SIM. NÃO. É UMA CAROCHA.
No percurso entre o aeroporto e Oslo, os campos e as casas de madeira cobertos de neve desfilavam pela janela do comboio como um interminável postal de Natal. O centro da capital norueguesa, porém, poupado pela invernia, encontrava-se "militarmente" ocupado pelas tropas de infantaria do Rosenborg adequadamente fardadas para assistir à final da Taça da Noruega com o Trondheim. À mesma hora, entretanto, no interior do impressionante anfiteatro de betão que responde pelo nome de Spektrum, uma outra considerável parcela humana da cidade reunia-se para assistir à segunda etapa escandinava da digressão europeia dos Massive Attack. Será uma particularidade dos fãs nórdicos da banda de Bristol ou não. Mas a verdade é que a indumentária dominante constituia uma original combinação do tradicional "look" hip hop com os códigos "góticos" dominantes nos anos 80: rostos pálidos, olheiras maquilhadamente pronunciadas e negro, negro, negro, de alto a baixo, como sinal exterior de uma atitude soturna, ensimesmada e morbidamente séria. No fim de contas, faz todo o sentido. Se os próprios elementos do grupo hoje confessam (quando confessam, mas já lá iremos...) que a sua música tem uma imensa dívida tanto para com a cultura hip hop como em relação a tudo o que emergiu da "new wave" no início da década de 80, também não será demasiado extravagante encarar a sua editora, Melankolic, como uma espécie de 4AD dos anos 90: das gravações dos Alpha, ao sinfonismo sofisticado de Craig Armstrong ou às colaborações com Elizabeth Fraser, tudo aponta para a mesma direcção: os herdeiros do Wild Bunch que, no início da década, gravaram o crucial Blue Lines, agora levam-se mais a sério do que nunca.
E se esse álbum foi o Colossal Youth da recta final do século, neste momento eles parecem apostados em ficar conhecidos como os autores do Dark Side Of The Moon do pré-milénio. Não é possível colocar as coisas de outra forma: sob a imensa arquitectura aracnídea do palco do Spektrum — um labirinto de cabos, projectores e estruturas metálicas —, os temas de Mezzanine e do reportório anterior da banda adquiriram a "gravitas" solene e estatuária de uns Joy Division, deixaram-se contaminar pela filigrana barroca de uns Cocteau Twins da época de Treasure mas, sobretudo, aspirararam à dimensão operática de uma odisseia no espaço à maneira dos Pink Floyd quando eles exploravam o lado oculto da lua.
Abrindo com "Angel" (que introduz Horace Andy como elemento virtual do grupo) e passando pelos inevitáveis "Rising Son", "Teardrop", "Karmacoma", "Mezzanine", "Eurochild" ou "Inertia Creeps", tudo se desenvolve através de enormes distensões sonoras, tapetes de teclados à deriva por uma atmosfera de soturno ambientalismo, infinitas reverberações e distorções organizadas em torno de uma batida encorpada (aqui declinada numa modalidade de quase tribalismo místico que as eventuais coreografias expontâneas da assistência — mais "new age" do que hip hop — confirmavam) cuja finalidade parece ser fazer passar o trip hop à etapa evolutiva seguinte de épico sinfónico. Semi oculta por uma cortina de fumo e banhada numa floresta de focos luminosos lilaz, rosa, azul e vermelho, a música que Daddy G, Mushroom e 3D ofereceram em Oslo já não se compõe, como antes, de elegantes linhas azuis mas constroi-se sim à custa de amplas pinceladas negras.
Na noite de Oslo não seria possível chegar à fala com nenhum dos elementos do grupo. Originalmente marcada uma entrevista para Estocolmo e, à última hora, mudada para a Noruega onde, finalmente, deveria ter lugar, também aí o silêncio persistiu. Era o início de um excêntrico segundo acto que se preparava mas, nesse momento, ainda não era possível adivinhar verdadeiramente o que se seguiria. Como recurso (e demonstração de evangélica paciência, convenhamos...) combinou-se um contacto telefónico de Lisboa para a Dinamarca — onde a digressão prosseguiria — dois dias depois. Feita a ligação à hora definida, alguém informa do outro lado da linha que, afinal, o número não era aquele. Era preciso telefonar para o número do quarto onde a banda se encontrava e, então, falar com eles. Primeira tentativa e silêncio. Segunda e nenhuma resposta. Terceira, idem. Regresso ao número inicial e explicação incompreensível do outro lado segundo a qual o misterioso segundo telefone parecia não estar a funcionar. De qualquer modo, que tentasse outra vez. Dito e feito. Silêncio sepulcral. Deus é grande e a tolerância de alguns de nós ainda maior. De volta ao primeiro telefone e o embaraçado interlocutor propõe um adiamento. Impossível. O jornal tem de fechar e ou se faz hoje ou não há entrevista. E, já agora, por que razão não se pode realizar a entrevista nesse telefone? Pânico surdo do lado de lá da linha: "Sabe, é que esta é uma sala cheia de gente (no auscultador nem um suspiro se ouvia...) e aqui não dá muito jeito... Mas dê-me o seu número que eu vou tentar arranjar qualquer coisa e já lhe telefono". Longuíssima pausa até o telefone voltar a tocar. Mas tocou. "Está aqui o Andrew para falar consigo". E, então, o Andrew, digamos assim, falou. Exactamente da forma que segue, estabelecendo, decerto, um qualquer novo máximo para o Guiness.
Entre Blue Lines e Mezzanine, a música dos Massive Attack modificou-se consideravelmente. Vista do interior da banda como é que essa evolução se processou?
Não sei. Deve ter sido por tocarmos instrumentos ao vivo.
Foi apenas isso que aconteceu?
Foi.
Mas, no princípio, tinham objectivos musicais diferentes dos que têm agora...
Não.
De qualquer modo, os resultados são muito diferentes. Em Blue Lines a música era muito menos densa e monumental do que agora...
Saíu assim.
Nas apresentações ao vivo tentam recriar de outro modo o que gravaram em estúdio?
Ambas.
Como?!!!...
Sim.
Não lhe está a apetecer muito falar, pois não?...
Está.
Ok, então eu continuo. Li algures que sentem dever tanto à cultura hip hop como a bandas do início dos anos 80, caso dos Joy Division, Wire, Cure, Slits. Como é que procedem para combinar estilos musicais tão diferentes?
É o nosso trabalho.
Mas, quando escrevem uma canção, como é que esses elementos se articulam?
Não faço ideia. Trabalhamos.
Muito bem... O facto de terem convidado Liz Fraser para cantar em Mezzanine deveu-se exclusivamente a apreciarem o timbre vocal dela ou isso indica que os Cocteau Twins são também uma dessas bandas que vos influenciaram?
Sim.
A silhueta da aranha na capa de Mezzanine tem algum significado especial?
Interprete você.
Mas não tem uma interpretação sua?
É uma carocha.
Os discos que publicam na Melankolic procuram seguir uma determinada linha estética?
É música boa.
Só isso?
Sim.
O alinhamento do concerto de Lisboa vai ser idêntico ao de Oslo?
Não.
Importava-se muito de me dizer qual a diferença?
Vai ser maior.
Maior como?
Sim.
Então, muito boa noite.
Foi mesmo só isto? Sim, foi. O Andrew teria tomado qualquer coisa que lhe caiu mal? Não sei. Qual a verdadeira razão? Interpretem vocês. (1998)
No comments:
Post a Comment