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03 October 2010

SEMIDEUSES E SACERDOTES



U2 - 360º At The Rose Bowl (DVD duplo)

Nietzsche poderá ter matado o deus judaico-cristão mas os deuses pagãos do rock’n’roll continuam, aparentemente, de óptima saúde e as catedrais onde se celebra o seu culto não são, de certeza, obras de arquitectura e engenharia inferiores aquelas que lançaram os mestres do gótico num vertiginoso despique pela construção em altura que apenas terminaria, em 1284, com o colapso das abóbadas de Beauvais. A "estação espacial" (ou "garra"), imenso coreto sci-fi, que constitui o palco/cenário da digressão "360º", dos U2, não corre, seguramente, tal risco – os prodígios de concepção e inovação tecnológica que exigiu, já testados em mais de seis dezenas de concertos antes de chegar a Coimbra, são garantia suficiente – e a intensidade do fervor das "folk masses" (Bono dixit) que aí têm lugar rivaliza, sem dúvida, com as da Idade Média. Na verdade, o melhor posto de observação será sempre o do sofá, perante a exibição do DVD: se a participação, ao vivo, no acto comunitário de fé fica reduzida a zero, a multiplicação dos ângulos e pontos de vista é incomparavelmente superior à de quem, no estádio/arena, fica circunscrito ao seu meio metro quadrado útil e condenado a acompanhar a liturgia pelo que vê projectado no ecrã (gigante e cónico mas ecrã). No fundo, a menos que o que, realmente, conte seja a comunhão fraternal de transpirações com o círculo de corpos imediatamente contíguo e a fusão das vozes nos grandes corais de recorte sonoro assaz semelhante aos do show business "desportivo" que ali, habitualmente, ocorrem, no sofá ou sufocando o relvado, tudo é identicamente virtual.



Desde a “Zoo TV Tour” (que, entre 1992 e 1993, levou o novo evangelho "cyberfiction" de Achtung Baby às massas), um concerto dos U2 nunca mais deixou de ser um ponto de encontro entre o "state of the art" tecnológico, a convenção planetariamente ecuménica de todas as confissões religiosas, o épico "overload" sensorial de agit-prop em favor das inúmeras causas de "direitos humanos", a gloriosa encenação audiovisual de uma síntese eclética da literatura de auto-ajuda e o que sobreviveu da música de um antigo quarteto punk de Dublin. Na "360º Tour”, sob os focos de luz que jorram da garra crustácea coroada por uma cúpula muçulmana/ortodoxa em cebola, simultaneamente semideuses-objecto de veneração e sacerdotes celebrantes, os U2, nas palavras de Bono, assumem, temporariamente, a pele de outras divindades: ele seria uma combinação de Schwarzenegger, Danny DeVito e Dennis Hopper, Larry Mullen encarnaria James Dean, The Edge teria raptado o corpo de Mr. Spock, e Adam Clayton (de facto, a uma certa luz, um clone quase perfeito do ministro das Finanças, Teixeira dos Santos), a cara chapada de Clark Gable.



E, correndo, caminhando, voando, sobre o duplo círculo do ora altar, ora púlpito, debruçando-se das pontes que o aproximam do fervilhante enxame lá em baixo, insufla-lhe o poder do canto para que, com ele, possam repetir que também ainda não encontraram aquilo de que andam em demanda, que já é tempo de limpar as lágrimas do rosto e, imediatamente a seguir à exortação autocrítica “Enough of the folk mass!”, salmodiar (em "Until The End Of The World") “We broke the bread, we drank the wine”. Dos altos céus e do vídeo-fogo-de-artifício, descerão também os santos: o bispo Desmond Tutu, a mártir birmanesa, Aung San Suu Kyi, o comandante Frank De Winne, da International Space Station, recitando a letra de "In A Little While", uma réplica-BD do carro de Deus/"mothership" do bíblico Ezequiel e o verde islâmico da paz. “At the altar of the dark star” e “through the stations of the cross”, depois de apelar a uma Via Láctea de telemóveis, com "Moment of Surrender", a cerimónia é dada por concluída. Ite missa est.

(2010)

07 October 2009

SOTTO VOCE



Jane Birkin - Enfants d’Hiver

Escutar Enfants d’Hiver não é muito diferente de conversar com Jane Birkin ou de assistir a Boxes, o filme que, paralelamente ao concerto que virá apresentar a Lisboa, será exibido no âmbito da Festa do Cinema Francês: como quem abre os portões da memória, imagens, personagens, espaços, obsessões, jorram em quase regime de sessão de psicanálise ao vivo. Estão aqui todos, nas fotografias do booklet e nas canções, o pai, a mãe, os irmãos, ela própria, as filhas, Charlotte, Kate e Lou, as perdas, os fantasmas e os instantes de felicidade.



Tudo sotto voce, naquele lugar incerto onde a chanson, um dia se cruzou com o idioma da pop – naquele mesmo momento em que ela e Serge Gainsbourg se encontraram e “Je T’Aime, Moi Non Plus” e a sua imagem de Lolita na capa de Histoire de Melody Nelson lhe ficaram, irremediavelmente, coladas à pele – e, hoje, através dela e da desejável ambiguidade transnacional que tem alimentado nas colaborações com Beth Gibbons, Beck, Neil Hannon, Vincent Delerm ou Étienne Daho, continua a gerar suaves híbridos de sotaque peculiar, criaturas imponderáveis recortadas em sombras. Apenas, por um momento, "Aung San Suu Kyi", contraste abrupto, irrompe, em inglês, como manifesto-imprecação panfletária contra a tirania: “This is a plea for Aung San Suu Kyi”.

(2009)
JANE BIRKIN - "AUNG SAN SUU KYI"



Stars et anonymes ont veillé pour Aung San Suu Kyi

(2009)