"NÃO TENHO PACIÊNCIA PARA ME REPETIR"
(entrevista nunca libertada do jornal onde jazia e que, hoje,
me apeteceu recuperar)
"Traidor" foi o que de mais simpático lhe chamaram quando decidiu acabar com os Talking Heads. Aos 40 anos, David Byrne sobreviveu a essa decisão "traumática" e a sua carreira a solo prossegue imparável, ao ritmo de discos completamente diferentes entre si. Byrne diz não ter paciência para se repetir e que a "world music" é apenas "um separador numa loja de discos".
O seu último álbum, Uh-Oh, foi recebido com apreciações críticas diversas. Pensa que, apesar do seu já considerável trabalho a solo, ainda continua a ser comparado com o que os Talking Heads produziram?
Sem dúvida. Para imensas pessoas, os Talking Heads tiveram imenso significado: cresceram com aquelas canções que ficaram ligadas à sua vida. A dissolução do grupo surgiu-lhes quase como um acto de traição, sentiram que algo lhes fora roubado.
Pôr fim aos Talking Heads, exactamente quando estavam à beira do grande sucesso, deve ter sido um acto de coragem...
Foi, realmente, doloroso, traumático. Musicalmente, tudo estava bem mas, no seio do grupo, a felicidade não era muita e isso estava a destruir o prazer de fazer música. Não era assim que eu desejava viver. Se tiver de sofrer, prefiro não fazer música.
Os Talking Heads foram, essencialmente, uma banda dos anos 80. Que sente, hoje, em relação a essa época?
Não sei se me apetece muito pensar nela... quando alguém menciona os anos 80 (pelo menos nos EUA), só consigo pensar em Ronald Reagan e George Bush, não penso muito em música. Mas isso não quer dizer que não houvesse muito boa música. Foi um período em que, para mim e para muitos outros, teve início o acesso e a circulação de música de origens geográficas muito diversas, bem mais do que nos anos 60 e 70. Foi também quando a televisão dominou a música e passou a influenciar o modo como as pessoas pensavam nela e a sentiam. O vídeo transformou-se numa indústria, uma força com que passou a ser necessário contar. Claro que tanto os há bons como maus.
Como se situa face à polémica do uso quase obrigatório dos videoclips como promoção da música? Alinha com quem vê neles um factor de empobrecimento da imaginação de quem ouve?
De certo modo, sim. Muitos clips retiram ao ouvinte a possibilidade de interpretar a música. É quase um roubo, um acto de censura cometido sobre a imaginação que exclui a hipótese de cada um construir o seu próprio argumento. Também é verdade que já existe uma fórmula estabelecida para os fazer. Para apresentar um músico ou um cantor, a melhor ideia ainda seria apresentá-lo tal qual, "sem nada", sem montagem. Claro que seria muito difícil fazer com que o público o aceitasse assim...
Quando surgiram, no final dos anos 70, os Talking Heads foram encarados como uma banda da "new wave" novaiorquina, em reacção contra a música da época, decorrente da atmosfera do final dos anos 60. Como evitaram cair nessa armadilha?
Essa era a época de todos os excessos, quando os grupos de rock se divertiam a lançar televisores pelas janelas dos hotéis e a enfiar Rolls Royces nas piscinas. Em todos os concertos, eram comuns os shows de laser, os palcos giratórios, as bombas de fumo... O que era divertido, mas, para a minha geração, começou a parecer-se demais com uma enorme produção em que a música quase deixava de fazer sentido. Achámos que era preciso desfazermo-nos de todo aquele aparato decorativo e tocarmos de forma tão simples quanto possível.
Sentiram-se, realmente, parte de uma cena artística novaiorquina?
Um pouco. Em Nova Iorque, todos os grupos tinham um sentido de individualidade muito marcado. A Patti Smith, os Television, os Blondie, Ramones, eram todos muito diferentes pelas suas atitudes. As bandas inglesas tinham uma imagem colectiva mais acentuada.
A ideia de "carreira" não parece preocupá-lo muito. Publica discos completamente diferentes, não se importa com a definição de uma imagem musical fixa. É mesmo assim?
É verdade. Claro que tenho consciência disso, é o género de coisas que, às vezes, me faz confusão. Ter de possuir uma imagem pública, entender que vender discos é uma necessidade e, ao mesmo tempo, não me ralar demasiado com isso é um conflito algo complicado.
Que é que o lançou na exploração das músicas do Terceiro Mundo? Sentiu haver um esgotamento no panorama pop/rock ocidental?
Esgotamento talvez não, mas alguns aspectos estavam a tornar-se aborrecidos. O ritmo era quase sempre igual, previsível. Quando me apetecia dançar, dava comigo a ir a um clube de salsa, em Nova Iorque, onde os ritmos eram muito diferentes. Mas foi uma coisa que nasceu mais do entusiasmo do que da insatisfação, foi um gesto positivo. Travara conhecimento com uma geração de músicos e de compositores brasileiros que nunca tinham deixado de ser inovadores, nunca tinham caído em fórmulas, e o mesmo acontecia com muitos outros.
O seu trabalho recente e as publicações que realiza através da Luaka Bop têm sido vistos, simultaneamente, como projectos louváveis e actos de imperialismo cultural, acusação também dirigida a músicos como Paul Simon e Peter Gabriel. Como reage a isso?
Entendo essas críticas e o que pretendem dizer. Mas escolheram a expressão errada. Imperialismo cultural é ir ao Rio de Janeiro e só conseguir ouvir roc'n'roll e beber Coca Cola. Claro que gostava de fazer dinheiro com os discos da Luaka Bop mas não faço. Praticamente, só dá para pagar a edição. Se vendêssemos milhões, talvez essas críticas tivessem razão de ser. Mas, por agora, não.
Neste contexto, a etiqueta "world music" significa alguma coisa para si?
Não. É só um separador numa loja de discos. É como quando chamavam aos Talking Heads uma "banda punk". É uma forma temporária de chamar a atenção para músicas que, de outra forma, não seriam ouvidas, o que até acaba por nem ser mau. As diferenças reais, mais tarde ou mais cedo, tornam-se evidentes.
Como tem sido a experiência de conjugar a sua nova música com personalidades tão diferentes como as de Twyla Tharp, Bob Wilson, Bertolucci ou Brian Eno?
Funciona sempre como trabalho de colaboração em que tento compreender o que pretendem. Parte do prazer está aí mesmo: entender isso enquanto componho a minha música. Por vezes, levei tempo a entender os processos. As técnicas são diferentes mas o processo criativo é, no fundo, igual. Por baixo das várias formas e géneros, há um movimento comum.
Nas suas canções, tem tendência para abordar temas pouco habituais, para se situar em contextos invulgares ou mesmo usar formatos não narrativos como em Music For The Knee Plays. É um processo natural ou predispõe-se, desde o início, a quebrar as regras?
A maior parte das vezes, acontece naturalmente embora exija trabalho. Sei que cherguei onde queria quando as coisas me surpreendem, quando olho para o papel e não tenho consciência de ter sido eu a criar aquilo.
Na sua última entrevista para o "New Musical Express", chamaram-lhe "the king of post-modernism". Para si, isso faz algum sentido?
Pensava que era um estilo de arquitectura... Sei o que querem dizer mas não tenho a certeza de que seja um elogio...
Jà escreveu música para o cinema, o teatro e a dança, já realizou filmes, tocou com um grupo e a solo, montou uma editora. Que lhe falta ainda fazer?
Queria fazer outro filme mas ainda não arranjei dinheiro. Por agora, estou muito feliz com o que tenho feito.
Em Stolen Moments, um livro de entrevistas de Tom Schnabel em que você também participa, vem, na abertura, uma citação de Nietzsche: "Sem música, a vida seria um erro". Qual foi o último disco que ouviu que o fez concordar com isso?
Ah, essa é difícil... quando estive agora em Itália, ouvi gravações de um compositor chamado Fabricio de Andre que me espantaram. Também gosto muito do novo de Caetano Veloso.
"Say something once, why say it again?": essa interrogação, em "Psychokiller", é o seu lema?
É, de facto, aquilo em que mais acredito. Não tenho paciência para me repetir.
(1992)
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25 June 2008
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