ANSIOLÍTICOS DE NATAL
Cerca de 2000 anos depois do surgimento do mito cristão (aquele mesmo sobre o qual o venerável papa Leão X — aliás, Giovanni di Medici — terá confessado ao seu secretário Pietro Bembo "muito útil nos tem sido esta fábula de Cristo"), já deveria ser do conhecimento comum que, entre 25 de Dezembro e 6 de Janeiro, se revive apenas o mais recente culto de mistérios de entre os muitos que, bem antes do cristianismo, celebravam Homens-Deuses (Osíris, Diónisos, Atis, Adónis, Mitra), nascidos de virgens, em grutas, por altura do solstício de Inverno, anunciados por estrelas, capazes de operar extraordinários milagres, crucificados, mortos e renascidos no início da Primavera. E que se, nas próximas semanas, mergulharemos, mais uma vez, no que já conhece a designação clínica de "stress natalício", isso o devemos ao imperador Constantino, com uma importante mãozinha das confederações do comércio e indústria de todo o mundo.
Sufjan Stevens, o genial Brian Wilson-de-brincar, inesgotável e hiperactivo, é um moço cristão mas, nesta caixa de cinco EP (42 canções e uma animação video), cinco autocolantes, poster/banda-desenhada desdobrável e booklet de 40 páginas com textos e acordes de todas as canções, um conto de Rick Moody e outro dele próprio (o Pai Natal ganha poderes sobrenaturais ao cruzar-se com uma ogiva nuclear quando sobrevoa a Coreia do Norte), numa pequena autobiografia acerca da neurose familiar do Natal, conta como, só desde 2001, conseguiu ultrapassar o trauma através da terapia de gravar cada um dos EP agora reunidos. Fiquemos-lhe eternamente gratos: este luminoso carrocel de "Christmas classics" (ou nem tanto), tradicionais, peças do século XV e originais seus ("I don't care about what you say Santa Claus, you're a bad brother breaking into peoples garages") à deriva por uma galáxia de fogo de artifício contribuirá decisivamente para uma mais tolerável depressão.
Porque, ou é ele ou One More Drifter In The Snow, de Aimee Mann, que teve exactamente a mesma sábia ideia de investir no mercado dos ansiolíticos musicais para a quadra, adoptando, segundo ela, "os modelos de Johnny Mathis, Mel Thorme, Sinatra ou Julie London". Sem, no entanto, abdicar de, no único tema seu ("Calling On Mary"), espirrar uma subtil heresia: "She offered sight to the blind, but I'm not the miracle kind". (2006)
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