21 January 2007

VALORES DE TROCA



Brian Eno é uma daquelas figuras da música do século XX sem a qual uma muito considerável parcela da história sonora do mundo destes anos instantaneamente se extinguiria. Fundador dos Roxy Music, criador do conceito e da prática da "ambient music" e "generative music", inventor das "Oblique Strategies", produtor (entre infinitos outros) dos U2 aos Talking Heads, David Bowie, Jon Hassell ou Laurie Anderson, teorizador prolífico e conferencista compulsivo, é exactamente o tipo de personalidade quase renascentista que reflecte obsessivamente sobre o que faz e faz quase tudo o que pensa. Pela primeira vez em Portugal, vai apresentar no Porto, em estreia mundial, o seu novo álbum Drawn From Life, gravado com o DJ alemão Peter Shwalm. Mas (naturalmente...), confessa, nem será daí que virá o essencial do reportório...

Drawn From Life, aparece após quatro anos sem nenhuma publicação sua. Como surgiu esta colaboração com Peter Schwalm?
Enviam-me regularmente dezenas de CD que eu vou procurando ouvir. E nem sempre acontece que aquilo que oiço me interesse muito. Mas, quando me chegou às mãos o primeiro álbum do Peter Shwalm, apercebi-me de que ele trabalhava numa área musical de fronteira entre o jazz e a música ambiental que me agradava bastante e onde, na realidade, ele era melhor do que eu! Por isso, na primeira oportunidade em que fui a Frankfurt, encontrei-me com ele em estúdio e, basicamente, fomos improvisando. Depois disso, fomo-nos reenviando mutuamente os resultados dessas gravações e, tanto ele como eu trabalhámos sobre elas e reconfigurámo-las.



Também não é muito habitual vê-lo a actuar ao vivo. Este concerto que vai dar no Porto faz parte de uma digressão?
Não faz parte de nenhuma digressão. Na verdade, eu não gosto muito de tocar ao vivo. Vou realizar apenas dois concertos — este no Porto e outro em Tóquio — onde a maior parte da música que será apresentada (vai ser um concerto estritamente musical sem quaisquer elementos multimedia) será quase toda inteiramente nova e no qual cantarei mesmo algumas canções. Que é algo que já não faço há bastantes anos.



Gostava que me falasse um pouco acerca do que chamou a sua "Big Theory Of Culture" segundo a qual define como actividade cultural "tudo aquilo que não somos obrigados a fazer" mas que acaba por se constituir como um importante impulso biológico e que, na sua opinião, entende o valor dos objectos culturais não como uma qualidade que lhes seja intrínseca mas sim como algo que quem deles desfruta lhes confere...
Os seres humanos sempre viveram e vivem crescentemente no interior do mundo que existe no interior de si mesmos. E para se relacionarem ou se entregarem a empreendimentos como o governo de uma cidade, de um país ou, por exemplo, a organização de um concerto, necessitam evidentemente de comunicar entre si. Para isso, supõe-se que existe um meio apropriado que é a linguagem. Mas, na minha opinião, a linguagem é apenas o segundo degrau na escadaria em que esse processo consiste. Estou neste momento a falar consigo ao telefone e ao fazê-lo procuro dirigir-me a si de um modo que, imagino, tenha a ver com a sua maneira de ser, com a sua cultura, com a profisão que tem e com algum interesse por música. Mas só o posso fazer na medida em que, através do contacto e da experiência com objectos culturais — filmes, livros, teatro, música, moda — me habituei a experimentar pontos de vista e universos diferentes dos meus e aprendi a sair para fora dele e procurar a empatia com eles. Só depois a linguagem procura um meio de exprimir esse exercício de empatia com aquilo que é diferente de mim. E o que a cultura nos possibilita é esse permanente jogo de troca de papéis, de habitar e investigar realidades diferentes. É nesse sentido que acaba por ser também uma necessidade biológica de sobrevivência.



Para si que, recentemente, viveu durante algum tempo na Rússia, esse desejo de actividades culturais aparentemente "supérfluas" deve ter sido especialmente notório: numa sociedade onde as necessidades básicas se encontravam aparentemente resolvidas, tudo isso foi deliberadamente trocado pela ambição supostamente "frívola" e "burguesa" de poder escolher e exibir identidades individuais que têm a ver com a moda, por exemplo, ou com a experiência de outros valores culturais...
Da minha experiência lá, o que me pareceu essencialmente é que os jovens russos em particular, desejavam acima de tudo a possibilidade de conhecer outros mundos e outras experiências e de se poderem incluir nesse universo de possibilidades. Não era tanto o desejo de poderem também eles usar "jeans" ou de, como pensam os americanos — que supõem ter ganho essa guerra —, de se poderem tornar todos "jovens americanos" mas a possibilidade de conseguirem localizar uma identidade própria. Como costuma dizer um amigo meu, referindo-se ao colonialismo, as pessoas preferem sempre a hipótese de se situarem no centro de um universo, mesmo que periférico, a descobrirem-se habitantes da periferia de um universo central que não é o seu.



De qualquer modo, segundo o seu ponto de vista, o valor de um determinado objecto cultural nunca é algo que lhe seja intrínseco, objectivo, absoluto, eterno e "mensurável" mas sempre uma qualidade que lhe é atribuida por quem o aprecia...
É evidente que a actividade cultural não funciona da mesma forma que o dinheiro. Mas entre uma e outra pode-se estabelecer uma analogia. Uma nota de banco é apenas um pedaço de papel. Mas um pedaço de papel a que decidimos atribuir um determinado valor que nos permite adquirir um certo número de bens. O valor não lhe é intrínseco, nós é que lho atribuimos. Entre mim e si, por exemplo, podíamos inventar uma unidade monetária, nossa, privada, com a qual apenas entre nós os dois, comerciaríamos até ao momento em que, por uma razão ou por outra, decidíssemos que ela tinha deixado de ter valor. Com a actividade cultural passa-se algo semelhante. Se pensar na música e no texto de uma canção, a intenção deverá ter sido estabelecer o princípio de um enigma, um ponto de interrogação que possa iniciar uma relação com quem a escuta que lhe suscite o desejo de a investigar. Essa informação tem de ser "nutritiva". A informação só é realmente informação na medida em que for capaz de determinar mudanças. E é por aí mesmo que a pouca ou nenhuma riqueza de alguns textos falha. Tal como a relação que se estabelece entre o texto escrito e as interpretações que dele são realizadas que muitas vezes são bastante mais interessantes do que o próprio ponto de partida.

É como dizia T.S. Eliot, "O poema que o leitor lê pode ser melhor do que o poema que o poeta escreveu"...
É isso mesmo, gosto muito dessa ideia.



Ou como o seu enigmático texto para "Cordoba" (de Wrong Way Up que gravou com John Cale) que era, afinal, uma colagem de frases avulsas retiradas de um manual de conversação inglês-espanhol...
Embora não as tenha utilizado todas nem disposto pela ordem original. Mas é disso mesmo que se trata.

Por outro lado, se não se trata de identicar o valor de uma obra (que é o que, maioritariamente, a crítica faz) a crítica artística ou musical deixa de ter qualquer sentido...
É justamente esse o problema de muita crítica. Ela não deveria existir como um Supremo Tribunal de Avaliação de valores absolutos mas sim enquanto lugar e pretexto para o estabelecimento de um diálogo interessante entre a obra de arte e quem desfruta dela. E mesmo a importância desse diálogo não tem de ser medida pela quantidade de tempo durante o qual ele persiste. Não é também a durabilidade que conta. O problema de muitos críticos de música clássica é imaginarem-na como possuindo um valor intrínseco e eterno quando, na verdade, até já poderá ter perdido alguma daquela tal informação vital de que falava há pouco. Possivelmente, daqui por vinte anos, não haverá ninguém disposto a ouvir as Spice Girls. Mas isso não deve servir para eliminar o impacto — por mais limitado que seja — que, em determinado momento esse fenómeno produziu.

De qualquer modo, enquanto produtor que também tem sido muito, não desenvolve uma certa actividade crítica, explicando, decifrando e procurando interpretar o trabalho dos músicos que produz?
Claro que sim. E podendo-me dar ao luxo de introduzir ideias e conceitos que poderão não ser exactamente coincidentes com os propósitos da editora cujo objectivo, legítimo, é procurar que o disco se venda. O meu é produzir música nova. Quando trabalhei com os Talking Heads, por exemplo, estava imensamente interessado pela música africana e por aquela sua característica de ser uma intensa experiência simultaneamente individual e colectiva. Às vezes, mandava-os sair do estúdio durante duas horas, ficava a trabalhar sozinho e, no fim, eles regressavam e diziam-me que o que eu tinha feito era uma merda! Ou então, aplaudiam...



A história da encomenda que lhe fizeram para a criação do "Microsoft Sound" do Windows 95 é também um excelente exemplo da atribuição de sentido antes e depois da concretização de um objecto cultural...
Sem dúvida. Pediram-me uma peça musical que fosse simultaneamente inspiradora, universal, optimista, futurista, sentimental, universal, uma enorme lista de adjectivos. E, mesmo no fim, dizia, "e que tenha a duração de três segundos"!... Antes disso, eu tinha estado a trabalhar em peças muito longas. Foi como se, de súbito, tivesse de passar de uma escala de construção de grandes edifícios para me dedicar a uma minúscula peça de joalharia. Divertiu-me imenso — acabei por criar 84 soluções —, até porque nunca tinha achado muita graça ao da Apple que me parecia demasiado triunfal, tipo "Olhem para mim como sou diferente, tenho um Mac!". E contribuiu para me desbloquear: depois disso, voltei a trabalhar com peças de três minutos que me pareceram oceanos de som... (2001)

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