25 June 2019

COM MÁSCARA, SEM MÁSCARA 


Bob Dylan não se chama Bob Dylan, mas Robert Allen Zimmerman. Ou Elston Gunn (quando, em 1959, tocou piano com Bobby Vee), Blind Boy Grunt (enquanto "folk singer" numa compilação da revista “Broadside” bem como num álbum de Richard Farina e Eric Von Schmidt, ambos de 1963), Tedham Porterhouse (quando empunhou a harmónica ao lado de Ramblin’ Jack Elliot, em 1964), Robert Milkwood Thomas (pianista em Somebody Else’s Troubles, de Steve Goodman, 1972), Boo Wilbury (nos Travelling Wilburys, com George Harrison, Jeff Lynne, Roy Orbison e Tom Petty, entre 1988 e 1991), Jack Frost (produtor ou co-produtor de Under The Red Sky, 1990, Time Out Of Mind, 1997, e Love and Theft, 2001), Sergei Petrov (co-argumentista com Larry Charles, no filme Masked and Anonymous, onde desempenha o papel da "rock star", Jack Fate, 2003) e, previsivelmente, Alias (personagem de Pat Garrett & Billy the Kid, de Sam Peckinpah, 1973). Em I’m Not There, de Todd Haynes (um filme “inspirado pela música e pelas muitas vidas de Bob Dylan”, de 2008), dividia-se por seis heterónimos: Arthur Rimbaud (narrador, comentador, a encarnação viva do lema que Dylan fez seu: “Je est un autre”); Woody Guthrie (um miúdo negro de 11 anos que tanto dá corpo ao jovem Dylan como ao próprio Woody); Jack Rollins (sobreposição do Dylan “cantor de protesto” e do simétrico cristão "born again"); Robbie Clark (protagonista do filme-dentro-do-filme, “Grain Of Sand”, um biopic sobre Jack Rollins), Jude Quinn (o Dylan de Highway 61 a Blonde On Blonde); e Billy The Kid (em fuga do papel de “porta-voz de uma geração”: “Quando acordo, sou uma pessoa, quando adormeço, tenho a certeza que sou já outra”). 

Em 1966, numa conversa com Robert Shelton, do “New York Times”, confessou ter-se libertado de uma dependência da heroína que lhe custava 25 dólares por dia e que, quando chegara a Nova Iorque, no início dos anos 60, havia trabalhado como prostituto. Antes disso, contara ter viajado clandestino em combóios de mercadorias e que trabalhara num parque de diversões ambulante como encarregado de limpezas e responsável pela grande roda. Não é, de todo, importante que essas e outras revelações nunca hajam sido confirmadas. Em Rolling Thunder Revue – A Bob Dylan Story by Martin Scorsese, ele faz questão de esclarecer logo tudo: “Viver não serve para nos descobrirmos ou para encontrarmos algo. Viver serve para nos criarmos”. É no quadro desse imenso plano que é importante reler com atenção o subtítulo: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese. “Uma” história – isto é, uma ficção entre possíveis outras – criada por Martin Scorsese, acerca de (um dos inúmeros) Bob Dylan. No caso, aquele que, no Verão de 1975, entre a publicação do magnifico e redentor Blood On The Tracks (1975) e a gravação de Desire (1976) - e após uma digressão com The Band que o deixara insatisfeito -, congeminou a ideia de, qual trupe de ciganos, fazer-se à estrada numa carrinha, na companhia de amigos vários – Roger McGuinn, Joan Baez, Joni Mitchell, Scarlet Rivera, Ramblin’ Jack Elliot, Mick Ronson, Ronee Blakley, Allen Ginsberg, T-Bone Burnett – e, praticamente sem anúncio prévio, apresentar-se em pequenas salas de cidades de reduzida dimensão. 


Teria início a 30 de Outubro de 1975, em Plymouth, no Massachusetts (58,271 habitantes) e, duas dezenas de datas depois, concluiria a primeira volta – haveria uma segunda, entra Abril e Maio do ano seguinte – a 8 de Dezembro, no Madison Square Garden, de Nova Iorque. Na véspera, actuara na Edna Mahan Correctional Facility for Women, uma prisão feminina de New Jersey. A bordo, viajariam também Sam Shepard e um documentarista que desempenhariam a função de cronistas da expedição. Se o Dylan actual, declara não recordar-se já de nada (“Aconteceu há tanto tempo, eu não era ainda nascido”), Shepard, no Rolling Thunder Logbook que publicaria em Março de 1976, regista que o Bicentenário dos EUA que, então se celebrava – meses depois da queda de Saigão e um ano após a demissão de Richard Nixon – “tinha enlouquecido New England, como se, em desespero, se procurasse ressuscitar o passado (...) e o nosso desvairado presente apenas pudesse ser salvo por fantasmas”. O documentarista Stefan van Dorp, esse, entrevistado por Scorsese, lamenta-se amargamente de não lhe ter sido atribuído o relevo que merecia e distribui bílis e ressentimento por diversos participantes da caravana.


É o instante em que começamos a aperceber-nos que The Vanishing Lady (1896), filme de um minuto e meio, de George Méliès, que abre o documentário, nos alerta para todo o ilusionismo que virá a seguir: na verdade, o responsável pelas filmagens da digressão foi Howard Alk, um realizador de Chicago amigo de Dylan, e van Dorp é uma personagem ficcional (representada por Martin Von Haselberg, marido de Bette Midler). Mais à frente, escutamos a divertida história do político democrata Jack Tanner, apoiante de Jimmy Carter, a quem este conseguiu, miraculosamente, um bilhete para o concerto de Niagara Falls. Tanner, de facto, existiu mas apenas virtualmente, enquanto personagem de Tanner ‘88’, uma série de televisão da HBO, realizada por Robert Altman, em 1988. Então e agora, encarnada pelo actor Michael Murphy. Jim Gianopulos é, sem dúvida, Jim Gianopulos mas, quando diz “Não é para me gabar mas a Rolling Thunder foi ideia minha”, o actual CEO da Paramount Pictures que nunca organizou um concerto na vida, está, deliciadamente, a assumir o guião da ficção Dylan/Scorsese. Tal como Sharon Stone – com fotografia photoshopada e tudo – ao relatar o concerto a que, com a mãe, teria assistido aos 19 anos, tendo sido recrutada como quase-roadie do circo itinerante e acreditado ingenuamente que fora acerca dela que Dylan escrevera "Just Like A Woman". E, não, a inspiração para se exibirem em palco com os rostos pintados de branco não teve origem na maquilhagem dos Kiss (que Scarlet Rivera, suposta namorada de Gene Simmons, lhe apresentara) mas em Les Enfants du Paradis (1945), filme de Marcel Carné.

O outro momento revelador acontece quando Bob Dylan, hoje, sem máscara nem pintura no rosto enrugado, olha para a câmara e afirma: “Se alguém estiver a usar uma máscara, dir-te-á a verdade. Se não, será bastante improvável”. Traduzindo: Rolling Thunder Revue – A Bob Dylan Story by Martin Scorsese não é verdadeiramente um documentário e apenas pode ser considerado “by Martin Scorsese” na qualidade de cúmplice – enquanto montador e reconfigurador das filmagens originais e responsável pelas entrevistas de agora – de mais uma reinvenção de Bob Dylan, que, de caminho, reinventa também a lenda em torno dele. À época, o que ocupava Scorsese era a realização de Taxi Driver e, só em 2005, com No Direction Home – esse, sim, um documentário sobre Dylan, das origens à “heresia eléctrica” –, os caminhos de ambos se cruzariam. O que já se conhecia – das caóticas 4 horas de Renaldo And Clara (1978), atabalhoadamente realizado pelo próprio Dylan e alegadamente herdeiro do filme de Carné e de Tirez Sur Le Pianiste (1960), de Truffaut –, ganha aqui, entretanto, uma incomparável nitidez: no episódio sobre o pugilista negro Rubin “Hurricane” Carter injustamente condenado a uma pena de prisão, acerca do qual Dylan escreveria uma canção que vemos e ouvimos iradamente interpretada, mas também na passagem pela reserva índia de Tuscarora, onde canta "The Ballad Of Ira Hayes", de Peter La Farge, nas intenssíssimas rendições de "Isis", "A Simple Twist Of Fate", "The Lonesome Death of Hattie Carroll", "A Hard Rain’s A-Gonna Fall" e "Another Cup of Coffee" ou na peregrinação, com Ginsberg, ao túmulo de Jack Kerouac. Com ou sem máscara.

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