19 August 2012

ÁGUA E AZEITE


Dirty Projectors - Swing Lo Magellan
     
David Longstreth é o tipo que, como quem fala do tempo, explica que a súbita aparição orquestral a meio de "Dance For You" é apenas ele “a tentar compreender como raio o Ligeti, em Atmosphères, conseguiu extrair aquelas texturas insanas e futuristas de uma orquestra igualzinha às do século XIX”. E que, a seguir, revela que vê  na ponte de "About To Die" “uma pobre filha bastarda de Verklärte Nacht, do Schoenberg”, através da qual procurou atingir a mesma sensação “macabra, mórbida e aterradora” para que também Monster, de Kanye West, e Thriller, de Michael Jackson, contribuiram enquanto catalizadores. Ah, e ainda em "Dance For You", a guitarra e as cordas têm uma dívida a pagar a "Mambo Sun", dos T. Rex. Para não falar da conta calada que deverão somar os empréstimos pedidos aos Run DMC, NWA ("Gun Has No Trigger"), Nirvana e Lil Wayne ("Offspring Are Blank"), Peter, Paul & Mary ("Just From Chevron") e Neil Young ("Irresponsible Tune"). Estamos, então, perante o quase perfeito protótipo de banda retromaníaca de que falava Simon Reynolds?


     
Errado. Erradíssimo. Embora de forma completamente diferente, poderá tratar-se, sim, de caso idêntico ao dos Field Music: outro exemplo acabado de que a aventura prog não devia, inevitavelmente, ter acabado em tragédia. Só mais uma espreitadela pelo buraco da fechadura do cérebro de Longstreth: em Abril passado, na página online da Brown University, de Providence, descobria-se que, a pedido de David Longstreth, Willis Monroe e Zack Wainer, estudantes de Assiriologia, se haviam dedicado a traduzir "Gun Has No Trigger" para acadiano, tendo Monroe gravado o texto em escrita cuneiforme. Qual a razão? Exactamente a mesma que para o "cameo" de Ligeti em "Dance For You": “Tenho uma enorme curiosidade em relação a imensas coisas. Sou um estudante. E intriga-me o problema e a dificuldade da tradução para idiomas que não existiam há milhares de anos”.


     
Chegámos ao ponto: aquilo de que a música dos Dirty Projectors se ocupa é de, sob um ângulo que tem tanto de calculado como de "stream of consciousness" – nas melodias, nos textos, nos arranjos, na instrumentação –, traduzir para uma linguagem ainda sem nome, inúmeros fragmentos da história sonora (mais ou menos) recente, apostando tudo no que, por aí, se ganha e se perde, autorizando e encorajando uma estratégia de construir edifícios aparentemente destinados ao colapso. Como quem insiste em misturar água e azeite... e consegue. Poderia ser outra qualquer mas a pérola "See What She Seeing" é assaz esclarecedora: burburinho rítmico de "drum’n’bass" de vão de escada (na verdade, caixa de guitarra acústica percutida) para um lado, voz solista e coros daquele recorte “africano” que Paul Simon e os Vampire Weekend preferem para outro, riff curvo para cima, secção de cordas para baixo, e, algures, ninguém será capaz de garantir exactamente onde, aparece uma canção. Sem esforço evidente, o fulano que escutava os álbuns dos Beatles, primeiro, na coluna direita e, depois, na esquerda, e mais óbvio candidato a Zappa contemporâneo com sensibilidade pop (não excluir, à cautela, a hipótese tUnE-yArDs), salta do "high life" para o psicadelismo à la Jefferson Airplane, de "Strawberry Fields" para “the kind of silence that can swallow sound”, do esgotamento nervoso sónico para erráticas canções-origami e, no processo comandado por uma ideia – “You’d see a million colours if you really looked” –, após o já magnífico Bitte Orca (2009), inventa música como nunca antes a havíamos ouvido.

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