultural e política, relativamente aos diversos períodos da vida de Waits
(e não deixa de ser interessante saber que ele nasceu um ano antes da publicação, em 1948, do célebre
Kinsey Report – estudo pioneiro dos hábitos sexuais dos americanos – ou de
Os Nus e os Mortos, de Norman Mailer), praticamente todo o livro repousa preguiçosamente sobre uma colagem de citações das abundantes e torrenciais
“tall tales” com que Tom Waits, durante trinta e tal anos, tem montado, desmontado e voltado a montar a ficção da(s) sua(s) personagen(s), e pouco se esforça por passar um pouco além dessa (assombrosa, reconheça-se) cortina de fumo e desvendar um ou dois segredos. Agradece-se o trabalho de compilação mas pedia-se algo mais.
Da produção (sempre excepcional) dos próprios músicos e artistas da cena pop e regiões limítrofes,
Night Life,
de Laurie Anderson, é o exemplo mais recente e, sobretudo, um belíssimo objecto realizado, em 2005, durante a
digressão de
The End Of The Moon: o registo de imagens (desenhadas por Anderson) e micronarrativas/haikus ocorridas em sonhos (
“a linguagem secreta do corpo”) que, confessa, se decidiu a concretizar
“literalmente por instinto de autodefesa”. E se “legendas” como
“Destroços. Tudo feito em pedaços. Números de telefone. Escombros. Um estranho cheiro a metal” são indícios do conteúdo desses sonhos, não é difícil compreender como este processo de exorcismo por catarse estética lhe poderá ter sido indispensável a ela e fulgurantemente iluminador para nós. (2007)