VELHOS ENGENHOS EM MOVIMENTO
1975, Cleveland, Ohio: David Thomas - inspirado na personagem criada por Alfred Jarry – inventa os Pere Ubu. E, instantaneamente, oferece aos teóricos darwinistas do história do rock o Santo Graal há muito procurado: o elo perdido entre os Velvet Underground e o punk. O patriarca da crítica musical norte-americana, Greil Marcus, definiu-os assim, em Mystery Train: “Os Pere Ubu saltam para um comboio que atravessa uma nação moderna como se se tratasse de um território antigo, apenas feito de ruínas e portentos, profecias e decadência. E, assim, o comboio transforma o território familiar em algo de estranho, nunca visto, novo”. A pedra fundadora deu pelo nome de The Modern Dance e, até hoje, sob a designação jarryana ou socorrendo-se dos heterónimos David Thomas & The Pedestrians, Two Pale Boys ou Pale Orchestra, as enciclopédias registam mais de três dezenas de publicações.
Evidentemente, porque em tal ecologia cultural as coisas nunca são simples, existe uma outra paradoxal afinidade entre Thomas/Ubu e o prog/art/rock. Pelo que, para efeitos de simplificação no que respeita à identificação da singularidade cósmica, há quem veja alguma vantagem em falar-se de avant-garage. Seja. E anote-se que, entre uma miríade de cúmplices, há que referir obrigatoriamente Anton Fier, Peter Hammill, Richard Thompson, Chris Cutler, Eric Drew Feldman, Linda Thompson, Andy Diagram ou Mayo Thompson. Todos (e cada um individualmente) a merecerem um capítulo à parte nas lendas contemporâneas.
Mirror Man (A Geography Of Sound in 2 Acts) também não facilita no que toca à arrumação nas gavetinhas mais familiares: ópera híbrida neo-“beat”, oratório, ciclo de canções assombrado, “theatre vague”... Inspirado em Spoon River Anthology, uma colecção de poemas de Edgar Lee Masters publicada em 1915, na qual os 244 residentes no cemitério de uma cidade de província contam a história das suas vidas, resultou de uma encomenda da South Bank de Londres e foi estreado em 3 de Abril de 1998 no festival David Thomas: Disastodrome!. O primeiro acto intitula-se “Jack & The General” e alude a Jack Kerouac e ao general Eisenhower. Este construiu o sistema rodoviário norte-americano, Kerouac escreveu a história daqueles que viajaram através dele em busca do sonho que a América prometia: alegoria do fim do mundo sob o néon vermelho e amarelo de um McDonald’s, irrisão do Jardim do Éden transformado em Disneyworld, objectos, detritos e humanos à deriva numa “interzone” entre a memória e o pesadelo do futuro. Do outro lado (no outro acto), fica “Surf’s Up In Bay City”, o fim da jornada. Em que “fim” é a palavra-chave. Qualquer coisa como Zappa em ácido sulfúrico, Burroughs com demasiadas peças perdidas no puzzle, Captain Beefheart submetido a terapia de electrochoques. E a ossada ressequida dos blues e da country. E uma caricatura patética de polka. Como uma miragem turva e parda onde, provavelmente apenas por efeito de inércia, velhos engenhos ainda continuam em movimento. (2005)
19 September 2007
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1 comment:
"Captain Beefheart submetido a terapia de electrochoques"
hihihi!
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