26 March 2019

DUAS VEZES POR ANO


“Os Go-Betweens nunca foram aquele tipo de banda que, quando se anda de táxi, de repente, no rádio, depois de Madonna, Bon Jovi ou Michael Jackson, se escuta uma canção nossa. Pode dizer-se que fomos preservados em relação a tudo isso, nunca tocámos para multidões. Mas a nossa música perdurou. Há dois anos, Kriv Stenders, um fã dos Go-Betweens, realizou um documentário sobre nós (Right Here). Há bandas australianas muito mais populares sobre as quais nunca foi feito um documentário”, diz Robert Forster, músico, escritor, jornalista, aspirante a actor e co-fundador com Grant McLennan de uma das maiores preciosidades da Austrália. Com o sétimo (e óptimo) álbum a solo, na mala, para apresentar. 

    Numa entrevista recente, disse uma coisa belíssima mas que, ao mesmo tempo, poderia tornar-se um constrangimento: “O Grant McLennan estabeleceu um padrão que eu não posso nem quero apagar”. Esse desejo de lealdade não acabará por limitá-lo? 

Não, escrevo como entendo dever fazê-lo. Trabalhámos juntos durante tanto tempo que sei perfeitamente o que as minhas canções e as dele tinham de bom. Exigíamo-nos mutuamente um nível elevado. Mas isso nunca constituiu nenhuma limitação: posso escrever sobre o que quero, gravar em Berlim ou Lisboa. É apenas um alerta para não deixar de continuar a escrever boas canções. 


    Uma outra afirmação sua fez-me pensar em algo que o Leonard Cohen costumava dizer... 

Que início de pergunta tão bonito... 

    Por ter referido Leonard Cohen? 

Não, por tê-lo colocado a ele e a mim na mesma frase!... (risos)

    Ele dizia que demorava eternidades a concluir uma canção e que invejava quem era capaz de as escrever durante uma viagem de táxi. O Robert confessava que precisava de 4 ou 5 anos para escrever 10 canções... 

Se fosse possível comparar-me com Leonard Cohen, a semelhança seria que, tanto ele como eu, escrevemos muito, muitas palavras, posso escrever durante um dia inteiro. O Leonard Cohen não era um músico fantástico mas tinha um estilo de tocar particular. O mais difícil, para mim, são as melodias, é por isso que escrevo pouco mais de duas canções por ano: desejo que sejam fortes, originais, preciso de gostar delas. 

    Deita fora muitos esboços de canções? 

Sim, muitos. Se não são suficientemente boas, se sinto que são semelhantes a outras que ouvi antes, se não me parece que apontem uma direcção para o que farei a seguir. Pessoas como o Grant ou o Paul MacCartney são capazes de criar, continuamente, melodias. Comigo só acontece duas vezes por ano. (risos)


    Não é uma coisa de agora mas, acerca deste seu último álbum, tenho visto muito mais referências do que o habitual relativamente à influência de Lou Reed e dos Velvet Underground... Concorda? 

No que diz respeito à produção do disco, talvez. Já me disseram que soa como um álbum do Lou dos anos 70. Para mim, isso é um elogio. Uma coisa que o Lou Reed e eu temos em comum é que as nossas vozes têm uma tessitura muito limitada. 

    Daí, terem uma expressão quase mais falada do que cantada, aquilo a que, em alemão, se chama "sprechgesang"... 

Exactamente, "sprechgesang". Aliás, tal como o Leonard Cohen. O que tem como consequência que os textos se tornem muito mais importantes.

    Talvez mais do que em qualquer altura anterior, os Go-Betweens são nomeados como referência para novas bandas e, em algumas – como os Rolling Blackouts Coastal Fever ou os Goon Sax, do seu filho, Louis –, isso é bastante evidente. Chegou o momento de deixarem uma linhagem? 

É verdade que, nos últimos 10 ou 15 anos, tenho reparado que há cada vez mais gente a apreciar os Go-Betweens e a dizer que esta ou aquela banda tem algo de nós. Claro que é agradável ler isso. É um pouco como acontecia no final dos anos 70 quando alguém dizia que um grupo fazia lembrar os Byrds e nós íamos a correr tentar descobrir de que estavam a falar. Recordo-me bem de como isso era importante para mim quando era jovem. 

    Quando escrevi sobre o álbum dos Rolling Blackouts, tinha acabado de ler as suas memórias, Grant & I onde caracteriza os Go-Betweens como “um ovo de Fabergé”. Pensei que seria apropriado chamar-lhes “um ovo de Fabergé gigante” uma vez que me pareceu tratar-se de uma enorme ampliação do modelo e da sonoridade dos Go-Betweens... (risos) 

Gosto imenso deles, vi-os no ano passado em Berlim. 

    E, com os Goon Sax, essa sensação de paternidade estética é duplamente notória, apesar de o Louis garantir que nunca escutou nenhuma canção dos Go-Betweens... 

Ele disse-me que foi incorrectamente citado. É verdade que não ouvíamos muito os nossos discos em casa mas ele estava presente quando eu escrevia as canções. O processo de constituição dos Goon Sax foi muito natural. Por volta dos 14 ou 15 anos, o Louis tinha estado noutra banda com o James Harrison. Eles os dois começaram os Goon Sax e uma amiga, a Riley, disse-lhes que estava a aprender bateria e perguntou se podia tocar com eles. Foi apenas isso. Claro que faz pensar nos Go-Betweens mas foi apenas uma coincidência. Houve uma altura em que o Louis dizia que, embora a banda soasse muito bem, queria tocar com quatro músicos em vez de apenas com aqueles dois para que não lhe viessem dizer que estava a imitar a banda do pai. Mas desistiu dessa ideia. Seja como for, eles têm apenas 20 anos e, de certeza, vão ainda mudar muito. 


    
    Porquê colocar como primeira faixa de Inferno um poema de Yeats, "Crazy Jane on the Day of Judgement"? Fazer parte de uma colecção de poemas chamada Words For Music Perhaps, teve alguma importância? 

É muito, muito difícil musicar a poesia do Yeats. Não tem absolutamente nada a ver com a canção pop ou o rock. Mas, há quatro anos, em Dublin, houve uma celebração do 150º aniversário de Yeats. Convidaram-me a participar juntamente com outros autores de canções de todo o mundo e enviaram-me alguns poemas para eu escolher. Semanas antes, tinha escrito uma melodia que combinava perfeitamente com este poema. Quando a cantei em Dublin foi muito bem recebida, por isso, decidi incluí-la no álbum. Pareceu-me uma excelente introdução até porque a minha voz não surge senão cerca de 30 segundos após o início. 

    Uma das coisas que disse à “Uncut” é, para mim, uma verdade absoluta: “Os livros fazem-nos bem à saúde”. Pouco depois, quando estava a pensar nesta entrevista, descobri um vídeo em que uma sobrevivente do Holocausto com cem anos contava como os livros e a leitura a tinham ajudado, literalmente, a salvar vidas no gueto de Varsóvia.  

Exacto. A verdade é que, às vezes, nem sequer preciso de ler os livros. Basta que estejam ali a fazer-me companhia, todas aquelas vozes a falarem comigo. No meio do ruído de uma cidade, se entro numa livraria, sinto imediatamente que algo, ali, está a fazer-me bem. Quanto mais vertiginosa a vida se torna mais penso que ler é um acto subversivo, totalmente contra a velocidade a que vivemos, um gesto radical.


    Em Grant & I, uma das memórias mais divertidas é aquela de, na sua primeira viagem a Londres, quando trabalhava no arquivo de radiologia do St. Mary’s Hospital, ter roubado uma radiografia ao joelho do realizador Nicolas Roeg e isso ter sido o mais perto que alguma vez chegou da indústria cinematográfica britânica...  

(risos) O Grant e eu tínhamos visto os filmes dele na Austrália e estar, de repente, com as radiografias do Nicolas Roeg na mão foi um momento espantoso!... 

    Ainda sonha realizar um filme? 

Isso era mais o sonho do Grant. Eu adorava participar num filme como actor. 

    Mas já existe um velho actor com o seu nome que o Tarantino ressuscitou em Jackie Brown... 

Eu sei!... 

    E quem seria o realizador? 

Se pudesse viajar no tempo, seria o Billy Wilder. Actualmente, gosto muito de Paweł Pawlikowski, o realizador polaco de Cold War. Mas teria de ser um filme europeu. Provavelmente, alemão. Como falo um bocadinho de alemão poderia representar uma personagem que falasse alemão... e inglês.

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