15 October 2019

HUMANO, DEMASIADO HUMANO

  
Façamos o esforço de acreditar que tudo se passou realmente assim, tudo foi espontâneo, nada foi encenado nem planeado: a 23 de Setembro, no blog “The Red Hand Files” – criado por Nick Cave há um ano para, sob o lema “You can ask me anything. This will be between you and me. Let’s see what happens”, estabelecer uma relação mais íntima e directa com os seus seguidores –, o Joe, de Bexhill-on-Sea (a uma hora de comboio de Brighton, onde Cave habita), casualmente, perguntou-lhe quando poderíamos esperar um novo álbum. E a resposta veio rápida e precisa, como um “press release”: “Caro Joe, pode contar com ele na próxima semana. Chama-se Ghosteen. É um álbum duplo. A primeira parte inclui oito canções. A segunda consiste de duas canções longas articuladas por uma peça de spoken word. As canções do primeiro álbum são os filhos. As do segundo são os pais. Ghosteen é um espírito migrante”. O Joe terá sufocado de felicidade mas ainda não suspeitava que, para além desse anúncio surpresa, contra todas as regras, não haveria singles prévios nem cópias enviadas antecipadamente para os media: o álbum iria ter uma estreia global, em directo, via YouTube, na noite de quinta-feira, 3 de Setembro.



Durante todo esse dia, até às 22 horas, apenas a imagem muda da capa: uma representação "kitsch" do Jardim do Éden, do “gospel artist”, Tom DuBois (“O artista visual não tem desculpa para não ser um crente convicto. (...) É simplesmente impossível não estar apaixonadamente inspirado na criação de obras que exaltem a glória de Deus em nome de Jesus Cristo”, escreve ele no seu site). Horas antes, a caixa de comentários/chat começava a fervilhar de actividade. Expectativa, ansiedade, veneração, e os inevitáveis "trolls", num "scroll" ininterrupto, que iria acelerar vertiginosamente a partir do instante em que os sintetizadores de Warren Ellis levantam voo e, pouco depois, abrem espaço para a voz de Nick Cave – muito mais "sprechgesang" do que verdadeiro canto – nos narrar uma parábola, algures entre o Génesis e Graceland (“Once there was a song, the song yearned to be sung, it was a spinning song about the king of rock’n’roll, the king was first a young prince, the prince was the best, with his black jelly hair he crashed onto a stage in Vegas, the king had a queen, the queen's hair was a stairway, she tended the castle garden, and in the garden planted a tree”), que se conclui com um lancinante apelo: “Peace will come, a peace will come, a peace will come in time, a time will come, a time will come, a time will come for us”


Não poderíamos, então, ainda adivinhar mas tivera início uma longuíssima canção de 68 minutos em que cada um dos 11 pontos de paragem não chegariam a ser sequer diferentes andamentos – o tom, a atmosfera, a dinâmica, permaneceriam praticamente inalteradas até ao fim – mas apenas pausas de respiração, mudanças de página, numa espécie de sonho febril, que, qual monumental sequela de Skeleton Tree (2016), vive assombrada pela devastadora morte do filho adolescente (“ghost teen”), Arthur, em 2015, cuja imagem e memória reaparecem a todo o momento, mesmo quando, aparentemente, ausentes. Já há três anos, com esse álbum mas também com One More Time With Feeling, o documentário de Andrew Dominik que o acompanhava, tínhamos reparado: o Nick Cave que, por altura de Nocturama (2003) declarava “Os sentimentos estão muito sobrevalorizados e preocupamo-nos demais com a forma como nos sentimos. Os sentimentos são um conceito do final do século XX. E suspeito que, à medida que o século XXI for avançando, os sentimentos irão ter muito pouco a ver com tudo. Os sentimentos são um luxo dos ociosos”, já não existe. Aquele que sobreviveu à arrasadora tempestade emocional é o que confessa que “aprendeu a ver as pessoas de uma forma diferente e a ter uma total e absoluta compreensão acerca do que sentem”,




Aqui, como em Ghosteen, cresce, no entanto, um feixe de contradições ainda mais evidentes na “troca de correspondência” de “The Red Hand Files”: se, em Outubro de 2018, à Cynthia, de Shelburne Falls, na Virginia, que lhe perguntava se ele não sentia o mesmo tipo de comunicação com Arthur que ela acreditava ter com os familiares que perdera, responde que “No interior dessa vertigem, nasce todo o tipo de loucuras, fantasmas, espíritos e visitações em sonhos, tudo o que, na nossa angústia, tornamos realidade. (...) São dádivas preciosas, tão válidas e autênticas quanto precisamos que sejam. São os espíritos guia que nos conduzem para fora das trevas”, em Agosto passado, à Aylyn, de Bruxelas (que lhe dirigia interrogação idêntica) – embora admitindo que “o desejo de acreditar em algo para além de nós é uma função humana básica” –, citando Richard Dawkins, Sam Harris e Bertrand Russell, sublinhava que “crer em espíritos” é “delirante”,“intelectualmente desonesto”, “irracional”, “cobarde” e “estúpido”.


Humano, demasiado humano, é com este novelo de fragilidades que tem de lidar em Ghosteen. Excessivamente próximo e vivido para – como era o caso de Murder Ballads (1996) – não ser levado totalmente a sério (mas aquela capa de Tom DuBois...), não é tarefa fácil digerir este denso concentrado de alusões bíblicas (“I can hear the whistle blowing, I can hear the mighty roar, I can hear the horses prancing in the pastures of the Lord”; “It isn’t any fun to be standing here alone with nowhere to be, with a man mad with grief and on each side a thief, and everybody hanging from a tree”; “Jesus lying in his mother’s arms is a photon released from a dying star”; “A man called Jesus promised he would leave us with a word that would light up the night”), aqui e ali, pontuado por platitudes embaraçosas (“Everything is distant as the stars, and I am here, and you are where you are”; “I love my baby and my baby loves me”; “This world is beautiful, the stars are your eyes, I loved them right from the start”; “You were a runaway flake of snow, you were skinny and white as a wafer, yeah, I know“) onde nem sequer faltam os três ursinhos da Goldilocks (“Mama bear holds the remote, papa bear, he just floats, and baby bear he has gone to the moon in a boat”), e sempre, sempre, envolvido pelos corais digitais e pela gaze sonora, quase "new age", de Warren Ellis. Na caixa de comentários do YouTube, os fãs dividiam-se entre tratar-se de uma “ethereal masterpiece”, matéria de transcendência, uma herança tardia de Vangelis, Pink Floyd, Badalamenti ou dos Sigur Rós ou, simplesmente, cansativo, aborrecido e decepcionante. É bem capaz de ser um pouco de tudo isso. Mas Nick Cave merece, pelo menos, que deixemos o pó assentar antes de proferirmos um juízo definitivo.

3 comments:

Jaime Palha said...

Não se mudou para LA, entretanto?

João Lisboa said...

Suponho que (ainda) não.

alexandra g. said...

A verdade é que ele endureceu, mas reage, continua a reagir.
A isto, chama-se um guerreiro.