NULLI PRAEDA SUMUS
No caldo de cultura pop largamente
dominante em que a inspiração tende a funcionar através do método de
aspiração-Hoover do passado, as águas dividem-se entre aqueles que negam
peremptoriamente as provas óbvias da matéria aspirada e os outros que as exibem
triunfantemente como se de troféus de caça se tratasse. Com Laura Marling, as
coisas passam-se de um modo algo diferente: não só é ela a primeira a admitir
que, quando, aos seis anos, começou a aprender a tocar guitarra, a primeira
canção que o pai lhe ensinou foi "The Needle And The Damage Done", de Neil
Young, e que, praticamente, bebeu do biberão Joni Mitchell, Bert Jansch e James
Taylor, como, hoje, é, justamente, gente como Young, Graham Nash ou Joan Baez
que se confessa fã da filha do quinto baronete de Marling, cujo lema de
família, Nulli Praeda Sumus (“Não somos presa de ninguém”), Laura tatuou no
pulso direito.
Once I Was An Eagle poderá, facilmente, deixar-se inscrever no
género dos álbuns “confessionais” – de que Mitchell et alia foram os praticantes máximos, entre uma multidão de
discípulos menores que chegaram a transformar "singer-songwriter" num insulto bem pior do que “palhaço” – mas,
note-se, num subcapítulo das refregas sentimentais em que Laura Marling não
abdica do estatuto de predadora. Experimentem este percurso: “When we were in love, I was an eagle and
you were a dove”, “I’m a master hunter, I cured my skin, now nothing gets in”, “I
will not be a victim of romance, I will not be a victim of circumstance”, “Once
is enough to make you think twice”, “You weren’t a curse, thank you naïveté for
failing me again, he was my next verse” e “Give me something, let me go, tell
me something I don’t know”.
Mas, se lhe acrescentarem “You want a woman
who’ll call your name, it ain’t me babe, no, no, no, it ain't me babe”, isso,
por interposto Dylan, ajudará a compreender como Marling, ainda só no quarto álbum
(após Alas,
I Cannot Swim, 2008, I Speak Because I Can, 2010, e A Creature I Don't
Know, 2011, todos, como este, com títulos de seis sílabas) se mostra
suficientemente confiante para citar os clássicos e – escutando os seus 63
minutos –, ao mesmo tempo, reclamar para si uma genealogia musical não menos
aristocrática do que a da sua família de sangue: a de Roy Harper, John Martyn,
Nick Drake, Van Morrison ou dos Byrds (se quisermos aproximar mais
conspirativamente a cronologia, pense-se, igualmente, em Sometimes I Wish We
Were An Eagle, de Bill Callahan, 2009). Quase conceptual na estrutura (suite
inicial de uma única peça desdobrada em cinco títulos, coda, interlúdio e
desfecho final em oito andamentos), austero na utilização praticamente
exclusiva de guitarras,
violoncelo e percussão – mas o Hammond, oh quão dylaniano!... de ‘Where Can I Go?’ –, é o perfeito lugar geométrico onde todos os elementos
se combinam, expandem e transfiguram, a evocação das 12 cordas de Roger McGuinn
convive com modalismos tão orientais como ibéricos e, à discretíssima boleia de "It's Alright, Ma (I'm Only Bleeding)", em "When We Were Happy", Laura Marling, por um segundo, nos
obriga a pensar com ela: “I look at people in the city and wonder if they’re
lonely or like me they’re not content to live as things are meant to be”.
3 comments:
Diário de uma leitora e ouvinte - #1
Não é segredo que não gosto de muitas coisas que nos dá a escutar, embora os textos anunciem as coisas a escutar com uma sedução constante.
Quando o meu leitor de CD's recuperar a operacionalidade perdida esta Marling, Laura, cantará bem alto nas manhãs de faxina e outros lazeres por terras do centro de Portugal em, pelo menos, uma casa.
"Não é segredo que não gosto de muitas coisas que nos dá a escutar"
How dare you???!!!...
Doing it the haaaaard way: by daring.
p.s. - o Martyn supra também leva o meu selo de qualidade :)
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