13 March 2007

O PENÚLTIMO RENASCIMENTO
 

Em 1977, Simon Reynolds tinha catorze anos. Por isso, à excepção da chinfrineira que explodia no quarto do irmão mais velho, o punk passou-lhe completamente ao lado. Não que isso tenha sido uma tragédia: Reynolds partilha, sabiamente, da opinião minoritária segundo a qual "os movimentos revolucionários na cultura pop têm o seu impacto mais profundo depois do 'momento' ter alegadamente passado, quando as ideias alastram das elites e cliques metropolitanas e boémias que originalmente as 'detinham' e atingem os subúrbios e a província". E avança ainda outra: "1978-82, enquanto era pop cultural distinta, rivaliza com os famigerados anos entre 1963 e 1967, vulgarmente conhecidos como 'sixties'".


Orange Juice - "Rip It Up"
 
Rip It Up And Start Again/Postpunk 1978 - 1984 (ed. Faber and Faber) trata, então, de investigar, documentar e analisar exaustivamente em cerca de 550 páginas essa época privilegiada da cultura pop anglo-americana até ao momento (que Reynolds situa a meio da década de 80) em que as margens se deixaram absorver de novo pelo "mainstream": o modo de fazer "independente" (em termos de criação, produção e distribuição) converteu-se no género "indie", o "record collection rock" — essa infinita regurgitação do passado que, ainda hoje, persiste, em ciclos progressivamente mais curtos — ocupou a quase totalidade do espaço e o novo passou a dever ser procurado nos emergentes laboratórios do hip-hop, da electrónica, da house e do techno.


Josef K - "Sorry For Laughing"

A abrir, a identificação das "classes revolucionárias": "os jovens das classes trabalhadoras demasiado indisciplinados para uma vida de trabalho que convivem com os putos da classe média demasiado caprichosos para uma carreira de quadros empresariais". Ponto de encontro: as faculdades de belas-artes, literatura, cinema e design que "desde há muito funcionam como local de boémia subsidiado pelo Estado". Sim, porque, ao contrário da ética (pseudo) proletária do punk — desde o Verão de 1977, já uma paródia de si mesmo —, o pós-punk/no-wave e satélites estéticos afins eram, essencialmente, o prolongamento do art-rock do início de 70 mas, agora, emagrecido, revigorado, intelectualmente austero (mesmo quando, aparentemente, "anti-intelectual") e até erudito.

Cabaret Voltaire- "Crackdown"

Alfred Jarry, os Dadaístas, Situacionistas, Futuristas, Surrealistas, Brecht, Benjamin, Burroughs, Godard, Philip K. Dick, J.G. Ballard, Artaud, Céline, Genet, Duchamp, Anthony Burgess, Kafka, Beckett, Camus, Dostoievsky ou Conrad eram tanto alimento criativo como James Brown, o reggae, o dub, Captain Beefheart, o Bowie de Berlim, o disco, o funk, Brian Eno, Kraftwerk, Iggy Pop, John Cale, Lou Reed ou o "krautrock". Os subúrbios e áreas urbanas socialmente desclassificadas de Nova Iorque, Cleveland, Akron, Londres, Manchester, Sheffield, Bristol, Liverpool, Glasgow, as lojas de discos e editoras independentes (frequentemente, umas davam origem às outras) — Rough Trade, Factory, 99 Records, Postcard, Drome, SST, Cherry Red, Mute, incontáveis outras — a imprensa musical (dos fanzines aos semanários como o "NME", "Melody Maker", "Sounds" ou "Record Mirror" que, ao tempo, em conjunto, vendiam acima de 600 000 exemplares) e a rádio constituiram a rede "alternativa" que, exactamente como acontecera nos anos paralelos da década de 60, contribuiram para disseminar uma nova pop intensa, neurótica, tão socialmente "alienada" como interventiva, tão musicalmente "primitiva" quanto rica e complexa.


James Chance & The Contortions (live in NYC)

A lista dos protagonistas é, naturalmente, infinita e, irremediavelmente, incompleta: PiL, Buzzcocks, Magazine, Subway Sect, Pere Ubu, Devo, James Chance & The Contortions, Suicide, Lydia Lunch, Glenn Branca, Rhys Chatham, DNA, Mars, Lounge Lizards, Pop Group, Rip, Rig & Panic, Slits, Raincoats, Gang Of Four, Mekons, Au Pairs, Wire, This Heat, Young Marble Giants, Talking Heads, Cabaret Voltaire, Joy Division, Fall, Throbbing Gristle, Residents, Tuxedomoon, Specials, Dexy's Midnight Runners, Japan, Orange Juice, Josef K, Scritti Politti, Bush Tetras, 23 Skidoo, A Certain Ratio, Material, Liquid Liquid, Kid Creole, Banshees, Birthday Party, Bunnymen, Teardrop Explodes, Black Flag, Hüsker Dü, Test Department, Art Of Noise...


Suicide - "Ghost Rider"

Por volta de 84/85, a serpente pop começava, uma vez mais, a devorar a própria cauda. Pouco, depois, entre 86 e o final da década, Simon Reynolds (com David Stubbs), no "Melody Maker", enxergou o último renascimento da Fénix-pop, ao escutar os Young Gods, Throwing Muses, My Bloody Valentine, Saqqara Dogs, A.R. Kane... e, acerca deles, escreveu em Blissed Out (1990). O capítulo anterior fica, agora, microscópica e fascinadamente, descrito e observado. (2005)

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