19 September 2012


INVENTÁRIO DO HORROR


Bob Dylan - Tempest

Houve um pequeno momento de pânico quando, há meses, Bob Dylan confidenciou à “Rolling Stone” estar a considerar a possibilidade de o seu próximo álbum incluir predominantemente “temas religiosos”. Tratar-se-ia de uma assustadora recaída? Iria ele entrar em vertiginosa marcha atrás até à sua idade das trevas privada enquanto "born-again christian" - os anos dos terríveis Slow Train Coming (1979), Saved (1980) e Shot Of Love (1981) – e colocar um triste ponto final na magnífica série iniciada em 2001 com Love & Theft? Falso alarme, afinal. Aqui e ali, haverá uma ou outra afloração do que poderia ter acontecido (um “there is no understanding for the judgement of god’s hand”, por exemplo, mas devidamente legitimado pelo contexto), no entanto, em Tempest, o Dylan que reencontramos é, como escreveu Greg Kot no “Chicago Tribune”, a reencarnação do xerife Ed Tom Bell, de No Country For Old Men, dos irmãos Coen: pelo mundo, o mal e a devastação triunfam mas o que deve ser feito tem de fazer-se. E, sem a menor sombra de sentimentalismo e um grau de virulência digno dos seus mais gloriosos instantes, ele mete mãos ao trabalho de inventariar os horrores e os facínoras e de os expor em toda a sua ignomínia.


Como que em irónica manobra de diversão, tudo começa com a chegada de um "slow train" vindo de Duquesne, cujo “whistle” apita “like the sky is going to blow apart”. O céu não explode mas, fiel ao que, citando o Shakespeare de Júlio César, anuncia em "Pay In Blood"  - “I came to bury not to praise” –, as imprecações e o "body count" nunca mais terão fim. É bem possível que as várias temporadas do programa de rádio semanal  (“Theme Time Radio Hour”) que Bob Dylan, entre 2006 e 2009, manteve na XM Satellite, lhe tenham apurado o gosto pelas formas e géneros musicais anteriores à época em que ele próprio mudou o curso da música popular. Porque, aqui, tudo opera em modo de bar de estrada possuído pelos vetustos espectros dos blues, do rockabilly, da country, do swing, do gospel, do vaudeville ouda folk mais encardida. 



Pegue-se em “Early Roman Kings”: ascendência em "Hoochie Coochie Man", de Willie Dixon, via Bo Diddley ("I’m A Man") ou Muddy Waters ("Mannish Boy"), com o acordeão de David Hidalgo no lugar da previsível harmonica e uma invectiva digna de "Masters Of War": “they’re peddlers and they’re meddlers, they buy and they sell, they destroyed your city, they’ll destroy you as well, they’re lecherous and treacherous, hell bent for leather, each of them bigger than all of them put together (…) I could strip you of life, strip you of breath, ship you down to the house of death”. Ou "Pay In Blood", riff-murro nos cornos e “Night after night, day after day, they strip your useless hopes away, (…) I’ve been through hell what good did it do? You bastard, I’m supposed to respect you? I’ll give you justice, I’ll fatten your purse, show me your moral virtue first, I’ll pay in blood but not my own”. Considerem-se ainda duas "murder ballads" ("Tin Angel" e "Scarlet Town"), uma derivação dos Mississipi Sheiks ("Narrow Way": “We looted and we plundered on distant shores, why is my share not equal to yours, your father left you, your mother too, even death has washed his hands of you”), a imensa canção-título (14 minutos de alucinações sobre o Titanic tomados de empréstimo à Carter Family) e, à excepção da dispensável evocação de John Lennon ("Roll On John"), podemos ficar certos que o álbum publicado 50 anos após o da estreia de Bob Dylan, é coisa tão indispensável como (quase) tudo o que veio depois de 1962.

1 comment:

Táxi Pluvioso said...

Está morto, enterre-se a expensas do contribuinte americano.