18 June 2012

O SILÊNCIO E O ESPAÇO

Em Fevereiro de 1999, Ricardo Camacho, numa conversa numerologicamente peculiar a propósito de O Sexto Sentido (sexto – incluindo o live, Auto de Fé, de 1994 – e último álbum da Sétima Legião), travada num sexto andar da Rua de Campolide entre seis interlocutores, garantia que “este e o primeiro álbum são, provavelmente, os nossos dois discos mais homogéneos”. E defendia-o explicando que “no fundo, é como se todo o disco fosse uma música só. A ironia é que, contra a vontade colectiva (deve ser uma das poucas coisas que nos unem), acabámos por chegar ao álbum conceptual!”. Camacho – que, para além de médico, já fora também crítico de música e confessava, por vezes, compor a partir de textos críticos sobre discos que não ouvira – não poderia fazer uma autoavaliação mais acertada: se a totalidade da discografia da Sétima Legião deve ser classificada no patamar superior da pop portuguesa da segunda metade do século XX, A Um Deus Desconhecido (1984) e O Sexto Sentido são as duas colunas sobre que assenta tão elegantíssima ogiva. E, agora que a obra integral de estúdio do grupo volta a estar disponível, não haverá mais oportuno pretexto, não apenas para a fazer conhecer junto de desatentos e infiéis, como para lhe traçar mais nitidamente o perfil.

A verdade é que tanto o álbum de estreia como o derradeiro – que, por muito boas razões, esteve para se chamar “Nações Unidas” –, ainda que de forma absolutamente diferente, acabaram por obedecer a um mesmo princípio: abdicar de tudo o que fosse inútil e supérfluo e guardar apenas o estritamente essencial. Daí que, embora a ambição que gerou O Sexto Sentido fosse enorme (edificar um quase cinemático painel sonoro em torno de uma ficção sobre o universo da tradição popular portuguesa construída sobre samples de recolhas etnográficas de Michel Giacometti, apontamentos avulsos de flauta do sultanato de Omã, atmosferas de medinas árabes e meia dúzia de compassos de Wagner), o método tenha sido implacável: “Nas primeiras experiências, queria incluir tanta coisa na mesma música que acabava por soar mal, era excessivo e não existia um fio condutor. Conseguia uma voz daqui, outra dacolá, e soavam todas bem umas com as outras mas a coisa em si não chegava a existir. Muito do trabalho final foi limpar as misturas, deitar fora, para chegar à forma definitiva que acabou por ser muito minimal” (Ricardo Camacho). 

No pólo oposto (ou, no fundo, talvez não), A Um Deus Desconhecido era, desde o início, osso, nervo e a pura assombração de uma espécie de fado parido na neblina britânica que sufocou Ian Curtis (“Desce um véu, arde a catedral, anjo negro no céu, lá vem o vendaval”), vertido em esquemáticas molduras de guitarra, pontuação de baixo, transparências de teclas e o uivo da gaita de foles de Paulo Marinho que, em instrumentais como "Pois Que Deus Assim O Quis" – afinal, outro modo de dizer “foi por vontade de Deus” –, soprava já a vela épica e trágico-marítima que, qual poster sonoro da memória de um imaginário realismo-socialista arcaicamente medieval, haveria de gerar os três registos – Mar D’Outubro (1987), De Um Tempo Ausente (1989) e o quase-herético em relação ao regime minimal, O Fogo (1992), que alojariam a Sétima nos ouvidos lusos. Eles – Camacho, Marinho, Rodrigo Leão, Pedro Oliveira, Nuno Cruz, Gabriel Gomes, Paulo Abelho e Francisco Menezes – eram a banda “que nem sequer toca assim tanto” e que achava que “muito mais importante do que fazer um imortal solo de guitarra é poder, mudar, virar, transformar as coisas”. E, também e por isso mesmo, a banda de “Sete Mares”, “Por Quem Não Esqueci”, “Ascensão”, “A Reconquista”, “A Norte do Mundo”, “Noites Brancas” ou “Além-Tejo”. Aquela que, ao contrário do que era a norma claustrofóbica das gravações da época (“enquanto houvesse uma pista livre, tinha de se meter lá alguma coisa”), preferia “gerir o silêncio e o espaço”.

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