18 March 2007

UMA CASA ESTÁ A ARDER
 
  
 
Diz-se que o Buda tinha um santo horror às perguntas metafísicas. Segundo a lenda, um dia, um tal Malunkyaputta foi vê-lo e confrontou-o com "os problemas não explicados". Coisas como "o universo é eterno ou não é eterno? é finito ou infinito? a alma é a mesma coisa que o corpo ou a alma é uma coisa e o corpo é outra?". Aparentemente, Shakyamuni não terá sido muito amável para com Malunkyaputta mas ter-lhe-à ensinado um novo vocábulo: "avyakatani", as perguntas inúteis sem resposta. Algures pelo meio de The End Of The Moon, Laurie Anderson não conta esta história. Mas, a propósito disto ou daquilo ("a propósito disto ou daquilo" seria um bom título para um ensaio sobre a sua obra), faz uma observação acerca do absoluto desinteresse dos budistas em relação às questões ontológicas: "Se a nossa casa está a arder, porque nos haveríamos de preocupar em saber quem foi o arquitecto?" O que, se repararmos bem, também é uma pergunta. Mas que, caso não nos opunhamos excessivamente aquela ideia segundo a qual, para cada solução, a filosofia propõe sempre um novo problema, a coloca a ela do lado dos perguntadores decididamente não adeptos das "avyakatani". Por exemplo: "Não será a vida apenas má arte? Sem tema definido, personagens que estão sempre a aparecer e a desaparecer e, depois, morrem sem nenhuma justificação dramatúrgica para que isso aconteça?" 
 

 
Não, Laurie. Estavas, possivelmente, apenas a pensar nos teus espectáculos onde cada instante se sucede ao anterior e antecede o seguinte ligados apenas por um "and" ou um "but" como se isso bastasse para que B fosse a consequência natural de A. Não, não tem qualquer lógica, é magnífica arte e, sim, é assustadoramente parecido com a vida. Embora (não puxemos Oscar Wilde para a conversa...) seja claramente outra coisa. O exercício de montagem de um Vertov que apreciasse haikus, talvez. A montanha russa de um sonho acordado, em câmara lenta. Ou, claro, a janela que abre para o momento em que nos damos conta de que "a vida começa quando compreendemos que nunca seremos capazes de contar a nossa própria história". E, de cada vez que juntamos os pontinhos (ou alguém o faz por nós), a imagem resulta diferente. A casa, é verdade, está mesmo a arder. Começou a pegar fogo no dia — inevitável — em que os nomes se interpuseram entre nós e as coisas. Entre nós e nós. Entre o que descrevem e aquilo que é. Entre o território e o mapa do território. "Podem dizer-me onde estou?"
 
Num McDonalds, em Manhattan. Junto de uma família Amish, na Pensilvânia. Escalando o Tibet. Espiando os corredores da NASA. Para descobrir que, afinal, habitamos o interior de um gigantesco relógio, um mundo onde os satélites têm nomes como Phobos ("medo") e Deimos ("pânico") e uma expedição em busca do significado de "beleza" pode terminar abruptamente perante o perigo que espreita do céu. Abutres ou aviões. Esteve lá sempre: "Well, you don't know me, but I know you. And I've got a message to give to you. Here come the planes. (...) This is the hand, the hand that takes, here come the planes, they're american planes, made in America, smoking or non-smoking? And the voice said: Neither snow nor rain nor gloom of night shall stay these couriers from the swift completion of their appointed rounds". O Superman. O Judge. O Mom and Dad. Phobos. Deimos. O fim da Lua ou o fim da inocência. A Energia Negra ou o Lado Negro da Lua. Ou o Universo se devora a si mesmo ou haverá quem se encarregue de, numa franja da galáxia, acelerar a máquina da entropia. "Um dia, existirá um comando estratégico militar na Lua. Não poderemos vê-lo mas saberemos que ele está lá". Uma guerra sem fim que apenas se limitará a mudar de lugar. Como a tecnologia para o desenvolvimento das "spacesuits" dos astronautas foi "deslocalizada" para o equipamento de guerra no Iraque. E que já não deixa tempo sequer para gaguejar de susto: as palavras que desencadeiam o fim já começaram a ser pronunciadas e só no início se gagueja. Quando a casa está em chamas, não cuidamos de saber quem a construiu. Fugimos. Ou, se formos Laurie Anderson, inventamos um one woman/one laptop show. Um sofá, um violino, um teclado, um ecrã. Com a pele irregular do rosto da Lua. E disparamos interrogações. "Avyakatani"? Não exactamente: quem decide a côr das imagens do espaço? por que razão o mundo nos odeia, a nós, americanos? porque somos a miúda mais gira da escola ou porque somos imbecis? porque se equivocam os pinguins e chocam meteoritos vindos de Marte? porque hesitam os robots, incertos da sua exacta localização no espaço? porque são tão idênticos a nós? porque somos tão aterradoramente semelhantes a eles? Here we go again... (2005)

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