25 June 2015

OS LUGARES ERRADOS


Na edição de Abril da “Cosmopolitan”, Jana Hunter publicou um texto onde recordava o momento, por volta dos 4 anos, em que explicara aos pais, irredutivelmente católicos, que era um rapaz e não uma rapariga. O facto de (pouco surpreendentemente) a reacção ter sido tudo menos acolhedora, não a impediu, porém, de, hoje, se declarar “incrivelmente confortável com as minhas muito fluidas identidade de género e sexualidade”. Ainda que continue a perturbá-la bastante a circunstância de alguém que não se identifica como “mulher” poder ser objecto da misoginia predominante no universo pop/rock, por mais "indie" que ele se afirme. Aceitemos, então, isso na qualidade de atenuante para o título do terceiro álbum da sua banda – os Lower Dens – ser Escape From Evil, última obra de Ernest Becker, seguidor norte-americano da amaldiçoada superstição freudiana. Felizmente, tal assombração não se nota demasiado na matéria do próprio disco, exemplo singularíssimo de uma colecção de canções que, aparentando ajoelhar perante o altar da retromania, é, afinal, algo diferente. 



É Jana quem, sem subterfúgios, coloca as cartas na mesa: Escape From Evil alimenta-se esteticamente da celebrada pop dos anos 80. Mas não se contenta em ficar pela homenagem. Usamos o passado, os seus clichés e inocência, como uma lente através da qual imaginamos um futuro aberto e queer”. O que, na realidade, se escuta é um exercício de cuidadosa arrumação das peças em todos os lugares errados do puzzle, dedicado a fintar a previsibilidade através de meia dúzia de manobras de diversão bem sucedidas: raptar Debbie Harry e colocá-la à frente dos Joy Division aos quais, entretanto, se ofereceu a aura sonora dos Cocteau Twins que, no mesmo instante, se viram com Siouxsie Sioux no lugar de Liz Frazer e assistiram à disputa entre Johnny Marr e Will Sargeant pela vaga de guitarrista nuns Cure em gravidade zero, produzidos por Brian Eno acabado de ser expulso dos Feelies, subitamente devotos do krautrock. Espreitem o assaz lynchiano video de "To Die In LA": as coordenadas de Escape From Evil menos óbvias à superfície exibirão, sem excessiva dissimulação, a sua "seedy underbelly" talhada por medida para a anunciada reencarnação de Twin Peaks.

3 comments:

Anonymous said...

A menina tem um rabo interessante e é esquizóide. Musicalmente, nada de novo. 15 ou 16 euros por este empadão? Give me a break!

João Lisboa said...

A "menina" do vídeo é uma actriz.
As actrizes representam personagens.
A Jana Hunter - que não é a "menina do rabo interessante" - suponho que ninguém a diagnosticou como esquizoide.
Ela diagnosticou-se como "gender fluid".
Musicalmente, nada de novo, porém (reler o texto sff).
A indústria discográfica vai atribuir-lhe uma medalha por ainda dar 15 ou 16€ por um CD.
Pode levar o travão.

Nuno Gonçalves said...

Vou tentar ouvir com mais atenção (infelizmente não tenho tido muito tempo e condições "espirituais"), mas esta faixa em particular soa-me bastante a ... Ariel Pink's. Não que me faça confusão. Não não sou propriamente fã dos Ariel Pink's mas não me custa nada ouvi-los (aliás, o Bright Lit Blue Skies até gosto mto). Enfim, sei que o JL tem certamente opinião diferente, mas fica aqui uma primeira impressão...
[Em tempo:-) embora praticamente não tenha feito comentários, estou a gostar muito da safra deste ano]