O SILÊNCIO E O ESPAÇO
Em Fevereiro de 1999, Ricardo Camacho, numa
conversa numerologicamente peculiar a propósito de O Sexto Sentido (sexto –
incluindo o live, Auto de Fé, de
1994 – e último álbum da Sétima Legião), travada num sexto andar da Rua de
Campolide entre seis interlocutores, garantia que “este e o primeiro álbum são,
provavelmente, os nossos dois discos mais homogéneos”. E defendia-o explicando
que “no fundo, é como se todo o disco fosse uma música só. A ironia é que,
contra a vontade colectiva (deve ser uma das poucas coisas que nos unem),
acabámos por chegar ao álbum conceptual!”. Camacho – que, para além de médico,
já fora também crítico de música e confessava, por vezes, compor a partir de
textos críticos sobre discos que não ouvira – não poderia fazer uma
autoavaliação mais acertada: se a totalidade da discografia da Sétima Legião
deve ser classificada no patamar superior da pop portuguesa da segunda metade
do século XX, A Um Deus Desconhecido (1984) e O Sexto Sentido são as duas colunas
sobre que assenta tão elegantíssima ogiva. E, agora que a obra integral de
estúdio do grupo volta a estar disponível, não haverá mais oportuno pretexto,
não apenas para a fazer conhecer junto de desatentos e infiéis, como para lhe
traçar mais nitidamente o perfil.
A verdade é que tanto o álbum de estreia
como o derradeiro – que, por muito boas razões, esteve para se chamar “Nações
Unidas” –, ainda que de forma absolutamente diferente, acabaram por obedecer a
um mesmo princípio: abdicar de tudo o que fosse inútil e supérfluo e guardar
apenas o estritamente essencial. Daí que, embora a ambição que gerou O Sexto
Sentido fosse enorme (edificar um quase cinemático painel sonoro em torno de
uma ficção sobre o universo da tradição popular portuguesa construída sobre samples de recolhas etnográficas de
Michel Giacometti, apontamentos avulsos de flauta do sultanato de Omã,
atmosferas de medinas árabes e meia dúzia de compassos de Wagner), o método tenha
sido implacável: “Nas primeiras experiências, queria incluir tanta coisa na
mesma música que acabava por soar mal, era excessivo e não existia um fio
condutor. Conseguia uma voz daqui, outra dacolá, e soavam todas bem umas com as
outras mas a coisa em si não chegava a existir. Muito do trabalho final foi limpar
as misturas, deitar fora, para chegar à forma definitiva que acabou por ser
muito minimal” (Ricardo Camacho).
No pólo oposto (ou, no fundo, talvez não), A
Um Deus Desconhecido era, desde o início, osso, nervo e a pura assombração de
uma espécie de fado parido na neblina britânica que sufocou Ian Curtis (“Desce
um véu, arde a catedral, anjo negro no céu, lá vem o vendaval”), vertido em
esquemáticas molduras de guitarra, pontuação de baixo, transparências de teclas
e o uivo da gaita de foles de Paulo Marinho que, em instrumentais como "Pois
Que Deus Assim O Quis" – afinal, outro modo de dizer “foi por vontade de Deus”
–, soprava já a vela épica e trágico-marítima que, qual poster sonoro da memória de um imaginário realismo-socialista
arcaicamente medieval, haveria de gerar os três registos – Mar D’Outubro
(1987), De Um Tempo Ausente (1989) e o quase-herético em relação ao regime
minimal, O Fogo (1992), que alojariam a Sétima nos ouvidos lusos. Eles –
Camacho, Marinho, Rodrigo Leão, Pedro Oliveira, Nuno Cruz, Gabriel Gomes, Paulo
Abelho e Francisco Menezes – eram a banda “que nem sequer toca assim tanto” e
que achava que “muito mais importante do que fazer um imortal solo de guitarra
é poder, mudar, virar, transformar as coisas”. E, também e por isso mesmo, a
banda de “Sete Mares”, “Por Quem Não Esqueci”, “Ascensão”, “A Reconquista”, “A
Norte do Mundo”, “Noites Brancas” ou “Além-Tejo”. Aquela que, ao contrário do
que era a norma claustrofóbica das gravações da época (“enquanto houvesse uma
pista livre, tinha de se meter lá alguma coisa”), preferia “gerir o silêncio e
o espaço”.
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