IT'S NOT GOING TO STOP
Magnolia (BSO) - Aimee Mann/Jon Brion/Vários
High Fidelity (BSO) - Vários
Não será propriamente o "prato do dia" mas também já não é uma novidade absoluta (pelo menos, desde o motivo de harmónica de Once Upon A Time In The West) a banda sonora de um filme ser algo mais do que um sublinhado de fundo classicamente ilustrativo de tempo e lugar, dispositivo de intensificação da espessura dramática, alusão sonora insistentemente colada a determinados acontecimentos e personagens ou mero efeito de continuidade entre cenas. Mesmo assim, ainda não é muito frequente uma narrativa cinematográfica ser totalmente determinada pela partitura que a acompanha ou, literalmente, materializar musicalmente um universo privado de obsessões quase patológicas. Mas é, justamente, o que se passa com as bandas sonoras de Magnolia e High Fidelity.
Paul Thomas Anderson — realizador do fabuloso pesadelo que é Magnolia — confessa nas "liner notes" do CD que todo o argumento foi escrito a partir da personagem de Claudia (Melora Walters), que a sua linha de diálogo definidora "Now that I've met you, would you object to never seeing me again?" foi subtraída ao texto de uma das canções de Aimee Mann ("Deathly") que integram a quase totalidade da banda sonora e acrescenta "por isso, qualquer pessoa poderia tirar as suas conclusões e compreender que todas as histórias derivam do cérebro da Aimee e não do meu". Seria só um exemplo daquilo a que a sua condição de fã e amigo de Aimee o obriga (como ele próprio, linhas antes, reconhece afirmando "that said, I will proceed to shine her shoes"...) se a relação entre imagens, narrativa e música do filme não o confirmasse por inteiro.
Devastadora panorâmica do fim do mundo (o mundo humano das emoções "simples" e "naturais", o mundo "cristão" das relações "fraternas" e das "instintivas" solidariedades "familiares", o mundo social "civilizado" e "moderno", o "objectivo" mundo contemporâneo dos media predadores e do aterrador vazio essencial), com esclarecedora e apocalíptica praga bíblica de dilúvio de sapos inevitavelmente incluido, Magnolia não deixa pedra sobre pedra. E não será, certamente, por acaso que o discurso do infame demiurgo vitorioso e criador da imunda matéria do mundo tenha sido sadicamente entregue à banda sonora que se encarrega de distribuir literal e circularmente pela boca das várias personagens a condenação final de "Wise Up" iniciada no Génesis ("It's not what you thought when you first began it, you got what you want, now you can hardly stand it, though, by now you know it's not going to stop, it's not going to stop, it's not going to stop", sabendo-se, pela negra ironia da História, que o género humano, "divinamente criado", dificilmente, alguma vez, será capaz de "wise up") e, agora, concluida pelo desesperadamente irremediável "so just give up". Complementado pela ilusória súplica patética da magnificamente costelliana — como todas as outras — "Save Me" ("You struck me down, like radium, like Peter Pan, or Superman, you will come to save me from the ranks of the freaks who suspect they could never love anyone").
É precisamente dos "ranks of the freaks who suspect they could never love anyone" que nasce High Fidelity. "Freaks" que, tal como o enganador sorriso de Claudia (onde, significativa e muito pouco ortodoxamente, a banda sonora de Aimee Mann submerge o diálogo), no plano final de Magnolia, ainda acreditam muito vaga e ingenuamente que existe alguma salvação para o mundo. Acontece o mesmo no livro homónimo de Nick Hornby (e no filme de Stephen Frears) onde o mundo gira entre figuras que habitam verdadeiramente no interior de "compilation tapes" das melhores canções para manhãs de domingo, inúmeros "top fives" de rupturas com namoradas, temas perfeitos para acompanhar cerimónias fúnebres, citações dos Smiths, de Marvin Gaye e de Richard Thompson, raridades de Captain Beefheart, planos rápidos sobre capas de Tropicália, de Solomon Burke ou dos Iron Butterfly, roubos aleatórios de Serge Gainsbourg por jovens "skaters" cleptomaníacos, histórias de amor iniciadas por obra e graça de um tema "neo-punk" com benção dos Stiff Little Fingers e fundo sonoro dos Stereolab ou colecções de vinis raríssimos organizadas por ordem "autobiográfica" com rigorosísssima enunciação dos títulos (um "the" a menos ou a mais e era a morte). Esse desgraçado mundo onanista existe mesmo (eu sei, estive lá, mas curei-me) e é só outro sintoma da terminal patologia que substitui a realidade — que, como sabemos, não existe ou nunca seremos capazes de conhecer — por uma outra ficção. Musical. Aquela mesma ficção da "torch song" eterna de que Paul Thomas Anderson fala quando escreve "Por que raio alguém haveria de me amar? Como poderia alguém amar-me?" ou, o velho clássico "Porque amaria eu alguém se tudo acaba irremediavelmente em tortura?". O final (fisicamente extraido da matéria negra circundante de Thirteenteth Floor Elevators, Kinks, Velvet Underground, Love, Bob Dylan, Beta Band, Elvis Costello, Smog, Stereolab, Royal Trux, a "abominação" de Stevie Wonder e infinitas outras doenças que nem sequer figuram no disco) não oferece nenhuma solução. Ainda que pareça. Pela simplicíssima razão de que, se calhar, para os casos terminais, não há qualquer salvação. Mesmo para aqueles que acreditam na "hopeful lie that it's just around the bend". Aimee Mann dixit. (2000)
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