ÁGUA E AZEITE
Dirty Projectors - Swing
Lo Magellan
David Longstreth é o tipo que, como quem
fala do tempo, explica que a súbita aparição orquestral a meio de "Dance For
You" é apenas ele “a tentar compreender como raio o Ligeti, em Atmosphères,
conseguiu extrair aquelas texturas insanas e futuristas de uma orquestra
igualzinha às do século XIX”. E que, a seguir, revela que vê na ponte de "About To Die" “uma pobre filha
bastarda de Verklärte Nacht, do Schoenberg”, através da qual procurou atingir
a mesma sensação “macabra, mórbida e aterradora” para que também Monster, de
Kanye West, e Thriller, de Michael Jackson, contribuiram enquanto
catalizadores. Ah, e ainda em "Dance For You", a guitarra e as cordas têm uma
dívida a pagar a "Mambo Sun", dos T. Rex. Para não falar da conta calada que
deverão somar os empréstimos pedidos aos Run DMC, NWA ("Gun Has No Trigger"),
Nirvana e Lil Wayne ("Offspring Are Blank"), Peter, Paul & Mary ("Just From Chevron") e Neil Young ("Irresponsible Tune"). Estamos,
então, perante o quase perfeito protótipo de banda retromaníaca de que falava
Simon Reynolds?
Errado. Erradíssimo. Embora de forma
completamente diferente, poderá tratar-se, sim, de caso idêntico ao dos Field
Music: outro exemplo acabado de que a aventura prog não devia, inevitavelmente, ter acabado em tragédia. Só mais uma
espreitadela pelo buraco da fechadura do cérebro de Longstreth: em Abril
passado, na página online da Brown
University, de Providence, descobria-se que, a pedido de David Longstreth,
Willis Monroe e Zack Wainer, estudantes de Assiriologia, se haviam dedicado a
traduzir "Gun Has No Trigger" para acadiano, tendo Monroe gravado o texto em
escrita cuneiforme. Qual a razão? Exactamente a mesma que para o "cameo" de Ligeti em "Dance For You":
“Tenho uma enorme curiosidade em relação a imensas coisas. Sou um estudante. E
intriga-me o problema e a dificuldade da tradução para idiomas que não existiam
há milhares de anos”.
Chegámos ao ponto: aquilo de que a música
dos Dirty Projectors se ocupa é de, sob um ângulo que tem tanto de calculado
como de "stream of consciousness" – nas
melodias, nos textos, nos arranjos, na instrumentação –, traduzir para uma
linguagem ainda sem nome, inúmeros fragmentos da história sonora (mais ou
menos) recente, apostando tudo no que, por aí, se ganha e se perde, autorizando
e encorajando uma estratégia de construir edifícios aparentemente destinados ao
colapso. Como quem insiste em misturar água e azeite... e consegue. Poderia ser
outra qualquer mas a pérola "See What She Seeing" é assaz esclarecedora:
burburinho rítmico de "drum’n’bass" de
vão de escada (na verdade, caixa de guitarra acústica percutida) para um lado,
voz solista e coros daquele recorte “africano” que Paul Simon e os Vampire
Weekend preferem para outro, riff curvo para cima, secção de cordas para baixo,
e, algures, ninguém será capaz de garantir exactamente onde, aparece uma
canção. Sem esforço evidente, o fulano que escutava os álbuns dos Beatles,
primeiro, na coluna direita e, depois, na esquerda, e mais óbvio candidato a
Zappa contemporâneo com sensibilidade pop (não excluir, à cautela, a hipótese tUnE-yArDs),
salta do "high life" para o
psicadelismo à la Jefferson Airplane,
de "Strawberry Fields" para “the kind of silence that can swallow sound”, do
esgotamento nervoso sónico para erráticas canções-origami e, no processo
comandado por uma ideia – “You’d see a million colours if you really looked” –,
após o já magnífico Bitte Orca (2009), inventa
música como nunca antes a havíamos ouvido.
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