ESTILHAÇOS
Amadeus (1984), de Milos Forman – vertendo para o cinema a peça homónima de Peter Shaffer –, dificilmente poderia conter maior número de imprecisôes históricas e efabulações fantásticas acerca da biografia de Mozart. Mas isso não o impediu de se tornar no retrato eventualmente mais revelador do precoce génio musical de Viena (aliás, Praga, no filme), capaz, por exemplo, de nos fazer adivinhar que o autor do avassalador Requiem era exactamente o mesmo de peças tão desabridas como o canone “Leck Mich Im Arsch” (traduzindo, preventivamente, em inglês, “Lick My Ass”). Florence Foster Jenkins, de Stephen Frears, é, sem dúvida, infinitamente mais fiel à história real da celebrada “pior cantora que alguma vez pisou o palco do Carnegie Hall” do que Marguerite, de Xavier Giannoli, que, confessadamente, apenas “se inspirou” nela. E não somente isso: mudou-lhe o nome (subtraído a Margaret Dumont, uma partenaire dos irmãos Marx), a nacionalidade (de norte-americana para francesa) e convidou-a a recuar duas décadas (dos anos 40 para os 20 do século passado). Ao fazê-lo, porém, não se limitou a evitar a armadilha do "biopic": libertou um imenso espaço para a criação de uma personagem paralela, que, através de Marguerite Dumont, permite ver muito para além de Florence.
Se, na (brilhante) encarnação de Meryl Streep, ela é quase só uma extravagante, patética e tragicómica burguesa rica, espécie de avestruz ululante e "clown" involuntário da boa sociedade nova-iorquina, a baronesa Dumont, de Giannoli, ainda que não menos trágica, abre um portal sobre um outro universo no qual a Paris dos dadaístas, a encara enquanto porta-estandarte da profanação das soirées burguesas e protagonista de actos de provocação com a ‘Marselhesa’ em fundo, destinados, como diria Marcel Janco, a “chocar o bom senso, a opinião pública, as instituições, os museus, o bom gosto, em suma, toda a ordem vigente”. Mal ouviu uma gravação de Jenkins, Giannoli pensou imediatamente “que se tratava de uma performance artística, reflecti sobre o que era a arte e o absurdo. Fugir aos códigos aceites do que é belo não é uma forma de desconstrução, um estilhaço dadaísta? Será mais importante cantar com afinação perfeita ou investir totalmente no desejo (até no delírio) mesmo que se cante mal?” Há-de ser por esse motivo que nos recordaremos sempre do filme de Frears como uma história excêntrica muito bem contada mas Marguerite nos deixará a pensar no “rugido de cores tensas, o abraço de opostos, contradições, grotescos e inconsistências” de Tristan Tzara.
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