29 September 2007

UMA PRODIGIOSA SUCESSÃO DE ACONTECIMENTOS CONDUZIU-ME A RESSUSCITAR UMA MÃO-CHEIA DE "OFF-THE RECORDS", DE NOVO (plus ça change...), DESGRAÇADAMENTE PERTINENTES (II)


O MAIOR DEFEITO

Experimentemos juntar algumas pontas soltas de informação:

1) Segundo diversos relatos coincidentes, a edição deste ano do festival Lollapalooza — criado em 1991 por Perry Farrell como uma ostensiva e transgressora coligação de punk, rock hard e margens negras afins — que teve lugar no primeiro fim de semana de Agosto, em Chicago, caracterizou-se por uma significativa mudança de atitude na maioria das bandas presentes: prevaleceu um espírito de razoabilidade cívica muito "clean cut", sucederam-se os apelos ao "espírito comunitário", os rappers/hip-hoppers de serviço (Kanye West, Common, Blackalicious) distinguiram-se pelos temas de "pensamento positivo" e genérico afastamento da pose "gangsta" e "Deus" parece ter sido um tópico recorrente (Common terá até protagonizado um sermão no qual sublinhou que "todos temos em nós a luz divina") — o que, no "New York Times", Jon Pareles sintetizou assim: "Os teóricos da sociologia poderão afirmar que, cinco anos depois do início da guerra contra o terrorismo, as relações entre a cultura juvenil e a autoridade modificaram-se. (...) O Lollapalooza já não é rebelde. Mas, se virmos bem, também a pop não o é".

2) Em 1986, quando o ex-guevarista e então conselheiro de Mitterrand, Régis Debray, declarava que "os blue jeans e o rock'n'roll têm mais poder do que todo o Exército Vermelho", não fazia senão repetir as utópicas profecias de Charles Reich em The Greening of America (uma das bíblias da "contracultura" dos anos 70), manifesto que anunciava a nova era de uma "Consciência III" de paz, amor e liberdade, exemplificando como os jeans simbolizavam "uma relação significativamente nova entre o homem e a tecnologia", proporcionando um bem de consumo barato e que não hierarquizava grupos sociais. No recentemente publicado Jeans - A Cultural History Of An American Icon, James Sullivan lança a última pazada de terra sobre tão piedosas ideias, demonstrando como aquilo que começou por ser um par de calças de trabalho de mineiros se converteu em "status symbol" de marca, objecto de agressivas campanhas de marketing e, definitivamente, tudo menos uma bandeira do igualitarismo social.

3) No seu actual espectáculo, Trio: Songs And Stories, Laurie Anderson ressuscita o ensaio de 1978, de George W. S. Trow, Within The Context Of No Context, uma outra profecia de sentido oposto à de Charles Reich: os media (em especial, a televisão) degradariam, condicionariam e reestruturariam a percepção do real, instituindo "o contexto de nenhum contexto" e mergulhando as massas numa atmosfera de apático hedonismo reles, ignaro e irremediavelmente destituído de valores culturais. Também Trow, no fundo, adiantava muito pouco aquilo que, quarenta e três anos antes, o fascista e sinarquista francês, Jean Coutrot, sugeria: "Nesta altura, não seria impossível com o que aprendemos com as leis da psicologia colectiva, especificar uma técnica moderna de revolução... Um revolucionário metódico tem como seu objectivo preciso a transmutação da estrutura social do seu país, a modificação até certo ponto, das mentes e dos corações dos seus cidadãos e a sua conversão à sua própria opinião. Conhecemos o extraordinário desenvolvimento das técnicas de persuasão — educação, propaganda, imprensa, livros, revistas, cinema, o gramofone, a rádio e a televisão — que acompanham o indivíduo a toda a hora e na maior parte do seu domicílio, afectando o desenvolvimento da sua personalidade. A maior parte dos nossos contemporâneos recebe todos os seus factos, os seus sentimentos, as suas ideias, desta maneira; é possível esvaziar os homens a partir do seu interior, como se escava o interior de um melão, substituindo as pevides insípidas por um aromático vinho do Porto e introduzir neles, sem perigo nem desperdício, os conteúdos psicológicos escolhidos".

4) Machado de Assis, no capítulo LXXI de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), coloca na pena do seu defunto protagonista as palavras: "O livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contracção cadavérica, vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer e o livro anda devagar; tu amas a narrativa direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...".

Entre inúmeras outras conclusões possíveis e (talvez bastante mais) necessárias *, ensaiemos uma, certamente menor mas esclarecedora: numa atmosfera global "clean cut", socialmente anestesiada e cientificamente "esvaziada a partir do interior", o que poderá existir senão uma imensa massa de "maiores defeitos" para acolher um álbum como, por exemplo, The Drift, de Scott Walker, que exala o odor da peste, urra, gargalha, guina à esquerda e à direita, ameaça o céu e nos enfia o horror do mundo pelos olhos dentro?

* (concentrem-se, agora, nessas, sff)

(2006)

4 comments:

Anonymous said...

Em brasileiro:

«O conceito de violência simbólica foi criado pelo pensador francês Pierre Bourdieu para descrever o processo pelo qual a classe que domina economicamente impõe sua cultura aos dominados. Bourdieu, juntamente com o sociólogo Jean-Claude Passeron, partem do princípio de que a cultura, ou o sistema simbólico, é arbitrária, uma vez que não se assenta numa realidade dada como natural. O sistema simbólico de uma determinada cultura é uma construção social e sua manutenção é fundamental para a perpetuação de uma determinada sociedade, através da interiorização da cultura por todos os membros da mesma. A violência simbólica expressa-se na imposição "legítima" e dissimulada, com a interiorização da cultura dominante, reproduzindo as relações do mundo do trabalho. O dominado não se opõe ao seu opressor, já que não se percebe como vítima deste processo: ao contrário, o oprimido considera a situação natural e inevitável.
A violência simbólica pode ser exercida por diferentes instituições da sociedade: o Estado, a mídia, a escola, etc.
A mídia, ao impor a indústria cultural como cultura, massificando a cultura popular por um lado e restringindo cada vez mais o acesso a uma cultura, por assim dizer, "elitizada".»

Anonymous said...

Ou mais radical:

«Mass media: must be studied in terms of form and not content; Frankfurters like Brecht and Enzensberger who argue that media can be liberating ignore that the mass media are ideological through and through: "ideology does not exist in some place apart, as the discourse of the dominant class, before it is channeled through the media ... media ideology functions at the level of form,". The mass media "fabricate noncommunication" because they "are what always prevents a response, making all processes of exchange impossible ... This is the real abstraction of the media. And the system of social control and power is rooted in it," . This is not only the ultimate means of social control; it simply is social control; "It is useless to fantasize about state projection of police control through TV:... TV, by virtue of its mere presence, is a social control itself. There is no need to imagine it as a state periscope spying on everyone's private life -- the situation as it stands is more efficient than that: it is the certainty that people are no longer speaking to each other, that they are definitely isolated in the face of a speech without response,".»

Admirável mundo novo?

Anonymous said...

Em português mesmo.

Creio que a história sempre foi pão e circo. O pão está mais ou menos assegurado. Sobra mais tempo para o circo. E o circo somente se tornou um grande negócio.
Capitalismo!
Alguém achou no século XX que ia mudar?
Acontece que o circo hoje pode ser travestido de várias formas: de massa, de tribos, de elite,etc e etc.

Admirável mundo velho.
O novo não chegou.

Anonymous said...

another Interesting link
regarding George W. S. Trow

http://zeitings.blogspot.com/search/label/George%20W.%20S.%20Trow